Os 130 km de trilhos da CPTM esquecidos dentro da capital

Por Caio César | 24/10/2014 | 9 min.

Legenda: Estação Vila Matilde da CPTM, desativada mas ainda em pé
Quando grandes números não implicam, necessariamente, num compromisso de igual magnitude

A rede da CPTM, com cerca de 260 km, atendendo 22 municípios, com mais de 90 estações, aproximadamente 170 trens e movimentação de quase 3 milhões de usuários em média por dia útil apresenta não só números superlativos, mas também descaso em igual ou superior escala. A capital possui cerca de 130 km (136,5 km, para ser mais exato, de acordo com a Secretaria dos Transportes Metropolitanos), o que é mais do que a rede do Metrô inteira, mesmo se somarmos a Linha 4, operada pela CCR ViaQuatro em regime de concessão patrocinada).

Legenda: Rede da CPTM, conforme área específica do site oficial

Mesmo com mais de 100 km dentro da capital, mesmo atendendo a espécie de “centro nervoso” que se tornou a região da Marginal Pinheiros, mesmo interligando o ABC e a capital, mesmo atendendo à Zona Leste com o único serviço expresso sobre trilhos de toda malha, continua sendo tratada como cidadã de segunda classe. E o pior: o tratamento questionável está por todos os lados, de utilizadores a jornalistas e até supostos especialistas, contaminando o viés político que qualquer obra de infraestrutura feita por um órgão estatal carrega por natureza. Enquanto os holofotes se voltam apenas ao Metrô, a requalificação da malha da CPTM, que já chegou a prever trens de quatro carros e intervalos (na época) teoricamente baixos, continua se arrastando a medida que a demanda não para de aumentar, com um modelo operacional que parece ter se adaptado às pressas a uma realidade que não havia sido prevista, para variar, subestimou-se os subúrbios e sua demanda de passageiros, talvez isso explique o sepultamento do Projeto Integração Centro.

O corredor do Integração Centro na Estação Luz saturou, a integração na Estação Santo Amaro continua sendo motivo de estresse para usuários das linhas 5-Lilás e 9-Esmeralda (originalmente se previa a conexão em uma outra estação, chamada de João Dias, que apesar de perder a intermodalidade, vez ou outra é citada pela imprensa), a ingerência em relação a obras de infraestrutura e contratos de prestação de serviços atingiu níveis críticos, reduzindo a confiabilidade do sistema, fazendo com que os novos trens revelassem a falta de capacidade administrativa da CPTM em se modernizar sem abandonar as próprias raízes. Nada disso, porém, parece despertar fortemente o interesse da chamada “grande mídia”, aquela que ataca apenas os sintomas do transporte público ao passo que anúncios de carros 1.0 com prestações a perder de vista são convenientemente vomitados nas telas e páginas. Mesmo nas denúncias de cartel o enfoque continua sendo dado ao Metrô, sendo que contratos de manutenção de pelo menos três séries de trens da CPTM fazem parte do escândalo.

De acordo com o jornal Folha de S.Paulo, os intervalos de 3 minutos são prometidos desde o governo Fleury, é o que revela trecho de matéria publicado em 15 de setembro de 1991 (a edição em questão pode ser buscada no acervo), na época, o governador em questão já prometia intervalos de 3 minutos e a mesma qualidade do Metrô para o transporte suburbano, no mesmo parágrafo, a declaração do governador fazia parecer que os intervalos eram de 8 minutos, o que estava longe de ser verdade para as linhas Tronco e Variante, atuais 11-Coral e 12-Safira, por exemplo, que apresentavam um intervalo praticamente dobrado em relação ao declarado. Os mesmos intervalos são prometidos até os dias atuais, no portal G1, em matéria do dia 11 de abril de 2013, o mesmo intervalo foi prometido, ironicamente e, assim como na Folha de 1991, o leitor foi induzido a erro, pois nem todas as linhas da CPTM operam com 5 minutos de intervalo no horário de pico, também não foi implementado, até os dias atuais, uma forma de acompanhamento dos intervalos, com os horários entre uma e outra composição, item primordial a meu ver.


Mesmo com mais de 100 km dentro da capital, mesmo atendendo a espécie de "centro nervoso" que se tornou a região da Marginal Pinheiros, mesmo interligando o ABC e a capital, mesmo atendendo à Zona Leste com o único serviço expresso sobre trilhos de toda malha, continua sendo tratada como cidadã de segunda classe.

Enquanto a imprensa alimenta inconsequentemente comparações infundadas com sistemas de metropolitano centenários, pelo menos parcialmente construídos ao custo de muita mão de obra trabalhando em condições sub-humanas e inseridos em um contexto econômico, social e urbanístico totalmente distintos em relação ao cenário paulista, a mesma imprensa também comete gafes imperdoáveis ao considerar sistemas de metrô comparáveis a CPTM em termos de intervalo, com padrão de serviço inferior ou similar, ao mesmo tempo que parece desclassificar ou não enxergar a CPTM. Ademais, as requalificações feitas no trecho Mauá-Pirituba da então Estrada de Ferro Santos-Jundiaí são sempre ignoradas (atualmente o trecho é das linhas 10-Turquesa e 7-Rubi), bem como a modernização dos serviços de subúrbio da Fepasa nas linhas Oeste (atual 8-Diamante) e Sul (9-Esmeralda), o que só enfraquece uma análise mais coesa sobre a situação de toda a rede de trilhos, mesmo no antigo sistema Leste (linhas Tronco e Variante), estações foram reconstruídas (é o caso de Suzano, Ferraz de Vasconcelos, Mogi das Cruzes, da antiga São Miguel Paulista etc), para não dizer que o processo de chegada do próprio Metrô à Zona Leste remete a diversas questões, inclusive ao fato de que a região de Itaquera não recebeu os devidos cuidados previstos, tese esta que é uma leitura recomendada para quem quiser entender mais um pouco sobre a delicada questão da Linha 3-Vermelha, vale lembrar, outrossim, que a chegada da Linha 3 causou alterações no viário (a Radial Leste fala por si só), mudanças nos ônibus (nunca a Zona Leste recebeu tantos terminais de ônibus) e, principalmente: aproveitou parte da faixa de domínio da Linha Tronco, algo que até os dias atuais provoca contraste, positivo e negativo, entre a Linha 3 e os trens do Expresso Leste da Linha 11-Coral da CPTM.


Requalificação é elemento-chave

A verdadeira requalificação da CPTM é de fundamental importância para uma possibilidade de melhorar substancial a vida de, pelo menos, uma parcela significativa que vive na metrópole, mesmo que apenas a trabalho.

O projeto do expresso entre a sub-região Oeste da Região Metropolitana e a Zona Oeste da cidade de São Paulo, alterando a vida de quem utiliza as linhas 8 e 9, por exemplo, é muito pouco discutido, nele, um trem expresso com paradas nas estações Barueri, Carapicuíba e Osasco vai direto para a Estação Pinheiros, terminal do serviço. O projeto também esbarra com outra mudança: a da Linha 9 passar fazer terminal na Lapa, se conectando às linhas 7 e 8, algo que remete assim como o próprio Expresso Oeste-Sul ao ano de 2011.

Legenda: Infográfico sobre o Expresso Oeste-Sul, extraído do link da ASPEA no parágrafo acima

Outra mudança que foi anunciada e que caiu rapidamente no esquecimento foi aquela voltada ao saturado corredor da Estação da Luz, não só nada mais se falou com relação a aberturas de mais saídas e de uma conexão com a subutilizada Estação Júlio Prestes da Linha 8, como também não se observou qualquer esboço por parte da CPTM de, pelo menos, remover os esqueletos das antigas lojas de conveniência que existiam em parte da área subterrânea, o jovem corredor de integração, hoje com apenas dez anos de idade, assim como a Linha 9, se viu em situação ainda mais complicada assim que a Linha 4 começou a ganhar popularidade. Aqueles que conhecem a integração da Linha 4 na Estação Luz nos horários de pico provavelmente entendem muito bem o significado da palavra gambiarra; não se optou por alargar a galeria e confeccionar uma integração digna, que resgatasse a elegância do comércio que existia, facilitasse a integração e acomodasse melhor o fluxo de passageiros oriundo não somente da realidade atual, mas também de, pelo menos, mais duas ou três décadas, apenas se criou uma abertura e um redirecionamento de fluxo bruto e inconveniente.

Um projeto maior e que teoricamente permite a eliminação de gargalos operacionais históricos é aquele da Fupam. O projeto da Fupam leva o nome de Tronco Metropolitano da Mobilidade Urbana, dando um tom de vida própria ao trecho dentro da abrangência do projeto, em que as linhas são vistas como articuladoras importantes, não meras alimentadoras do Metrô. O projeto escrito pode ser conferido aqui, ao passo que o vídeo mais recente pode ser conferido abaixo:

Legenda: Segunda revisão do vídeo a respeito do projeto da Fupam para a CPTM

O projeto da Fupam, ainda que não totalmente maduro, é interessante por explorar um dos eixos mais cruciais de parte da rede da CPTM, que vai do Brás até a Lapa, identificando pontos de interesse e/ou de relevância ao longo do trajeto, a medida que intervenções urbanas no entorno imediato se desdobram, ou seja, é um projeto que viabiliza uma requalificação urbana talvez comparável com as obras realizadas pela França na então inédita RER (Rede Expressa Regional), com estações subterrâneas estratégicas em Paris, alterando a experiência de utilização dos serviços de subúrbios, o emprego de uma perfuratriz e a modernidade e sofisticação do sistema marcaram uma matéria da revista Popular Science a respeito, datada de agosto de 1972. O projeto prevê a existência de cargueiros e é provavelmente uma das propostas mais arrojadas feitas até o momento para a requalificação da CPTM. Humildemente, especulo que levar a Linha 11 até a Estação Lapa poderia mudar o cenário da Estação República e também ajudar a fortalecer ainda mais o tronco proposto, eu diria que as possibilidades são tamanhas, de maneira que é possível repensar também a questão da Linha 12-Safira, hoje confinada na Estação Brás, além da Linha 13-Jade, que vem ganhando certa notoriedade em vista do andamento das obras, acredito que a conexão em Brás, provavelmente uma das piores em todo o sistema poderia ter seu uso completamente alterado, o que beneficiaria diretamente a Linha 3, hoje o Brás é sem dúvida alguma uma das paradas mais críticas da linha, quando os trens já abarrotados têm os passageiros colocados a prova, sendo várias as cenas de desrespeito no embarque.


Extrapolando o termo “metrô”: urbano e regional

Inserido nas entrelinhas do presente texto, o termo “metrô” ainda causa confusão entre algumas pessoas. Na Revista Engenharia 607, o especialista Peter Alouche fala de metrô regional e metrô urbano e, ainda que as características possam se confundir em diversos momentos, é uma maneira muito mais simples de tratar o transporte pesado sobre trilhos em São Paulo. O trecho relevante do artigo do Peter pode ser conferido aqui, na página 107, segundo ele, a CPTM é um sistema de metrô regional, o que faz absolutamente sentido, é sinônimo também do termo “metrô regional” um que vem caindo em desuso, inclusive pela própria CPTM: “trem metropolitano”, são duas palavras que consagraram a modernização promovida pela Fepasa e a CPTM é a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.


Conclusão

Como tentei mostrar, ao limitarmos virtualmente o campo de atuação de um sistema de transporte, limitamos também sua importância, não só em termos políticos, mas também sociais. A requalificação e modernização definitiva da CPTM inclui mais do que máquinas e procedimentos operacionais, ela está ligada intrinsecamente ao aspecto humano, relacionado aos empregados e também aos usuários. Acelerar o processo depende fortemente da forma como o sistema é percebido, podemos estar a perder uma grande oportunidade e quando nos dermos conta, os custos e as dificuldades poderão ser ainda maiores.




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