Metrô: uma década dos mesmos argumentos para justificar a lotação e atrasos

Por Caio César | 04/06/2015 | 13 min.

Legenda: Trens metropolitanos do Metrô e da CPTM na Zona Leste
Mais uma vez a Folha de S.Paulo merece críticas, em duas notícias de sua revista “sãopaulo” envolvendo o Metrô, subestima inteligência do passageiro, insiste numa lógica de transporte pouco metropolitana e faz perguntas que impõem conveniência, não desafios

Introdução

Os textos da Folha que serão criticados a seguir foram publicados em 30/05/2015, sendo assinados pelo mesmo autor. Observa-se neles a insistência numa visão provinciana dos serviços do Metrô, como se São Paulo fosse uma espécie de ilha, não possuindo qualquer configuração metropolitana e, para piorar, também houve um baixo teor crítico em vista dos desafios que a população enfrenta, tornando tudo incrivelmente conveniente ao governo estadual, inclusive pelo esquecimento da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) — parece ser uma especialidade da Folha — , que há anos se encontra integrada à malha do Metrô e passa por um processo controverso de conversão para um serviço de metrô, ainda que de caráter mais suburbano em vista do tamanho de suas linhas, por fim, houve a utilização desonesta de uma pesquisa.


Notícia 1: "‘Estações terão mais serviços’, diz líder do metrô, eleito o melhor transporte"

O primeiro parágrafo já levanta uma questão curiosa:

Clodoaldo Pelissioni, 47, assumiu a presidência do metrô de São Paulo em maio. Desde o começo do ano, ele também é secretário estadual de Transportes Metropolitanos.

Acompanhando as declarações, notou algo errado, caro leitor? Pois é, o mesmo funcionário que é presidente do Metrô, também é o responsável pela STM (Secretaria dos Transportes Metropolitanos). Não é um acúmulo de cargos (mesmo que legal) no mínimo estranho?

Avançando na notícia, é perceptível que o receituário de melhoria que Pelissioni menciona é o mesmo há 10 anos, ou seja: lojinhas e redução de headway (intervalo médio entre os trens). Colocar pequenas lojas nas estações aproveitando certos espaços pode ser interessante, só que não necessariamente é o melhor e mais inteligente meio de explorar receita não-tarifária com locação de espaços.

A questão do espaço comercial está na concepção. E o Metrô não concebeu shoppings integrados à estações desde o princípio, trata-se de uma preocupação relativamente recente, diferentemente do que observamos em grandes estações concentradoras de linhas (também chamadas de hubs) na Europa. Existem alguns shoppings integrados às estações do Metrô, que geram receita, sendo exemplos de estações: Tatuapé, Itaquera, Santa Cruz e Tucuruvi.

Trata-se de uma questão polêmica, não a toa, contudo, os projetos mirabolantes de shoppings anexos as estações muitas vezes não se realizam. Desapropriações se dão em nome do interesse público, a fim de implantar o transporte desejado pela população e não um novo espaço comercial. Como justificar para “Dona Maria” que a casa dela será desapropriada para construção de uma estação de metrô mas que na verdade, naquele pedacinho especifico, está sendo desapropriada pra construir um shopping mesmo?

Legenda: Da direita para a esquerda: Shopping Metrô Tatuapé; acesso direto da plataforma para o Shopping Metrô Tucuruvi; fachada do Shopping Metrô Tucuruvi

Podemos realizar uma série de questionamentos sobre os shoppings em questão, inclusive no impacto ao entorno, contudo, não pretendemos esgotar o tema e encerramos a questão com o seguinte trecho do Relatório da Administração 2005, que revela que não há qualquer novidade nas palavras do presidente e secretário:

Receitas Não-Tarifárias

São aquelas advindas da exploração comercial de diversas atividades, dentre as quais destacam-se os Shoppings Metrô Tatuapé e Metrô Santa Cruz, além dos Terminais Rodoviários do Tietê e Jabaquara e da comercialização de espaços publicitários e pontos comerciais. Em 2005, essas receitas apresentaram um acréscimo de 16,3% em relação ao mesmo período do ano anterior.

Neste ano, foi assinado o contrato que possibilitará a implantação do novo Shopping Metrô Tucuruvi, das obras de expansão do Shopping Metrô Tatuapé II e Shopping Metrô Santa Cruz e da construção do novo Shopping Metrô Itaquera.

A otimização da exploração de negócios, como a locação de espaços de publicidade e pontos comerciais, foram decisivos para obtenção do resultado positivo, sendo que cada segmento obteve crescimento de 26,86% e 24,30%, respectivamente em relação a 2004.

Avançando agora sobre a questão da oferta de lugares, outro problema é que a redução do intervalo só é alardeada com pompa pelo fato da população ser leiga (e a imprensa também). Existem limites na redução dos intervalos, físicos e também operacionais, sendo que algumas linhas já se aproximam deles, caso da Linha 3-Vermelha (Itaquera-Barra Funda), a mais carregada do sistema.

Inserir mais trens, mesmo com um sistema de sinalização moderno, como o CBTC, que está em implantação há anos, tem como aspecto positivo o aumento na oferta de lugares, porém, sem mudanças na infraestrutura, aumenta o tempo de viagem e não se mostra nada além de um (caro) paliativo. Aliás, viajar nos trens fora do horário de pico, tanto na CPTM quanto no Metrô, resulta em tempos de viagem menores, não só pela quantidade menor de interferências, mas principalmente pela quantidade menor de trens circulando.

O presidente e secretário também vê as PPPs (parcerias público-privadas) com otimismo, ao passo que a Folha aponta rapidamente os atrasos, sem aprofundar questões a respeito do problema. Pessoalmente, acredito que já há uma fragmentação identitária da rede, como podemos observar na comunicação visual da Linha 4–Amarela, o que reforça uma marca própria e distorce as obrigações da CCR ViaQuatro, vencedora da concessão.

Na Linha 4 não existem desafios. A linha é integradora e possui garantias contratuais quanto à demanda, tem estações que privilegiaram muito os espaços vazios para locação, o que ajuda na obtenção de receita não-tarifária e, finalmente, possui cláusulas de garantia tarifária, blindando a CCR ViaQuatro contra atrasos na construção. Parece ser difícil operar a linha?

A menção à Linha 15-Prata (Ipiranga-Cidade Tiradentes) “cobre um santo e descobre outro”, pois enquanto Pelissioni aponta que esta retirará demanda da Linha 3, não diz que a demanda será jogada na Linha 2-Verde (Vila Madalena-Vila Prudente), que também atenderá Guarulhos (a linha será então Vila Madalena-Dutra).


Notícia 2: “Metrô é escolhido como melhor transporte por 64% dos paulistanos”

Na notícia da Folha que foca mais na escolha do modo de transporte, as considerações merecem ainda mais atenção, merecendo ser feitas praticamente a cada parágrafo do texto. Vamos a elas:

Nos próximos anos, ele terá a missão de comandar a maior expansão já realizada pelo metrô paulistano. “Vamos mais que dobrar a rede atual, de 78 km, projeta. “O objetivo é atrair mais usuários e tirar carros das ruas.”

Trecho problemático. A grafia “metrô” implica em modo, não em empresa. Como mencionado brevemente na Introdução, existe uma disputa entre a CPTM ser ou não ser metrô, o que se soma ao fato de que a Companhia do Metropolitano-Metrô era paulistana sobretudo quando estava nas mãos da prefeitura, algo que mudou há décadas.

O especialista Peter Alouche, inclusive, costuma lembrar da CPTM quando fala no tamanho da malha de metrô da Região Metropolitana de São Paulo, que pode enriquecer o debate, conforme fragmento de texto da Revista Ferroviária publicado pela ANTP:

São Paulo conta com três empresas de transporte sobre trilhos. Uma delas é o Metrô, que possui quatro linhas em operação, 65,9 km de rede, 59 estações e 150 trens. Transportou, no ano de 2013, 1,1 bilhão de passageiros. O sistema metroviário transporta diariamente cerca de 4,6 milhões de usuários. Outra é a ViaQuatro que opera a linha 4 do Metrô, com 12,8 km, totalmente automatizada. É uma das mais modernas do mundo e transporta 700 mil passageiros por dia. Um sucesso. Há também a CPTM, que tem uma rede de 260 km de extensão, com 6 linhas e 92 estações operacionais, atendendo a 22 municípios. As linhas estão sendo modernizadas para terem a mesma qualidade do serviço de metrô. Logo, logo chega lá. Transporta hoje 2,8 milhões de passageiros por dia.

Observação: a CPTM tem 130 km dentro da capital, sua abrangência é maior, mesmo que a inserção urbana seja pior.

Como a Folha permitiu que o Pelissioni destacasse em outro momento da notícia 1 a expansão para o ABC, então fica claro que o Metrô é, acima de tudo, paulista, por se tratar de um transporte metropolitano, não municipal. O atendimento estritamente municipal, desde a concepção, é um traço dos planos originais que deram origem à malha, realizados em 1965 pelo Consórcio HMD, formado pelas empresas Hochtief, Montreal e Deconsult.

Se concretizada, a expansão ampliará acesso ao serviço de transporte mais bem avaliado da cidade. Segundo o Datafolha, 64% dos paulistanos escolhem o metrô, à frente de ônibus (7%), táxi (3%) e trens da CPTM (1%).

Muito problemático, uma vez que não possuímos detalhes no texto que nos ajudem a compreender a escolha. Poucos detalhes são dados quanto a metodologia da pesquisa — foram entrevistados usuários do Metrô? Se sim, regulares? — , o que torna difícil uma análise mais precisa.

Ainda que seja mais uma percepção pessoal, tenho a impressão de que muitos usuários da CPTM fazem uso limitado do Metrô nos dias úteis, o que eleva o nível de sua experiência, enquanto fazem uso extensivo de apenas uma linha da CPTM, o que reduz o nível de sua experiência e reforça um contraste por várias razões que talvez sejam melhor compreendidas com a leitura de outros textos publicados no COMMU.

Legenda: Radial Leste na altura da Estação Carrão

Vamos refletir: se eu moro no Grajaú, por exemplo, será que prefiro o Metrô? Mesmo? Como posso preferir algo que tem uma cobertura e uma história tão distinta, como consigo “colar” isso na minha experiência? Até que ponto minha preferência do modo de transporte não está carregada de elementos do tecido de atendimento? Exemplo: se moro no Grajaú e prefiro o Metrô, pois trabalho, digamos, na Vila Mariana, então prefiro o Metrô pelas características das linhas 1-Azul e 4-Amarela, incluindo os trens da década de 70 que predominam na Linha 1, em estações bem antigas ou o faço por preferir também a maneira como a cidade se comporta ali?

“No metrô, a pessoa sabe que vai chegar ao destino no horário”, avalia Pelissioni. “Os trens são cheios, mas é uma viagem curta, de 15 minutos.”

A visão do secretário e presidente ignora linhas com caráter suburbano mais exaltado, como a Linha 3, ignora também as transferências, algumas delas essenciais para justificar a existência de linhas, como continua sendo o caso da Linha 5-Lilás (Capão Redondo-Adolfo Pinheiro) com a Estação Santo Amaro, altamente dependente da Linha 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú) da CPTM.

O tempo de 15 minutos é uma verdadeira excentricidade, quase uma afronta à maioria da população, que mora nas periferias, acorda cedo e enfrenta superlotação de ponta a ponta. Se pensarmos num morador da Zona Leste, a região mais populosa da cidade, que seja um “ponto fora da curva” por morar vizinho à Estação Tatuapé para trabalhar na Zona Oeste, ele não fará o trajeto Tatuapé-Barra Funda em 15 minutos, mesmo usando duas linhas da CPTM com baixos intervalos e muito mais expressas e diretas do que os serviços do Metrô para o mesmo trajeto (linhas 11-Coral e 7-Rubi).

Observação: nos gráficos sobre detalhes dos usuários, faltou uma maior facilidade para saber mais detalhes. Para garantir precisão no levantamento das regiões, é preciso que o levantamento se dê com dados do endereço do entrevistado, pois não é incomum encontrar pessoas dizendo que moram numa zona de São Paulo, quando não moram. Por exemplo: quem vive em Suzano pode dizer que mora na Zona Leste, só que não mora, pois a Zona Leste a que se refere acabou ainda na região de Guaianases/Lageado, uma vez que depois da Estação Antônio G. Neto, acabou São Paulo. O CityLab tem um interessante artigo em inglês a respeito do comportamento apontado, que pode ser lido aqui.

“As novas linhas são luxuosas, mas muito caras. Há opções que custam menos, como corredores de ônibus BRT”, pondera Carlos Guimarães, especialista em transportes da Unicamp.

Houve algum problema aqui. E a demanda? Um sistema de ônibus rápidos (BRT) transporta muito menos por sentido a cada hora do que um sistema pesado de metrô. Peter Alouche, citado anteriormente, possui um gráfico sobre a questão:

Legenda: Créditos: Peter Alouche Transport, Trends Engenharia e Tecnologia

Como vemos, um BRT com 4 faixas (2 por sentido) transporta pouco mais de 20 mil passageiros/hora, enquanto sistemas de metrô podem chegar a incríveis 80 mil passageiros/hora.

Finalmente, uma reflexão sobre o texto pode ser feita quando a “ficha” do serviço é apresentada:

Serviço: Empresa operadora do serviço de metrô em São Paulo

Criação: Criada em 1968, inaugurou o serviço em 1974, com a linha 1-azul

Se pensarmos nos desafios que a de metropolização de São Paulo provoca, com diversas cidades compondo uma dinâmica espaço-territorial com maior grau de uniformidade, pensar o serviço que a Companhia do Metropolitano presta como algo estritamente restrito aos que vivem na capital paulista se torna motivo de disputa. Ainda que menos breve, uma forma de catalogar o serviço no final do texto poderia ter sido a seguinte:

Serviço: Empresa operadora de parte do serviço de metrô da Região Metropolitana de São Paulo

Criação: Criada em 1968, inaugurou o serviço em 1974, com a Linha 1-Azul, então municipal, ainda na década de 1970 foi repassada ao Governo do Estado, que acumulava experiência em assuntos metropolitanos por meio da Fepasa e Emplasa.

O Trem Metropolitano da Fepasa foi repassado à CPTM em 1996, contudo, sua criação como serviço e paradigma de transporte, remonta à década de 70, de maneira que a situação ainda existente hoje, na qual o Governo do Estado opera serviços metropolitanos sobre trilhos em estatais diferentes, com histórias e tecnologias distintas, tem cerca de 40 anos de existência.

Legenda: Fotos e material com autoria e data de publicação desconhecidas. Da esquerda para a direita: Trem Metropolitano da Linha Oeste (atual Linha8-Diamante) no centro de uma fotografia da Estação Palmeiras-Barra Funda; Trem Metropolitano da Linha Sul (atual Linha 9-Esmeralda) com destino à Estação Largo 13 de Maio (atual Santo Amaro); peça publicitária enfatizando a rapidez do Trem Metropolitano da Fepasa

Conclusão

Vale lembrar que a STM é uma secretaria jovem e que a organização do Governo do Estado de São Paulo passou (e ainda passa) por mudanças ao longo do tempo. Antigamente existia a SNM (Secretaria dos Negócios Metropolitanos), extinta por meio do Decreto 29.355/1988, assinado por Orestes Quércia, já tendo sido o Metrô subordinado a ela, por exemplo.

Outra coisa, que deixamos para contar no final: a pesquisa foi feita apenas com as classes A e B. É o que revela a notícia “Pesquisa inédita do Datafolha revela quais os melhores serviços em SP”, segundo o texto, 1.027 indivíduos foram entrevistados. Os resultados então permitiram pautar o Metrô por meio da opinião de uma parcela limitada da população. Será que os moradores das classes C, D e E foram representados? Terá sido justo não deixar claro em nenhum momento que a maior parte da população ficou de fora da pesquisa e que 130 km de trilhos dentro da capital foram ignorados? Aparentemente para a Folha as demais classes sociais não têm nada a dizer sobre o transporte público de São Paulo.

Legenda: Estação Cidade Jardim da Linha 9 da CPTM e breve olhar do entorno. Podemos retratar o melhor serviço de transporte da cidade se tomarmos como referência moradores de tais locais?

Não é possível acreditar que a maior parte da população esteve representada ou que a malha poderia ter sido abordada da forma que foi. A pesquisa não tem valor, é um extrato muito pequeno para um serviço que, nas mãos da imprensa, teve números imensos alardeados. Se aquelas vidas, que compõem os números, não foram pesquisadas, temos um problema sério, que se não é de metodologia, é de ética.


Colaborações: Ana Carolina Nunes



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