O motorista do automóvel é um vilão?

Por Caio César | 14/08/2015 | 6 min.

Legenda: Trens, carros e ônibus dividem um mesmo eixo na Lapa
Em Abril de 2015 compartilhamos duas charges que, no contexto da mobilidade urbana, questionavam a falta de democracia na utilização do espaço

Legenda: Charge que compartilhamos no Facebook em 23/04/2015

Aproveitamos a polêmica gerada naquela altura para recuperar algumas colocações que fizemos, de forma a não permitir que sejam esquecidas num post antigo do Facebook.


Vilão ou vítima?

O motorista do automóvel é um vilão? Não. Nós, indivíduos, cidadãos, pessoas comuns, em geral respondemos aos incentivos que recebemos. Se a cidade, sociedade ou Estado fornece boas ruas para os carros e más alternativas para o restante, é razoável supor que as pessoas comprarão mais carros. Louvável aquele que, por pensar na cidade, mobilidade ou mero altruísmo, buscar alternativas mesmo contra todos os incentivos. Mas não dá pra imaginar que ele seja a regra.

Contudo, primeiramente, gostaríamos de ressaltar que existe um problema muito sério no senso comum: a visão de que o carro não precisa de infraestrutura para circular e/ou que a infraestrutura abundante para o automóvel foi fruto do acaso. Está errado. Houve um movimento construído por décadas para tornar o automóvel a alternativa mais atraente. Entretanto, ela não é a alternativa da maioria das pessoas. A maioria não anda de carro em São Paulo.

Talvez o motorista seja vítima de decisões de planejamento passadas, que hoje se mostram equivocadas, tornando o carro a mais cara opção de deslocamento (não necessariamente para o motorista, mas para a saúde das pessoas e da cidade), ainda que seja a mais privilegiada em termos de orçamento público.

Acreditamos que todos aqueles que estão inconformados com algo devem lutar para que mudanças ocorram. Por exemplo, nós do COMMU não nos conformamos com a forma como as cidades da metrópole foram pensadas e continuam sendo pensadas para os carros. Por isso estamos organizando um coletivo que luta por uma melhor mobilidade metropolitana para todos.

Antes de avançarmos para o próximo tópico, sugerimos que reflita e pergunte a si mesmo: se todos tomarem o automóvel como alternativa ao transporte coletivo, ele se tornará uma opção de fato ou apenas estaremos reforçando o estigma falso de que o carro é superior ao transporte coletivo e responde pela maioria dos deslocamentos?

Legenda: Cercanias da Estação Lapa da Linha 7-Rubi da CPTM

Superlotação e o carro como muleta

Há quem pergunte se, hoje, vai ter lugar para todo mundo no transporte coletivo. Bom… é claro que não! Adaptando uma frase de Rafael Calabria, do Diário da Mobilidade, o transporte coletivo não vai ter capacidade para todos que hoje estão no carro, enquanto a grande quantidade de carros continuem a atrapalhar a eficiência dos ônibus ou impedir que grandes avenidas tenham linhas de metrô ou bonde. Ou seja, a maior dificuldade para melhorar a qualidade do transporte público é exatamente a enxurrada de carros nas ruas. Trata-se de um paradoxo que temos que enfrentar.

A mentalidade de que o carro é “dominante” é o combustível para a estagnação. É preciso ter em mente que o carro:

  • Não é dominante, ou seja, tem menor participação nos deslocamentos em comparação com o transporte coletivo, que fica ainda menor se considerarmos os deslocamentos a pé e por bicicleta;
Legenda: Extraído da página 31 da Relatório Síntese da Pesquisa de Mobilidade 2012 da Companhia do Metropolitano de São Paulo. Podemos ter uma ideia da participação de diferentes meios de transporte nas viagens realizadas em toda a Região Metropolitana de São Paulo
  • Ocupa praticamente todo o viário e não transporta nem metade da cidade, logo, é pífio em capacidade;
  • Polui de forma preocupante, principalmente por ter menor eficiência energética, justamente devido à capacidade inferior (trata-se do meio de transporte com menor capacidade existente, quando considerado um fluxo de pessoas a cada hora num determinado sentido);
  • Tem caráter utilitário, não generalista, ou seja, funciona melhor quando usado com um propósito claro, como transportar determinados tipos de carga ou enfrentar terrenos difíceis, não nasceu como solução de transporte de massa, nem nunca pretendeu sê-la, logo, é preciso cautela ao pensar na utilização do automóvel dentro de um contexto metropolitano.

Não podemos pensar no carro como uma espécie de muleta, é preciso desenvolver uma consciência crítica, que não permite justificar o uso do automóvel sem que exista um compromisso real com o transporte coletivo ou a mobilidade urbana como um todo. Se endossarmos a ideia de que o carro é um paliativo, impedimos mudanças estruturais na cidade, ou seja, dificultamos o progresso. É graças a ela que obras questionáveis foram feitas, como a Ponte Estaiada na Marginal Pinheiros, que levou três anos para ser construída e custou R$ 260 milhões ou então as novas pistas na Marginal Tietê, cuja utilidade se perdeu em pouco tempo e as quais nos motivaram a escrever um texto a respeito de uma linha de metrô. Ambas foram caríssimas e trouxeram poucos benefícios, que se perderam a médio prazo.

Quando publicamos a charge, tivemos que frisar que não estávamos implicando com motoristas e nem dizendo que a bicicleta é uma panaceia. Contudo continuamos alertando para a necessidade de racionalizar o sistema viário para que a bicicleta seja uma opção, para que os ônibus fluam melhor e para que a cultura de culto ao automóvel seja enfraquecida, pois se trata de uma cultura destrutiva e equivocada. que pode facilmente conduzir à conclusão de que o carro de passeio é uma alternativa (no sentido absoluto, voltado à metrópole) ao transporte coletivo problemático, quando não é.

Vale dizer que, a menos que se racionalize o sistema viário, reapropriando o espaço desperdiçado com vias de tráfego misto, que ficam entupidas de automóveis subutilizados, não será possível expandir consideravelmente a malha de metrô (trens do Metrô e trens da CPTM). Se retirássemos parte do espaço ocupado por carros, teríamos muito mais trens e bondes (ou veículos leves sobre trilhos, como são conhecidos os bondes modernos), transportando centenas a mais de pessoas a cada hora naqueles eixos. Mas infelizmente, se é dada exclusividade ao ônibus ou são sinalizadas vias para bicicletas, aparecem pessoas gritando que “estão atrapalhando o trânsito de São Paulo”. Sendo que o que mais “emperra” o trânsito da cidade é o uso absurdo de carros.


Conclusão

A metrópole precisa fluir e isso, não necessariamente, implica que os carros irão fluir maravilhosamente. É uma escolha de saúde pública, economia e logística. O carro precisa de muito espaço e transporta pouco, além de ter baixa eficiência energética.

Nós sabemos que o transporte coletivo não é adequado, contudo, sabemos também que o automóvel além de ser caro, transporta muito pouco. Enquanto persistir a mentalidade de que o carro é a saída para um transporte coletivo problemático, só será reforçado o problema, sem qualquer busca por solução.

O transporte individual motorizado já foi muito privilegiado nas cidades brasileiras — e nós vemos hoje que essa estratégia falhou. Está na hora de lutar por uma melhor mobilidade urbana e, (não) lamentamos informar, o carro não será contemplado com praticamente nada, no máximo algumas medidas de integração/intermodalidade, de resto, perde espaço para bicicletas, ônibus, trens e bondes.


Colaborações: Ana Carolina Nunes e Daniele Almeida



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