Por Caio César | 03/04/2016 | 5 min.
E saiu mais um editorial pra lá de questionável do Estadão, que faz uso de argumentos baseados numa necessidade de rigorosos estudos de demanda e impacto de vizinhança para justificar a expansão cicloviária (dando a entender que absolutamente nada existe, o que não é bem verdade). Novamente, não ficaremos calados!
A verdade é uma só: o Estadão é, historicamente, conivente e negligente na cobertura das questões do transporte coletivo em toda a metrópole, de Francisco Morato a Mogi das Cruzes, de Itapevi a Rio Grande da Serra, passando pelas regiões mais nobres ou mais estigmatizadas da capital paulista, o periódico sempre mediu esforços, tendo uma equipe minúscula (principalmente nos dias atuais) e, não seria exagero dizer, nada incentivada a pautar com seriedade e abrangência o transporte metroferroviário e o incentivo irresponsável ao automóvel (que não é restrito ao IPI, como alguns tentam mostrar, criticando seletivamente parte do Estado Brasileiro). Como esperar uma cobertura razoável de questões ligadas às bicicletas, não é mesmo? Finalmente, o mesmo tabloide não envida esforços similares na cobertura de questões ligadas ao automóvel ou à matriz logística rodoviária, sendo pouco crítico com relação ao uso indiscriminado do carro, à baixa segurança dos carros populares, à poluição atmosférica, à má ocupação do solo urbano e à ausência de opções às rodovias para deslocamentos de cunho regional (como uma simples ida ao litoral, feita por pessoas das mais variadas classes pelo menos uma vez por ano).
Até quando permitiremos que a imprensa ignore a realidade da maioria e que trate o transporte coletivo problemático como uma muleta desejável, que facilita a inserção de anúncios de montadoras? Pior, o mesmo editorial que cobra estudos rigorosos para justificar a implantação de ciclovias, rotula, sem qualquer rigor, os ciclistas de privilegiados (o que não é surpreendente, por outro lado). Ora, se há um ator mais privilegiado na mobilidade de São Paulo, este, absolutamente, não é quem pedala e arrisca a própria pele num trânsito feroz, não é quem anda a pé e disputa um “rally” diário nas calçadas, não é quem depende de um transporte coletivo que se esgueira entre interesses escusos de políticos e empresários, é, justamente, quem utiliza o automóvel, dispondo de uma infraestrutura muito maior para circular, blindada pela simpatia midiática, que aqui mais uma vez escancaramos e rechaçamos. A postura do editorial não é nova e o ataque aos ciclistas, citando Daniel Guth em tom quase depreciativo, não difere muito do ataque que as novas políticas da SPTrans e da CET para os ônibus sofreram no passado.
Vale lembrar que, em 2013, o editorial “A demagogia da mobilidade” atacou as políticas públicas da gestão Haddad que elevaram o nível da infraestrutura dos ônibus, dando-lhes maior prioridade em detrimento aos automóveis. Aqui vai um fragmento que exemplifica o tipo de desonestidade que tem marcado as opiniões do supracitado jornal:
Essa má vontade com o transporte individual prejudica a cidade. Não se discute a necessidade de dar prioridade ao transporte público e, no caso dos ônibus, de aumentar sua velocidade.
Mas não é preciso fazer isso criando dificuldades para os que usam o carro como instrumento de trabalho. Especialmente para aqueles — como médicos e enfermeiros, para citar dois exemplos — cuja profissão tem exigências que o transporte público não consegue atender.
Além de classificar a postura da gestão como de “má vontade”, num claro rompante de amargura e desgosto com o rompimento do modus operandi habitual, de construção de pontes, faixas adicionais e avenidas, que rapidamente ficam saturadas, tenta fazer parecer que o problema de quem utiliza o carro como instrumento de trabalho é a priorização do transporte coletivo, enquanto o uso indiscriminado do automóvel por quem não necessita dele como instrumento de trabalho é ignorado, até porque, o editorial utiliza a superlotação (dos ônibus municipais apenas, criticando apenas uma esfera, deixando de lado o Metrô e a CPTM, estaduais) como argumento para justificar algo que seria uma opção sensata pelo carro, elemento presente na “vida de grande parte da população”.
Obviamente, o mesmo jornal que agora reforça que as ciclovias precisam de estudos intermináveis para serem justificadas, não mostrou dados quantitativos e qualitativos sobre a “grande parte” que necessita do carro. Utilizo um trecho do editorial que estou criticando, cujo título, em consonância com o editorial de 2013, é “Delírio cicloviário”:
A cidade poderia ter a metade de quilômetros de vias e precisar do dobro do que se pretende de ciclovias, ou o contrário disso. Não é a extensão de umas que determina a extensão das outras, mas, nos dois casos citados, a demanda devidamente comprovada.
Ora, quer dizer então que, se eu tenho uma demanda de automóveis que ocupa 78% do viário sem transportar 1/3 da população, devo continuar ampliando o sistema, ao invés de, como tem sido observado na capital paulista, formular um bom plano diretor ou buscar expandir as opções mais rápidas de transporte coletivo, visto que as opções de maior capacidade patinam sob vista grossa não só do Estadão, mas também de outros veículos da grande mídia?
É uma lógica obtusa, que tem como efeito colateral facilitar justificativas para aberrações como uma ampliação da Marginal Tietê, obra que aconteceu, mas que poderia ter dado lugar para uma linha da CPTM, como já opinamos no passado. Prejuízo incalculável para São Paulo, Osasco, Guarulhos e todo um vetor de deslocamento envolvendo pelo menos mais duas ou três cidades.
Para finalizar, deixo um misto de apelo e alerta: nós que usamos o transporte coletivo e nossas pernas, seja para pedalar ou para caminhar, estamos num fogo cruzado! A única forma de nos defendermos é construirmos e erguermos um grande escudo de consciência política e social. Não podemos permitir qualquer retrocesso na luta por uma cidade mais humana, mesmo com grandes problemas, o transporte coletivo precisa melhorar e o aumento das ciclovias não é uma medida que surge na contramão, pelo contrário, contribui, complementa, agrega.
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