A gente tá falando da mesma cidade?

Por Caio César | 20/05/2016 | 14 min.

Legenda: Olhando além dos muros da Estação Guaianazes da Linha 11-Coral da CPTM (Luz-Guaianazes-Estudantes)
Nas conversas sobre cidades mais humanas e mais agradáveis, sempre me deparo com algumas situações que andam me deixando desconfortável (e preocupado), daí a pergunta, que emendo com outra: será que São Paulo se resume aos Jardins, Baixo Augusta, Pinheiros e Vila Madalena, mas… ninguém me contou?

Índice


Introdução

Tudo bem, São Paulo é gigante, tudo bem, envolver toda a Grande São Paulo torna tudo mais gigante ainda, mas por qual motivo a gente, que discute e luta por cidades melhores, precisa repetir os mesmos erros da imprensa e mais uma porção de pessoas, que só olham para meia dúzia de bairros e esquecem de todo o resto? Pior, por qual motivo a população que vive na parte esquecida só se torna importante quando realmente é conveniente para ser lembrada, como para ser utilizada como escudo ou munição em discussões, disputas políticas etc?


Hipocrisia é a palavra-chave

Como é possível notar, o Coletivo tem buscado colocar luz sobre os problemas na malha da CPTM, mas não somente, temos insistido nos últimos meses sobre a importância de construir um olhar voltado para o território atendido por toda a malha de alta capacidade (o melhor meio estruturante que dispomos para organizá-lo, ou seja, a CPTM e o Metrô), sem diferenciações excessivas sobre o fato daquele lugar estar ou não numa cidade diferente de São Paulo. E sabe por qual motivo? Não faz 0 menor sentido criar ou fortalecer barreiras virtuais.

Vou além, tocando numa ferida que tem relação direta com os setores mais progressistas da sociedade paulistana, não raramente ligados a movimentos que já estão muito mais maduros do que o COMMU: a questão não é só seletividade, a questão também é de hipocrisia, que consequentemente reforça (quando não contribui para) o distanciamento destes grupos da realidade da maior parte da massa trabalhadora, que a partir daí pode ser mais facilmente cooptada por discursos nada apropriados para a evolução de nossas cidades e a melhoria do transporte coletivo, do ciclismo e do pedestrianismo.

A população de menor renda, notadamente privada, inclusive histórica e culturalmente, das discussões políticas, foi transformada em mero instrumento de retórica, virou justificativa para criar uma cortina de fumaça que protege aqueles que, a todo custo, tentam falar do que não vivem e não procuram entender. Mas veja bem, tentam falar a partir da bolha em que vivem, ou seja, trazendo ou agravando todas as limitações e estigmas que estampam os grandes jornais. Ninguém deve abdicar do trabalho, dos estudos e de uma parcela de seus sonhos para se engajar na luta por melhores cidades e melhor transporte coletivo; se a maioria (mesmo que maioria seja uma minoria genuinamente interessada) não consegue comparecer nos poucos espaços participativos e eles acabam sendo ocupados majoritariamente por pessoas com renda familiar per capita elevada, existe um fator de exclusão que precisa ser derrubado.

Sentindo a exclusão e a hipocrisia na pele, minha postura tem sido cada vez mais impaciente, principalmente no campo das cidades da Grande São Paulo e a mobilidade urbana num território marcado por um gigantismo que, apesar de impressionante, pode ser bastante perverso. Abaixo quero exemplificar três posturas nocivas, todas baseadas na construção de extremos, com base em tipos, caricaturas de parcelas da sociedade ou do território.

Caso 1: “os trilhos colocaram os pobres para debaixo da terra”

Imagine você, que vive na periferia (nem precisa ser a mais paupérrima), ler que está sendo privado do convívio com a cidade apenas pelo fato de transitar por túneis. Não poderia ser mais do que uma piada de mau gosto, dada as características da rede de transporte. A CPTM não tem nem meia dúzia de túneis, enquanto o Metrô é predominantemente em superfície e elevado, com longos trechos (tramos) inteiros de uma linha numa única tipologia (vide o tramo leste da Linha 3, após a Estação Brás, ou então a Linha 5 original, na qual apenas a Estação Largo 13 é subterrânea), ônibus então, nem se fala.

Legenda: Mapa “Distribuição de Domicílios, segundo Faixa de Renda”, obtido pormeio do Infocidade

Para chegar aos trechos subterrâneos no Centro Expandido, área que concentra consistentemente rendas mais elevadas, é preciso vencer alguns quilômetros, não raramente combinando uma caminhada e um ônibus para chegar na estação que será porta de entrada para a malha metroferroviária, a partir daí, passa a ser possível viajar alguns quilômetros até finalmente desembarcar em uma estação subterrânea, que muito provavelmente integrará um grupo de estações bem consagradas, como Sé, República, Consolação, entre outras. Sem esforço, não é exagero afirmar que o trajeto levará entre 60 e 90 minutos, pelo menos.

Legenda: Visão da passarela sobre a rodovia urbana Jacu Pêssego (Estação Dom Bosco, Linha 11-Coral da CPTM)

Quantos dizem que vão trabalhar na região de estações como Dom Bosco, que fica em elevado, mas tem túneis nas duas pontas? Poucos, pois Dom Bosco é uma estação que atende sobretudo um conjunto habitacional, logo, ela tem demanda pendular. A periferia não está tão acostumada com sistemas em subterrâneo tanto quanto alguns podem imaginar — e, suspeito, imaginam, pois passam a maior parte do tempo em bairros nobres — , o cenário só deve mudar em 10 anos ou mais, com o prolongamento da Linha 2-Verde (atualmente Vila Prudente-Vila Madalena, futuramente Vila Prudente-Dutra) e a construção da Linha 6-Laranja (futuramente Brasilândia-São Joaquim).

Caso 2: “quando a rede se expande na periferia, empurram monotrilhos”

Bom… agora a população periférica deixa de estar supostamente restrita ao subterrâneo, como num passe de mágica. Neste caso, o monotrilho é igualado ao ônibus por motivo de ignorância ou desonestidade, como se a capacidade fosse comparável, com pouco esforço, foi possível achar até um especialista (aparentemente bastante respeitável) defendendo que uma fila de ônibus num corredor é superior a uma linha de monotrilho:

Para José Alex Sant’Anna, doutor em engenharia dos transportes, não é boa política trocar corredores por monotrilhos. “Nos monotrilhos cabem mais gente, mas a capacidade de transporte dos corredores é maior. Você pode fazer uma fila de ônibus no corredor e não pode fazer isso com o monotrilho.”

Para a fala de Sant’Anna, precisamos pensar em alguns fatores, como:

  • Viário da região (lembre-se: periferias nem sempre possuem avenidas imensas);
  • Poluição atmosférica (motores de ônibus comumente são de combustão interna e movidos a óleo diesel);
  • Caráter estruturante e potencial de degradação do entorno (um corredor extremamente largo para permitir uma operação com enfileiramento pode ser extremamente segregador).

Ventila-se a ideia de que bastaria vontade (como se ela viesse do além) para construir metrô na região, o que geralmente leva a dois pontos: (a) ir para o subterrâneo deixa de ser problema e (b) a discussão passa a ficar inviável pela pobreza do argumento sustentador da tese, já que aspectos ligados ao campo político, orçamentário, territorial, geográfico, entre outros, são aniquilados pelo rolo compressor do desejo atrapalhado e arrogante de fazer justiça social sem qualquer cuidado com as camadas da sociedade às quais o discurso diz respeito.

Legenda: Monotrilho na Estação Oratório. Dois dos sete carros que formam uma composição estão totalmente visíveis na foto, a capacidade total é de aproximadamente 1.000 pessoas

Vejamos por exemplo a fala de outro especialista, Sérgio Ejzenberg:

Especialistas em transportes discutem as razões alardeadas pelo governo para adotar o modal: preço mais barato que o metrô e execução mais rápida. “O metrô é a única solução. Ele não é caro nem é demorado. O monotrilho pode custar metade do preço do metrô, mas, se transportar um quarto dos passageiros, significa que o metrô tem benefício duas vezes maior”, afirma o especialista em transportes Sérgio Ejzenberg.

O problema da fala de Ejzenberg é que ela desconsidera, por exemplo, que a Bombardier, fornecedora dos trens da Linha 15-Prata, projeta trens para linhas com capacidade/hora de até 48 mil passageiros por sentido, o que totaliza 96 mil pessoas/hora, cenário este comparável a um sistema de metrô pesado ferroviário, que sendo subterrâneo, será inegavelmente mais caro e demorado. A questão é que existe uma coisa chamada lobby e, ultimamente, os ônibus andam vencendo na batalha pela influência, veja por exemplo o reportagem da EXAME.com intitulada “Mais metrô? Não! A solução para as cidades são os ônibus”, cujo entrevistado atualmente trabalha na BYD, uma fabricante de ônibus.

Outro problema que pode surgir é a predileção por modos de menor capacidade (ônibus comuns e bondes), que ainda que mais atraentes pelo apelo estético, são escolhidos como se a construção da infraestrutura se tornasse equivalente a compra de um produto qualquer de prateleira. Penso eu que pode ser sintoma do desconhecimento da dinâmica que as escalas de deslocamento vão implicar. Explico com um exemplo inserido num contexto periférico: atender uma periferia com um bonde, mesmo que de 80 metros (o de maior comprimento e capacidade existente no mercado hoje), implica num modo muito mais local, que trabalha com certas premissas, como: boa renovação de passageiros, deslocamentos de no máximo meia hora, velocidades compatíveis com tráfego compartilhado e/ou a suscetibilidade a interferências, enfim, fatores que direcionam o modo para um contexto em que fica difícil inseri-lo numa periferia antes de consolidar um processo que retire dela tal condição como parte do espaço da cidade, ou seja, ela se torne uma centralidade e, mesmo considerando tal situação, não seria exagero a necessidade de sistemas com caráter metropolitano mais exaltado, pois uma centralidade também é percebida e apropriada como tal pela conectividade que possui, inclusive com outras centralidades. O antigo VLT de Campinas é exemplar em como um bonde moderno, sem um projeto cuidadoso, está fadado ao fracasso.

Legenda: Vídeo exibindo o VLT de Campinas, com filmagens de Vanderlei Antonio Zago

O último problema é a visão provinciana da malha, altamente aderente aos discursos da mídia hegemônica, fáceis de encontrar e reproduzir. É aí que atores como a EMTU e a CPTM desaparecem. É a partir daí que a noção de cidade fica constrangida à divisão política e administrativa, se descolando da metropolização, situação esta que cria análises anômalas, feitas numa perspectiva muito centrada em bairros nobres e centrais da capital, muito centrada em deslocamentos curtos e excepcionais. Em “Continuam tingindo a CPTM de cinza” e “Os 130 km de trilhos da CPTM esquecidos dentro da capital” o COMMU busca combater parte do provincianismo em questão.

Legenda: Linha 215 da EMTU: funciona como uma ponte que, em aproximadamente 70 minutos, conecta Ribeirão Pires, Grande ABC, à área central de Suzano, Alto Tietê, saindo do terminal vizinho à estação da CPTM da primeira e passando na porta da estação da CPTM na segunda

Para concluir, vou tentar dar mais um exemplo aqui: se eu vivo entre Mogi e Suzano, a cidade enquanto meu espaço de convívio é produto das interações que produzo a partir daí, ela não é embarreirada por linhas invisíveis num mapa cartográfico ou então, se Fulano é morador de um distrito como Ouro Fino ou Palmeiras de Suzano pode desenvolver uma relação ainda mais difusa, produzida por habitar uma área que fica entre dois municípios, em regiões diferentes, cada qual com um conjunto de municípios capazes de atrair pessoas, seja pelo trabalho, estudo ou entretenimento.

Caso 3: “há um modelo de desenvolvimento que concentra empregos, renda, lazer, educação e equipamentos no setor sudoeste”

É um exemplo que já foi, até certo ponto, combatido nos artigos abaixo, mas que é interessante ser retomado aqui, pois é uma afirmação falsa, pois não é absoluta e, quando propagada com força, revela que o interlocutor por trás da fala provavelmente não conhece tão bem São Paulo quanto ele acha que conhece.

A seção que você está lendo questiona a ideia de centralização absoluta por parte da Avenida das Nações Unidas e adjacências, sendo assim, são exemplos de leituras indicadas:

Todos os textos foram publicados pelo Coletivo.

Legenda: Estação Hebraica-Rebouças observada a partir da Estação Cidade Jardim

Alguns exemplos: São Miguel Paulista está na periferia da Zona Leste. É um dos maiores polos comerciais da cidade, estando nas primeiras posições da lista; Osasco também concentra em seu calçadão outro polo importante, que movimenta pessoas da sub-região Oeste; o ABC tem uma dinâmica própria nos deslocamentos, abrigando importantes equipamentos públicos, como a Universidade Federal do ABC, além de notável industrialização, assim, é absurdo chamar o ABC de região dormitório; finalmente, um último exemplo de polo: a Estação Estudantes, construída na década de 70, serve duas universidades privadas e está próxima de um shopping (o principal do Alto Tietê), supermercado (com Poupatempo, o que sozinho vale a menção), uma série de serviços públicos (Centro Cívico de Mogi das Cruzes) e tem no entorno uma variedade de bares, lojas e restaurantes, é uma centralidade, fica na ponta de uma linha da CPTM (Linha 11-Coral), tão longe de São Paulo que até o clima e a paisagem mudam (51 km separam a Estação Luz da Estação Estudantes), a brisa é fresca, a serra está ao fundo. Podemos afirmar que essas cidades e localidades talvez não briguem de igual em comparação com centros de maior porte, no entanto, não figuram como completos dormitórios. É falsa qualquer afirmação que trate os subúrbios atendidos pela CPTM como completos dormitórios, é verdade que muitos dos empregos oferecidos não são ideais, não são dignos em termos de salários, contudo, os subcentros existentes empregam, sobretudo no comércio.

Legenda: Foto diurna: vista da passarela que transpõe a Estação Estudantes daLinha 11-Coral, exibindo edifícios do bairro Mogilar com a Serra do Itapeti ao fundo, além da rodoviária e parte das plataformas da estação; foto noturna: vista do viaduto que transpõe a Linha 8-Diamante na altura da Estação Antônio João, exibindo edifícios empresariais de Alphaville ao fundo, a CSU à esquerda e o Parque Shopping à direita

Consequentemente, passa ser oportuno advertir sobre os perigos de uma visão extremamente simplista do território, que acaba atuando como um rolo compressor sobre as dinâmicas e a própria população, para tanto, cito um trecho do livro “Estrutura urbana e mobilidade espacial nas metrópoles”:

Portanto, a dimensão territorial importa muito para compreender as transformações urbano-metropolitanas recentes, já que os problemas da sociedade parecem cada vez mais relacionarem-se com problemas de ordem territorial. As mudanças na funcionalidade dos espaços e na sua organização social também se refletem na distribuição da população, o espaço de assentamento toma nova forma, podem surgir subcentralidades, mas tem permanecido uma integração funcional e hierárquica de organização social. Segundo Gottdiener (1993), desconcentração se refere ao aumento absoluto de população e à densidade de atividades sociais em áreas fora das tradicionais regiões e centros populacionais, implica tanto um movimento socioeconômico que sai das cidades centrais antigas para áreas mais afastadas quanto o surgimento de novas aglomerações e formação de densidade social em áreas mais distantes. Esse processo pode ser verificado sob escalas diferenciadas, como a da região ou mesmo do país.

Subcentralidade é, provavelmente, o termo mais ignorado nas discussões com teor progressista sobre temas como cidades, metrópoles e sistemas de transporte coletivo, no entanto, diferentemente de anos atrás, hoje temos em estações como Antônio João um shopping grande e um contact center (sede da CSU), empreendimentos que se traduzem em empregos mais próximos e deslocamentos mais curtos, principalmente se pensarmos nos extremos, por exemplo, o morador de Itapevi que está no primeiro emprego e trabalharia numa Contax ou Atento na Barra Funda, poderá trabalhar na CSU em Barueri. Parece ruim? Seria pior ainda precisando gastar, além do que levaria até Barueri, um tempo que variará de 30 a 50 minutos, caso não tivesse outra opção além de se deslocar até a capital paulista.

Para encerrar o Caso 3, vale citar que, segundo o estudo do IBGE intitulado “Arranjos Populacionais e Concentrações Urbanas do Brasil” (página 55):

“As duas maiores concentrações urbanas do País apresentam deslocamentos, para trabalho e estudo, em um patamar acima de 1 milhão de pessoas (Tabela 13). “São Paulo/SP” possui um total de 1 752 655 pessoas deslocando-se entre municípios, com 491 ligações. “Rio de Janeiro/RJ” possui 1 073 831 pessoas e 182 ligações. As maiores são registradas em “São Paulo/SP”, entre os Municípios de Guarulhos e São Paulo, e entre Osasco e São Paulo. No “Rio de Janeiro/RJ”, destacam-se as ligações entre Niterói e São Gonçalo, Duque de Caxias e Rio de Janeiro e entre Nova Iguaçu e Rio de Janeiro (Tabela 15).”

Observação: se o parágrafo acima não foi suficiente para tornar convidativa a leitura do estudo, confira o mapa abaixo, que exibe a riqueza de interações entre as várias cidades da Região Metropolitana de São Paulo (perceba, no entanto, que os critérios empregados pelo IBGE resultam numa concentração urbana ligeiramente diferente daquela considerada pelo Governo do Estado de São Paulo).

Legenda: Título original: “Mapa 2.6 Intensidade dos deslocamentos para trabalho e estudo na Concentração Urbana de São Paulo/SP”

Conclusão

Estamos diante de um verdadeiro reducionismo, tão grave, que chega a ser desrespeitoso. E sabe até quando ele vai acontecer? Até termos força e vontade de nos manifestarmos e começarmos a nos apropriar dos debates e lutas ligadas à cidade e à mobilidade em toda a Região Metropolitana de São Paulo. Nossa omissão e desorganização tem nos custado muito caro.




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