Duas linhas da CPTM podem parar nas mãos da iniciativa privada

Por Caio César | 13/06/2016 | 12 min.

Legenda: Trem da Linha 8-Diamante partindo da Estação Sagrado Coração, no município de Jandira
Mais uma vez a notícia de que o Governo do Estado de São Paulo recebeu uma MIP (Manifestação de Interesse Privado) por parte da Triunfo para uma PPP (Parceria Público-Privada) contemplando a concessão de duas linhas da CPTM veio à tona. Quais são as linhas? Que reflexões podemos fazer imediatamente? Quais sinais o governo tem dado até o momento?

Índice


A ideia de conceder a CPTM à iniciativa privada não é nova, na realidade, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos nada mais é do que uma empresa que planeja e projeta a expansão de uma malha que é totalmente dependente da contratação de empresas privadas para funcionar, seja na manutenção dos trens, passando pela limpeza das estações e atendimento de balcão, até chegar nas obras de modernização da infraestrutura.

Os perigos proporcionados por comparações simplistas envolvendo a PPP da Linha 4-Amarela (Luz-Butantã), comuns quando existem ameaças de greves e panes mais sérias, fizeram soar o sinal de alerta dentro do COMMU, em outras palavras: nós sabemos que não haverá resistência e que podemos pagar um preço muito caro por isso, com estagnação ou prejuízos durante muitos anos, afinal, a concessão tem duração prevista de pelo menos 30 anos, que pode não parecer muito no horizonte do longo prazo, porém, se traduzirmos o período dentro da história das linhas envolvidas, veremos que é bastante tempo.


Quais linhas estão em jogo?

Seria objeto de concessão o par de linhas que pertenceu à Fepasa no passado, ou seja, as atuais linhas 8-Diamante (Amador Bueno-Itapevi-Júlio Prestes) e 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú, com obras em andamento para expansão até Varginha). Resumidamente, a Linha 8 possui 35,29 km de extensão entre as estações Júlio Prestes e Itapevi, 6,33 de km de extensão entre as estações Itapevi e Amador Bueno, totalizando 41,62 km de extensão; a Linha 9 possui 31,32 km de extensão entre as estações Osasco e Grajaú. Ao longo dos 72,94 km das duas linhas, estão distribuídas 41 estações (20 no trecho principal da Linha 8, 3 na extensão operacional da Linha 8 e 18 na Linha 9), para se ter uma ideia do peso dos números, a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) opera uma rede com 68,5 km de extensão total e 61 estações distribuídas ao longo de cinco linhas.

A malha do Trem Metropolitano da CPTM nada mais é do que uma colcha de retalhos formada pela integração de três diferentes pares de linhas, a saber:

  • Linhas 7-Rubi (Jundiaí-Francisco Morato-Luz) e 10-Turquesa (Rio Grande da Serra-Brás): antiga linha Noroeste-Sudeste, que foi operada no passado pela CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos), sendo a ferrovia de origem a Estrada de Ferro Santos-Jundiaí;
  • Linhas 8-Diamante (Amador Bueno-Itapevi-Júlio Prestes) e 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú): antigas linhas Oeste e Sul, respectivamente, operadas no passado pela Fepasa (Ferrovia Paulista Sociedade Anônima), sendo a ferrovia de origem a Estrada de Ferro Sorocabana;
  • Linhas 11-Coral (Estudantes-Guaianazes-Luz) e 12-Safira (Calmon Viana-Brás): antigos tronco e variante da antiga linha Leste, que assim como a Noroeste-Sudeste, foi operada pela mesma CBTU, porém, a ferrovia de origem é a Estrada de Ferro Central do Brasil.

Em diversos contextos cada par de linhas possui peculiaridades e diferenças históricas marcantes. No caso das linhas 8 e 9, o programa de modernização empreendido pela Fepasa nas décadas de 70 e 80, além do desenvolvimento urbano paralelo e, em alguns casos, adjacente ao leito da ferrovia, são características que provavelmente tiveram relevância para viabilizar a MIP.

Legenda: Institucional da Fepasa sobre o programa de modernização. Foi produzido na década de 80, durante o governo estadual de André Franco Montoro

A empresa que manifestou interesse é a Triunfo Participações e Investimentos, que controla empresas atuando com infraestrutura, como portos, rodovias, ferrovias e até produção de energia elétrica, além disso, a TIISA (Triunfo Infraestrutura e Investimentos Sociedade Anônima) executou e executa diversas obras de infraestrutura, estando inclusive envolvida na construção da Linha 13-Jade (Eng. Goulart-Aeroporto).


Que reflexões podemos fazer imediatamente?

Atualmente a Linha 9-Esmeralda é o único sistema de alta capacidade que atende de forma consistente, embora com algumas deficiências, a região da Marginal Pinheiros/Avenida das Nações Unidas, o que significa dizer que a Linha 9 é um sistema de alta capacidade importante para o vetor sudoeste e a subprefeitura de Pinheiros, estando totalmente inserida num contexto de rápido e impressionante desenvolvimento imobiliário, contexto este que, por sua vez, não raramente está associado à desindustrialização e à falta de racionalidade na ocupação do solo, assim, não só a linha atende um importante cluster de centralidades que margeiam o rio, mas é também um elemento indispensável para sustentar a periferização das áreas de proteção de manancial na região do Campo Limpo e Grajaú, por exemplo; na outra extremidade, temos a Linha 8-Diamante, um interessante corredor ferroviário metropolitano que corta municípios bastante dinâmicos, passando pelo Centro de São Paulo (região da Estação Júlio Prestes), Zona Oeste de São Paulo (estações Palmeiras-Barra Funda, Lapa, Imperatriz Leopoldina e Domingos de Moraes), Centro de Osasco (Estação Osasco), divisa de Osasco com Carapicuíba (Estação General Miguel Costa) e Barueri (estações Antônio João, Barueri, Jardim Belval e Jardim Silveira), ou seja, se somarmos tudo isso, temos um conjunto riquíssimo de pólos de atração, que vai de áreas comerciais e industriais, a nós de conexão com áreas empresariais de peso (notadamente Alphaville), passando até por núcleos residenciais de baixa densidade e elevada metragem.

Legenda: Na primeira imagem, da Linha 8-Diamante, observa-se que uma das faces da Estação Domingos de Moraes se volta para um núcleo residencial depadrão elevado (© Google); na segunda, da Linha 9-Esmeralda, a Avenida das Nações Unidas e os diversos edifícios que modificaram a paisagem da região; na terceira, da Linha 8-Diamante, parte da CSU e uma paisagem marcada pelos edifícios construídos em Alphaville

O que quero dizer com tudo isso? Não estamos falando de linhas que apresentam um predominante quadro de fragilidade social extrema ou ainda, de absoluto desequilíbrio em termos de demanda, na verdade, a Linha 8 da CPTM é uma das mais equilibradas em termos de demanda e, com isso, eu quero dizer, não é uma linha pendular, do tipo que fica totalmente lotada apenas num único sentido. Confira os gráficos abaixo, elaborados pela Fupam, para ter uma ideia do perfil das duas linhas.

Legenda: Gráficos obtidos de “Plano diretor de inserção urbana da CPTM. São Paulo: Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, 2010”

Assim, precisamos pensar: como o setor privado vai remunerar o governo de forma satisfatória? Quais garantias teremos de que não haverá estagnação, perda de sinergia e integração com diferentes meios de transporte — por exemplo, a Linha 8-Diamante possui integração tarifária nas cidades em que a Benfica BBTT opera, contando inclusive com duas linhas dedicadas a atender quem se destina a Alphaville, as quais circulam exclusivamente com ônibus refrigerados.

Legenda: Validadores para a integração e ônibus com tarifa integrada, Estação Barueri

Os investimentos feitos pelo Governo do Estado de São Paulo, por meio da Fepasa e da CPTM, somam bilhões e bilhões de reais, sendo que apenas os investimentos da Fepasa, sozinhos, são sentidos até os dias atuais, pois não houve em nenhum lugar do país um programa de modernização tão abrangente, que literalmente reconstruiu duas linhas inteiras tão intensamente, tanto que foi preciso admitir que houve uma mudança de paradigma: o trem urbano havia morrido, no seu lugar, triunfava o trem metropolitano, dando caráter metropolitano à ferrovia.

Diante do comportamento de inúmeras pessoas que já observamos em redes sociais como Facebook e Twitter, é possível suspeitar que a imagem da Linha 4-Amarela, operada pela ViaQuatro (ligada à CCR, que detém a concessão de diversas rodoviais paulistas) com subsídios governamentais, que acabam por tornar a concessão financeiramente prejudicial, já que o poder público precisa pagar pelos passageiros que deveriam embarcar em estações que não foram entregues pelo Consórcio Via Amarela, não é minimamente afetada por nada disso, criando uma espécie de exemplo positivo de privatização, sendo que o setor privado não paga e não pagará a maior parte da conta. Fragmento do texto “Crise no metrô: o que não foi dito”, de Raquel Rolnik:

Só que… se a entrega das novas estações atrasa, o governo é obrigado a cobrir o valor previsto no contrato para aquele ano, ou seja, tem que pagar para os concessionários o que os usuários destas novas estações pagariam — se elas existissem!

Para o concessionário privado, o risco é zero: sem as novas estações, ganham do mesmo jeito.

Quais as vantagens de transferir as atividades estatais de forma tão forte, além do conforto ideológico para alguns? Sendo pragmático, será que não seria melhor refinar o modelo de contratação atual da CPTM e buscar fortalecer as relações entre a infraestrutura dela, os planos diretores municipais, os planos metropolitanos estaduais e as intenções e anseios de investidores e outros atores da sociedade civil?

Depois de assinado, o contrato não poderá ser rescindido facilmente. É preciso aqui listar que conceder a operação da linha para o setor privado não parece tornar mais fácil a solução dos seguintes problemas:

  • Carência de um planejamento voltado à extensão operacional de Amador Bueno e a região atendida;
  • Ausência de ações para mitigar as invasões do leito na região da Lagoa de Carapicuíba, que conta com moradias precárias e que precisa ser solucionada dentro de um plano de moradia social, recuperação ambientalmente responsável da lagoa e qualificação de sua orla;
  • Ausência de ações para mitigar outras invasões do leito, também na região de Carapicuíba, incluindo consumo de crack, o que novamente passa pela integração da Linha 8 com o tecido, maior necessidade de sinergia entre governo estadual e municipal, maior necessidade de programas habitacionais e também de programas para redução de dano e vulnerabilidade social;
  • Falta de garantias para construir a ligação entre a Linha 8 e Alphaville, já projetada pela CPTM e depois modificada para uma ligação maior, mais estruturante e possivelmente muito mais cara;
  • Diálogo limitado da Linha 9 com a outra margem do Pinheiros, bem como falta de garantias para construir a ligação expressa entre a sub-região Oeste e a Zona Oeste, racionalizando num único serviço adicional todo o fluxo de demanda que hoje utiliza as linhas 8 e 9, as duas de caráter predominantemente parador.

Existem ainda outras questões que poderíamos mencionar, como o término da modernização das estações Osasco e Pinheiros, a construção de uma nova estação da Linha 9 (esta prevista em parceria com o ente privado), a delicada integração em Santo Amaro, a ausência de integração no Centro de São Paulo (subutilização da Estação Júlio Prestes), reconstrução da Estação Antônio João, entre muitas outras.

Legenda: Modernização da Estação Osasco: paralisada há vários anos

Agora… será que a PPP vem para solucionar tudo isso? Como pode ser visto, não estamos falando de uma linha nova e que mal passa por áreas periféricas, caso da Linha 4-Amarela, estamos falando de duas linhas que, ainda na década de 80, já formavam um sistema e eram operadas como tal pela Fepasa.


Quais sinais o governo tem dado até o momento?

Conforme reportagem datada de 09/06/2016 da Folha de S.Paulo, o Governo do Estado de São Paulo tem se mostrado favorável, além disso, o secretário atual de transportes, Clodoaldo Pelissioni, que precedeu Paulo Menezes Figueiredo na presidência da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô), já tomou providências para continuar com as intenções de ampliação das concessões. Baseando-nos no Diário Oficial, podemos ver que o governo já está se preparando:

O Secretário dos Transportes Metropolitanos, resolve

Artigo 1º — instituir, junto ao Gabinete do Secretário dos Transportes Metropolitanos, Comissão de Trabalho para elaboração da minuta de edital de concorrência de âmbito internacional e seus anexos, com a função de subsidiar o Grupo de Trabalho, criado pelo CDPED — Conselho Diretor do Programa Estadual de Desestatização, conforme Ata da 216ª Reunião Ordinária realizada no dia 20–10–2015, incumbido de consolidar a modelagem final e diretrizes da licitação da concessão do Projeto de Parceria do Chamamento Público realizado sob o 002/2015, publicado no D.O, edição do dia 20–11–2015.

Para quem não sabe, o governo paulista, sem alternância de poder há mais de duas décadas, mantém até os dias atuais o Programa Estadual de Desestatização, nascido em 1996 e cujas atas de reuniões do conselho diretor (CDPED) podem ser acessadas em área específica do site da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP). O chamamento a que o secretário se refere foi anunciado em texto amigável no Caderno Executivo I do Diário Oficial, tamanha a amplitude do programa de concessões.

Voltando pouco mais de dez anos no tempo, quando da execução do finado e parcialmente fracassado Projeto Integração Centro, o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD, um banco de fomento) exigiu a contratação de um conselheiro para viabilizar a concessão da empresa, conforme podemos ler numa cópia arquivada de um espelho do antigo site do projeto:

3.COMPONENTE INSTITUCIONAL, que inclui a contratação de um Financial Adviser, que conduzirá o processo de concessão da CPTM ao setor privado.

Ainda sobre as intenções do final da década de 1990 e dos primeiros anos do novo milênio, em uma cópia arquivada do site da CPTM em 13/07/2001, lemos:

Plano Diretor 2000–2020

Premissas Funcionais

  • Linhas independentes A, B, C, D, E e F, G (exclusividade de operação)
  • Linha Integradora I / Brás — Barra Funda (controle e supervisão)
  • Segregação do tráfego de carga em linhas próprias
  • Concessão (agentes públicos e privados)

Como podemos observar olhando para o presente, as intenções acabaram não se concretizando. Outros dois exemplos de PPPs que ficaram na gaveta são: o Expresso ABC, além da outrora alardeada Linha 14–Ônix, uma ligação de caráter expresso e seletivo entre o Centro de São Paulo e o Aeroporto Internacional, cujo número e pedra preciosa já pertencem hoje a outra linha, que ligará Guarulhos ao Grande ABC, passando pela periferia da Zona Leste, em reportagem de 2010 do Estadão, lemos:

O governo agora reconhece que segurou a licitação por não haver interesse do mercado e culpou o clima de incerteza a respeito do futuro de Cumbica. Goldman afirmou que não há uma definição clara do governo federal sobre a construção do terceiro terminal de passageiros e por isso os empresários questionam se haverá demanda suficiente para operar o serviço de trens.

Ironicamente, o terminal aeroportuário em questão já saiu, já opera e mesmo assim o mercado não manifestou interesse.


Conclusão

As tentativas de concessão da malha da CPTM são controversas e, até o momento, infrutíferas, no entanto, o governo já emplacou a concessão da Linha 4-Amarela (construída e operada de forma parcial há mais de 6 anos) e da Linha 6-Laranja (em construção, com um modelo diferente de PPP) no âmbito da Companhia do Metropolitano de São Paulo, aparentemente, uma malha existente, com linhas bastante heterogêneas e inserida numa dinâmica complexa, tem sido subestimada pelo mercado, que aparentemente segue a tímida narrativa midiática. A manifestação da Triunfo rompe com o desinteresse do mercado existente até então e, dentro do histórico existente, pode ser bem recebida, o que não significa que seja financeiramente interessante perante o Palácio, que já compromete recursos com a Linha 4 e tenta corrigir os erros na Linha 6, diante de um quadro de menor arrecadação e maiores incertezas. Uma PPP pouco arrojada pode até sair do papel, mas caso saia, serão décadas de estagnação, cuja conta será faturada não em reais, mas sim, será paga pelos passageiros, sendo traduzida de forma menos tangível, seja pela maior fragmentação da rede, seja pelo enfraquecimento institucional da CPTM, seja pela redução de ações de expansão e modernização.




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