Por Caio César | 26/11/2016 | 8 min.
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Pra começo de conversa
O primeiro ponto que precisa ser deixado muito claro, é que o termo privatização é usado de forma indiscriminada e, nem sempre, clara. Sendo assim, muitas empresas privadas são ignoradas (o ônus é totalmente transferido à figura do Estado, contratante e/ou concedente) ou ganham absurda visibilidade (o ônus, novamente, costuma ser transferido à figura do Estado, agora por meio de comparações no quesito eficiência, como se fossem simples ou possíveis de serem feitas). Exemplos:
- Quando encontramos reclamações sobre a limpeza dos trens e estações da CPTM, empresas como a Tejofran não são citadas, porém, a CCR é lembrada quando o assunto é a Linha 4-Amarela (Luz-Butantã). É curioso, pois empresas como SPTrans, EMTU e CPTM são, na maior parte do tempo, gestoras de contratos privados, com quadro funcional próprio restrito. Na SPTrans, os terminais são controlados privadamente pela Socicam, bem como os próprios ônibus, operados por empresas reunidas em consórcios e antigos permissionários reunidos em cooperativas (que recentemente foram transformadas em empresas). Na CPTM, limpeza, atendimento de balcão, atendimento telefônico, parte do serviço de manutenção, parte da gestão e fiscalização das obras, tudo isso é feito por empresas privadas, contratadas via licitação e geralmente reunidas em consórcios.
- Quando encontramos elogios aos serviços da CCR ViaQuatro, questões ligadas ao modelo de PPP (parceria público-privada) adotado são colocadas em segundo plano, na realidade, não são sequer colocadas. A ViaQuatro não é enxergada como concessionária, mas tratada como proprietária de uma infraestrutura que não detém e nem projetou. A figura do Estado passa a ser ao mesmo tempo ignorada ou depreciada, ainda que seja responsável por garantir o equilíbrio financeiro do contrato e tenha pago, por meio de empréstimos e recursos próprios, a maior parte da brincadeira. Parece justo?
Em suma, precisamos ter em mente que (i) no campo da mobilidade urbana, a iniciativa privada se faz presente de maneira constante e diversa, atuando com pequenos e grandes contatos de prestação de serviços e; (ii) tratar concessões como privatizações é um erro, pois joga uma cortina de fumaça escondendo quem paga a maior parte da conta.
A ilusão provocada por falsas premissas
Monitorando as páginas da Companhia do Metropolitano, Companhia Paulista de Trens Metropolitanos e Sindicato dos Metroviários de São Paulo no Facebook, é relativamente fácil encontrar passageiros descontentes e apontando a privatização como solução para todos os problemas. Pois bem, é uma ilusão.
Não dá pra ser menos categórico aqui. É uma ilusão perigosa, que se levada a cabo por um governante populista e sem escrúpulos, poderá nos colocar numa grave crise de infraestrutura. Sim, pode ficar pior, sempre pode.
Para o sistema de trilhos ser realmente privatizado, a iniciativa privada teria de adquiri-lo. Custaria dezenas e dezenas de bilhões de dólares. Agora… caros leitores e caras leitoras, sabem quem vai aportar bilhões de dólares para comprar um sistema que mal se paga (Metrô) ou opera com prejuízo (CPTM)? Ninguém! Mesmo num cenário em que o sistema fosse sucateado para ser vendido a preço de banana, o custo para recuperá-lo seria exorbitante, como tem sido, aliás, visto que a maior parte da infraestrutura, que em algumas linhas remonta aos tempos do regime imperial, estava em estado de calamidade nas décadas de 1980 e 1990.
Só resta conceder, portanto. Só que tem um probleminha: ferrovias precisam de empreendimentos acessórios para serem concedidas de forma racional, sem eles, se tornam “SuperVias” e “Metrôs Rio”, servindo para blindar a omissão do poder público e acumulando pouca evolução ao longo das décadas. Novamente, é uma questão de custo. Como a iniciativa privada vai aportar bilhões de dólares, de forma relativamente constante, para recuperar a malha da SuperVia? Seria uma exercício insustentável de filantropia. Como a mesma iniciativa privada vai aportar quantias ainda maiores se quiser expandir a malha em subterrâneo? Não vai. Os investimentos mais vultosos continuam sendo feitos pelo Estado, que blindado, os faz de maneira ainda mais limitada, para não falar no comprometimento do quadro funcional de suas estatais (que correspondem ao poder concedente), o que reduz a qualidade dos planos e projetos, prejudicando o futuro. Viveríamos um duradouro pesadelo caso São Paulo enveredasse pelo mesmo caminho.
Observação: caso tenha ficado curioso, a Companhia Estadual de Transportes e Logística (CENTRAL) é a estatal responsável pela malha concedida à Odebrecht Transport/SuperVia, enquanto a Companhia de Transporte Sobre Trilhos do Estado do Rio de Janeiro (RIOTRILHOS) é a estatal responsável pela malha concedida à Invepar/Metrô Rio.
Os tais empreendimentos acessórios
O que é um empreendimento acessório? É um empreendimento que está, de alguma maneira, atrelado e associado com uma determinada infraestrutura, inclusive em termos de receita. São shoppings centers, galerias comerciais, condomínios e conjuntos de uso misto, estacionamentos, entre outros.
Uma concessão só faz sentido se estiver atrelada a empreendimentos acessórios, que vão gerar receita extra-tarifária. Mundialmente, um exemplo pode ser encontrado em Hong Kong, porém, mesmo lá, o governo é dono de aproximadamente 76% da MTR Corporation. Conforme seu site oficial, o processo de abertura do capital para investidores privados se deu na metade de 2000:
The Company was re-established as the MTR Corporation Limited in June 2000 after the Hong Kong Special Administrative Region Government sold 23% of its issued share capital to private investors in an Initial Public Offering. MTR Corporation shares were listed on the Stock Exchange of Hong Kong on 5 October 2000.
E, de fato, faz muito sentido que o governo continue controlando a maior parte da empresa, já que existe uma estreita relação entre oferta de infraestrutura e potencial de exploração imobiliária. Hong Kong, para aumentar o desafio, não pode crescer indefinidamente e funciona quase como um país dentro de outro. Já em São Paulo, sem um controle rígido ou mesmo uma maior e mais complexa parceria público-privada, a orla metroferroviária fica ou subutilizada ou supervalorizada, com talvez algumas poucas exceções. Desperdício de infraestrutura.
Infelizmente, é difícil encontrar publicamente discussões a respeito do que estamos colocando aqui, muito menos vimos surgir no país qualquer tentativa parecida com a da MTR de Hong Kong. Também infelizmente, a Grande São Paulo foi marcada por uma exploração irresponsável do solo, com loteamentos de má qualidade, numa periferização descontrolada e perversa, fruto da ferocidade da especulação imobiliária e da gritante desigualdade social, tudo isso com registros notáveis, como o documentário abaixo:
Uma melhor ocupação do solo passa pelo poder de regular e intervir na ocupação da orla ferroviária, garantindo menores deslocamentos e moradia mais próxima do transporte de alta capacidade. Mesmo numa lógica de concessão, com o devido aparato legislativo, seria possível conciliar interesses, mas algo assim tem um viés muito mais estruturalista, que não predomina na forma atual de fazer política, muito clientelista e pouco preocupada com os efeitos colaterais. Precisamos fazer pressão.
E nós, usuários? Então, vem cá…
Navegando rapidamente pelas tortuosas águas do Facebook, os comentários fazem parecer que a iniciativa privada, colocada em um pedestal, está sendo elegida como a grande salvadora, sem qualquer profundidade ou reflexão, apenas comparações rasas e perigosas. Pode ser desespero? Pode, é até compreensível ficar desesperado, mas também pode ser puro e simples imediatismo… que inevitavelmente será capturado, mesmo que esteja rodeado por incontestável indignação com a qualidade e abrangência dos serviços de transporte.
É preciso parar de tratar o transporte como produto de prateleira. Infraestrutura não é produto de prateleira. Não adianta você, usuário da Linha 3-Vermelha (Itaquera-Barra Funda), achar que concedê-la para a CCR vai transformá-la numa Linha 4-Amarela. Não vai! Itaquera não vira Butantã por causa disso, a Vila Matilde também não se transforma em Pinheiros, os 22 km da linha não viram 13 km. O motivo é simples: infraestrutura é uma condicionante, é algo que transforma, que determina como as pessoas vão viver e, ao mesmo tempo, se torna refém de como elas vivem.
Para ter linhas mais equilibradas, precisa ter maior equilíbrio no território servido por elas, ou seja, dar uma atenção especial para a periferia e subcentros existentes. É aquele papo chato sobre reduzir desigualdade, sabe? Então, é isso aí mesmo, não tem escapatória. A Linha 4-Amarela espelha muito bem os níveis de desenvolvimento e a multiplicidade de conexões possíveis, enquanto uma Linha 3-Vermelha exibe o clássico atendimento suburbano: pendular e superlotado. É planejamento urbano puro. Precisa de mais investimentos, de mais infraestrutura? É claro que sim, vide nosso artigo com 15 medidas para turbinar a CPTM na Zona Leste, contudo, os investimentos precisam ter contrapartidas — é aí que entra a formulação de políticas públicas, impedindo que os erros do passado se repitam.
E, de novo, não adianta achar que envolver o setor privado também vai tornar tudo uma panaceia, não vai. Primeiro, se a cidade que temos (e aqui, não falo apenas da capital, falo de toda a Região Metropolitana de São Paulo) cresceu sem planejamento, significa que também houve muito pouca regulação e o setor privado produziu muitas aberrações metrópole afora; segundo, o setor privado já participa ativamente de operações urbanas, inclusive desprezando aquelas mais periféricas; terceiro, quando a empresa Porte apresentou seus planos para construir uma série de empreendimentos numa rua paralela à Radial Leste, sem depender de qualquer operação urbana capitaneada pela Prefeitura de São Paulo, as reações mais comuns no anúncio facebookiano da empresa foram: desconfiança, chacota, macartismo e repulsa, além da confusão entre público e privado. É mole?
Não vai ser fácil
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