Por Caio César | 16/03/2017 | 7 min.
Primeiramente, não pretendo aqui fazer uma crítica elogiosa à Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, CPTM, mas provocar aqueles que usam e que não usam os serviços da estatal, ou mais especificamente, provocar aqueles que usam esporadicamente, como em… situações de greve daquela outra empresa estatal, a Companhia do Metropolitano de São Paulo, Metrô.
Como muito do que escrevo, há um verniz social aqui, ou seja, muito do que pode ser lido a seguir dialoga com opiniões pinçadas naquele ou naquele outro canto das redes sociais. É notável que ainda há muita violência simbólica quando a CPTM entra em discussão nos círculos mais progressistas, o que, creio eu fortemente, se deve à elevada marginalização que ainda existe em relação à malha da estatal, ou pior ainda, seja pelo puro desconhecimento mesmo, como se o Trem Metropolitano merecesse atenção apenas em… situações muito específicas.
São Paulo amanheceu com parte de sua rede de transporte sobre trilhos adormecida. O estado de adormecimento foi reforçado pela operação quase que exclusiva dos ônibus do Sistema Local da SPTrans, cujo papel é fornecer um atendimento mais íntimo dos bairros, servindo também como uma espécie de serviço alimentador dos corredores, terminais com ônibus do Sistema Estrutural (este por sua vez conta com veículos maiores e linhas mais longas) e, principalmente, alimentador do sistema metroferroviário. Pois bem, como dito, uma parte estava adormecida, pois nenhuma linha da CPTM foi paralisada, o que significou que a cidade voltou um pouco, ainda que artificialmente, no tempo. E sabem por qual motivo um grande efeito flashback dominou São Paulo? Pelo fato da rede da CPTM atender a maioria dos eixos de crescimento que levaram ao surgimento daquilo que conhecemos hoje como São Paulo, não meramente a capital, mas boa parte da Grande São Paulo, incluindo a capital.
Pense nos eixos: norte, sul, leste, oeste. A CPTM está presente em todos. Para o leste, duas linhas, 11-Coral e 12-Safira, sozinhas representam mais de 80 km de trilhos — veja só! Quase o tamanho da malha da Companhia do Metropolitano — e cortando uma das mais populosas regiões do continente; para o sul, nas margens do Pinheiros, uma linha de baixa importância da extinta Estrada de Ferro Sorocabana, atualmente denominada Linha 9-Esmeralda, se tornou a mais abrangente infraestrutura de alta capacidade dos novos centros metropolitanos da capital (praticamente sinônimo de Vila Olímpia, Berrini e Faria Lima); para o norte, atravessando o Tietê em direção a Jundiaí, uma parte dos 60 km de trilhos da Linha 7-Rubi corta bairros periféricos consagrados, como Perus e Pirituba, sem deixar de atender centralidades ainda incipientes, como o Pró-Polo de Caieiras; em direção ao oeste conurbado e populoso, a linha que levou de facto ao surgimento do termo “Trem Metropolitano”, hoje denominada Linha 8-Diamante, avança por importantes subcentros, como Osasco, Carapicuíba e Barueri, sem deixar de lado a Lapa e Barra Funda, já na capital paulista; finalmente, o sul da Zona Leste e o Grande ABC também são atendidos por mais uma linha, 10-Turquesa, numa das mais interessantes concentrações urbanas do país.
Talvez seja desconfortável pensar que São Paulo amanheceu com mais metrô do que noticiou a imprensa, mas é verdade. E vou além: há mais de uma década e meia São Paulo tem amanhecido assim. Acima de qualquer ambiguidade institucional ou paixão ideológica, deveria prevalecer um mínimo de razão e técnica. O que a CPTM tem operado, o que a CPTM nasceu para modernizar e operar, nada mais é do que um sistema de metrô, convertido para tal a partir de antigas ferrovias, que desprovidas de políticas públicas adequadas, tiveram seu prestígio reduzido a pó.
Para se ter uma ideia do peso da CPTM dentro da capital, vale adaptar um slide da recente apresentação feita pelo atual presidente da estatal durante a 22ª Semana de Tecnologia Metroferroviária:
Para se ter uma ideia de como a malha dialoga com o surgimento de bairros já consagrados, embora nem sempre observados com a merecida atenção, vale citar que, segundo a monografia de Wanderley dos Santos acerca do bairro da Lapa, “A Estrada de Ferro Santos Jundiaí (antiga São Paulo Railway) foi o fator primordial do progresso lapeano”, além de apresentar um belíssimo mapa, que mostra que parte do arruamento do bairro não mudou (vide a região do Largo da Lapa) na página 60.
Ainda, a monografia de Maria Celestina Teixeira Mendes Torres acerca do bairro do Brás, datada de 1985 (2ª edição), traça um panorama acurado e que merece ser recuperado por meio de uma citação:
Os trilhos das ferrovias são colocados no nível dos rios. Margeando o Tamanduateí chegam a São Paulo os da São Paulo Railway. Com uma quantidade apreciável de desvios, a S. P. R. determinou a formação de uma faixa industrial, formando um arco a leste e ao norte do centro de São Paulo, numa zona de terrenos baixos e úmidos, e, por isso mesmo, abandonados durante muito tempo. A bacia do Tietê será também seguida pela Estrada de Ferro Central do Brasil vinda de leste e, mais tarde, pela Estrada de Ferro Sorocabana, vinda de oeste.
Desta maneira, a S. P. R. e a Estada de Ferro Central do Brasil irão exercer decisiva influência no povoamento e na valorização dos terrenos dos bairros do Brás e da Moóca, onde se instalará a maioria dos trabalhadores, atraídos pela oferta de trabalho e pelo baixo preço de terrenos considerados insalubres em virtude das inundações a que estavam sujeitos.
Ou seja, caro(a) leitor(a), o que está em jogo aqui é a perversidade de uma narrativa historicamente imprecisa, pouco metropolitana, nada técnica e, que acaba por ter efeitos indesejados: contribuir para que fenômenos como a especulação imobiliária continuem acontecendo sem uma reflexão aprofundada do tema, bem como não ser funcional para o estabelecimento de uma luta mais sólida por melhor transporte coletivo ou ainda, por uma melhor oferta do tripé moradia, lazer e emprego.
Vamos a outro exemplo: o Caderno de Propostas dos Planos Regionais das Subprefeituras para a Macrorregião Leste 1 aponta, na página 6 que:
No tocante à formação do território, a região Leste 1 do município teve seu crescimento impulsionado pela presença da ferrovia, instalada na segunda metade do Séc. XIX. Até então, somente o núcleo central e os núcleos bandeiristas (Penha e São Miguel Paulista, no leste) tinham alguma ocupação urbana. Já em 1913, o Brás apontava uma expressiva taxa de ocupação de seu território com destaque para a expansão fabril, tanto em direção à Penha, quanto para os núcleos do Ipiranga e Vila Prudente.
Ora, o trecho acima dialoga diretamente com as linhas 10-Turquesa (Ipiranga e Vila Prudente), 11-Coral (Penha, atendida no passado pela estação homenageando o ex-governador Carlos de Campos, suplantada pela Estação Penha da Linha 3-Vermelha, construída usando o leito da Estrada de Ferro Central do Brasil) e 12-Safira (São Miguel Paulista, mas no passado também parte da região da Penha, com a já demolida Estação Agente Cícero)! Não me parece justo insistir numa frágil cortina de fumaça apenas pela ausência da famigerada seta de duas pontas da Companhia do Metropolitano.
É preciso também fazer o alerta de que qualquer noção do que seria um metrô, ou seja, um metropolitano ou uma ferrovia metropolitana, imposta pelo provincianismo da Companhia do Metropolitano de São Paulo, precisa ser questionada diante da noção de subúrbio comentada por Marcos Kiyoto com base em Langenbuch (página 36):
- Espaço urbanizado espacialmente separado do contínuo urbano original, em um primeiro momento, que, com o desenvolvimento do núcleo urbano central e do próprio subúrbio, acaba por ser englobado pela conurbação.
- Nasce da impossibilidade de uma população funcionalmente urbana habitar na região central. Funcionalmente ligado ao núcleo, faz parte do mesmo processo produtivo, o que resulta numa forte migração pendular.
Mais do que nunca, o nível das críticas e do debate precisa subir, indo além da limitada vivência da parcela mais “vilamadalenista” do campo progressista (o que inclusive levanta sérias questões sobre a legitimidade do discurso) ou das pouco comprometidas coberturas da mídia hegemônica.
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