Pare de tratar o transporte público como produto de prateleira

Por Caio César | 15/09/2017 | 7 min.

Legenda: Modelos para montar (trólebus da SPTrans e trem da Companhia do Metropolitano de São Paulo)
Frases prontas. Discursos eloquentes. Bordões na ponta da língua. Assim são muitas das reclamações sobre a infraestrutura de transporte. Que tal refletir a respeito?

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Insatisfação nas redes

O Twitter e o Facebook se tornaram verdadeiros repositórios de insatisfação, acumulando resmungos e reclamações quando o assunto são os sistemas de transporte coletivo que atendem a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), incluindo a capital, enfim, aquilo que popularmente chamamos apenas de “transporte público”.

A questão central é que muitas das manifestações de insatisfação que foram deixadas nas redes sociais, infelizmente, não parecem conectadas com um desejo verdadeiro de transformação da realidade. O bordão “até quando?” deveria ser melhor empregado. Se o passageiro insatisfeito tira de si até a necessidade de refletir sobre aquilo que supostamente lhe incomoda diariamente, sobra o quê?

Até quando vamos nos eximir de nossa parcela de culpa? Não é a primeira vez que falamos a respeito (veja aqui e aqui).


Não haverá um salvador

Respondendo à pergunta da seção anterior, eu diria que sobra acreditar em soluções mágicas e imediatistas, é claro! A situação apontada anteriormente também nos leva a outro problema: esperar o surgimento de “Messias” capaz de resolver tudo, um salvador.

Atualmente a noção equivocada de uma operação concessionada à iniciativa privada (sinônimo de privatização, na maioria dos contextos) tem assumido o posto de “Messias”, para desespero daqueles que conhecem os casos da SuperVia e da extinta Trenes de Buenos Aires (TBA), esta última responsável por matar 50 passageiros e ferir mais 700 no nada longínquo ano de 2012.

Ou seja, temos uma massa de pessoas insatisfeitas (talvez até desesperadas) que elenca uma solução que pode ser, na verdade, uma oportunidade para tornar tudo ainda pior. E a crença aparentemente se apoia na concessão patrocinada de uma linha minúscula que atualmente tem seis estações em funcionamento. Qualquer candidato populista que encampar a ideia receberá apoio, a exemplo do que tem sido observado na capital paulista, dado o resultado das últimas eleições.

É indispensável frisar que o longo episódio envolvendo a TBA foi gravíssimo e precisou de uma tragédia para chegar ao fim. Aqui vale uma citação de três parágrafos de uma reportagem do UOL:

Em sua coluna no jornal espanhol El País, o jornalista e escritor argentino Martín Caparrós disse que o acidente já “era esperado” e é resultado de uma “sucessão de causas perdidas”. Ele relembra o tempo em que a ferrovia estatal do país tinha 40.000 quilômetros e empregava 190.000 trabalhadores. Hoje, a malha ferroviária é de 7.000 quilômetros e emprega pouco menos de 20 mil pessoas.

Em declaração ao jornal Página 12, o titular da Auditoria Geral da Nação, AGN, Leandro Despouy, disse que o acidente foi “consequência direta do descumprimento de normas básicas” e já seria um motivo para o governo encerrar seu contrato com a TBA. Segundo Despouy, em um relatório de 2008 a AGN já havia classificado a situação do serviço ferroviário como “desastrosa” e que as mudanças feitas até então não eram suficientes para “evitar acidentes”.

“TBA já protagonizou vários incidentes e, em alguns casos, acidentes graves, como o que ocorreu em Flores”, disse Despouy, em referência ao acidente em setembro de 2011, quando um ônibus e dois trens colidiram no bairro de Flores, deixando 11 mortos e 212 feridos.

Legenda: Fotos do arquivo do jornal La Nación: El año pasado murieron 52 personas al chocar un tren del Sarmiento en Once e [Once:

Ora, lendo os parágrafos, é notável que o Brasil repetiu os mesmos erros, pois desmanchou a malha da Rede Ferroviária Federal (RFFSA) e foi presenteado com concessionárias como a América Latina Logística (ALL) e a SuperVia, ambas protagonistas de diversos acidentes. O país “desaprendeu” a construir ferrovias e o Governo do Estado do Rio de Janeiro (no caso da SuperVia, concessionária da malha da obscura estatal CENTRAL) foi lobotomizado e não consegue planejar e fiscalizar com eficiência. Na ação judicial que versa sobre o péssimo estado de conservação da Estação Barão de Mauá, fica claro que não há nem mesmo estrutura administrativa para que o poder concedente preserve documentos (pág. 27):

Foi informado que o segundo andar está ocupado pela “Central Logística”, sendo que a maioria das salas está desativada. Algumas salas estão ocupadas com caixas de documentos históricos arquivados, sem refrigeração, conforme informado pela Museóloga que estava responsável pelo local.

As palavras do poder judiciário, na verdade, foram duras e reiteram a calamidade provocada por uma política privatizante e populista (pág. 19):

A situação da Estação Barão de MAUÁ (Leopoldina) é no mínimo lamentável. Como também a atitude da SUPERVIA, no que tange à manutenção do imóvel, nesse tempo todo em que está à frente do mesmo na qualidade de concessionária.

O estado deplorável do imóvel é digno de dar vergonha. Se tal situação ocorresse num país de 1º mundo, dito desenvolvido, a empresa responsável (assim como a entidade maior) viria a público pedir desculpas à população. Não se consegue imaginar uma situação como essa da Estação Leopoldina num país europeu que, ao contrário do nosso, não fecha os olhos para a história e para os signos representativos da cultura nacional.

Ainda sobre a sentença do poder judiciário (ver também páginas 20, 23, 25, 38, 41 e 43), esta resume de maneira impecável os resultados da minimização do Estado, alienando seu papel social e criando um passivo para além da esfera econômica, cujo resultado se traduz na mais absoluta incapacidade, uma verdadeira acefalia institucional, patrocinada por certas ideologias que se furtam de fornecer respostas aos problemas que prometem solucionar e aos problemas que criam.

E como se não bastasse um governo estadual sucateado, o mesmo aconteceu com a secretaria de transportes da prefeitura da capital fluminense, conforme revelou o belo jornalismo investigativo da agência Pública em 11/07/2017:

A perícia demonstra por que são os empresários que dão as cartas no transporte carioca. Por meio dos consórcios ou sindicatos patronais, como a Rio Ônibus, eles “propõem a maior parte das alterações em linhas e frota”. Por sua vez, a secretaria “tem dificuldade para avaliar solicitações dos consórcios e mais ainda para propor alterações”. O documento, datado de 24 de junho de 2014, vai além: “No reajuste das tarifas e análise de resultado dos consórcios, não existe pessoal com formação em contabilidade/economia para conseguir fazer análises e discussões mais robustas em respostas às solicitações do consórcio”, constata a equipe da PwC.


O conhecimento liberta

Há cerca de um mês atrás uma leitora revelava acreditar que o COMMU era voltado e feito por funcionários do sistema de trilhos, mais especificamente da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. Ledo engano.

O acúmulo de conhecimento técnico por parte do COMMU se deve à crença de que o diálogo com o poder público se torna mais fácil quando a população detém informação e busca entender do assunto para não ser ludibriada.

No fundo, não seria necessário acumular conhecimento técnico se a realidade fosse diferente. Aliás, mesmo acumulando algum grau de conhecimento, não é exatamente fácil dialogar. Existem situações — e não são poucas — nas quais o que precisávamos mesmo era de mais atores (ou seja, mais organizações à sociedade civil) “falando a mesma língua”, de forma a influenciar políticos e eleitores e, no final das contas, ter muito mais gente tratando do assunto e se preocupando com ele.

Outro aspecto importante é que acumular conhecimento técnico não significa produzir conteúdo legível apenas por quem detém o mesmo tipo de conhecimento. Foi assim quando abordamos as questões ligadas à Estação Luz, ao enterramento dos trilhos no eixo Lapa-Brás ou fizemos quatro críticas estruturais à Linha 9-Esmeralda, em todos os casos, escrevemos mirando um indivíduo que deseja compreender melhor os problemas de mobilidade na RMSP para, talvez, se engajar algum dia. Chegamos até mesmo a tentar desmistificar alguns conceitos, caso do loop operacional e de um tipo de intermodalidade.

Entender aspectos do funcionamento dos sistemas de transporte nos ajuda a raciocinar mais claramente e emitir pareceres ponderados, reduzindo o risco de produção de um discurso que reforça estereótipos, mantendo quem utiliza o transporte coletivo numa posição marginalizada.

Se você busca compreender os problemas e também compreende que precisamos de uma massa crítica de pessoas que usam e dependem do transporte público, então está no caminho certo, pois já deve ter percebido que tratar infraestrutura como produto de prateleira ou serviço não-essencial simplesmente não funciona, ou pior ainda, produz graves prejuízos socioeconômicos.


Conclusão

Discursos fáceis são verdadeiras armadilhas, instrumentam indignação legítima e podem apontar para falsas soluções. Desconfie de supostas soluções fáceis. Nada substitui a criação de consciência e a união popular. Absolutamente nada.

E sim: as imagens do acidente da TBA e a plataforma da Estação Barão de Mauá foram selecionadas com a intenção de chocar ou pelo menos provocar. Como possível atenuante, depois da reestatização, o governo argentino tem investido em novos trens, na recuperação da via permanente e até mesmo a icônica Estação Retiro foi restaurada.




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