The Guardian reproduz senso comum em reportagem sobre São Paulo

Por Caio César | 01/12/2017 | 13 min.

Legenda: Trem alinha sentido Brás na Estação Engenheiro Goulart da Linha 12-Safira
O senso comum não tem contribuído para a formação de consciência, pois favorece o automóvel e torna difícil a compreensão da importância da infraestrutura de transporte. Infelizmente, há jornalismos que insistem em alimentá-lo

Índice


Introdução

Em 29 de novembro de 2017 o periódico britânico The Guardian publicou reportagem intitulada "The four hour commute: the punishing grind of life on São Paulo’s periphery", algo como “A viagem de quatro horas: o castigo da vida na periferia de São Paulo” em uma tradução livre. O texto é fruto de uma semana dedicada à cobertura de diversos aspectos da vida em São Paulo, no entanto, o olhar do jornal acabou resultando em algumas posturas que não parecem contribuir positivamente para a análise do problema, a começar pelo título, que além de ambíguo e caçador de cliques, acaba contribuindo para dobrar o problema de tamanho: permite a interpretação de que são quatro horas de viagem na ida e mais quatro horas de viagem na volta.

A reportagem, porém, fez algum sucesso dentro do meio progressista, que não perdeu tempo em apontar a má qualidade do nosso transporte coletivo em tom ainda mais genérico, contribuindo para que a indústria automobilística continue sorrindo. Que tal tentar elevar o nível do debate?

Atualização (01/12/2017): a reportagem foi traduzida e apresenta um título mais honesto: “Deslocamento diário de quatro horas: tarefa difícil da vida na periferia de São Paulo”.


Contextualizar é preciso: transporte

A reportagem tratou de duas linhas do sistema metroferroviário em um universo de doze. Um recorte tímido, que exigia considerações específicas e foi extrapolado para generalizar a situação da mobilidade numa metrópole composta por dezenas de municípios e com uma população de aproximadamente 20 milhões de habitantes (aqui desconsiderando as relações macrometropolitanas, que envolvem frequentadores cujas residências estão localizadas no interior e no litoral).

O problema já começa com a descontextualização da Linha 12-Safira (Brás-Calmon Viana), que é tratada de forma vaga, como se prestasse um serviço diferente da Linha 3-Vermelha (Itaquera-Barra Funda). O objetivo fica claro: criticar o tamanho da malha de metrô. É claro que a malha não tem tamanho adequado, mas considerar apenas parte da rede, com viés acrítico e raso, é uma atitude irresponsável, pois contribui para dificultar a mobilização de pessoas, dentro e fora do campo progressista.

É lugar-comum na imprensa paulistana a má vontade em abordar a CPTM, problema que já abordamos aqui, aqui e aqui, no entanto, mesmo na reportagem do Guardian houve pelo menos um leitor apontando que a Linha 12-Safira, linha de metrô, atende a região central de Itaquá. Trata-se do comentário do usuário RobindraJayaJaya, o qual apontou que “Itaquaquecetuba has a metro line that goes straight to the city centre” — em tradução livre, algo como “Itaquaquecetuba tem uma linha de metrô que vai direto para o centro da cidade”. Situações assim mostram que adotar uma postura vaga sobre a CPTM não contribui para informar.

Cabe também salientar que o mapa utilizado para demonstrar o trajeto também contribui para passar uma ideia de isolamento, o que não é verdade, já que a Linha 12-Safira termina na Estação Calmon Viana, que faz conexão com a Linha 11-Coral (aproximadamente 15 minutos de trajeto separam as estações Eng. Manoel Feio e Calmon Viana).

Legenda: A Estação Engenheiro Manoel Feio em novembro/2015. O projeto para modernização já está pronto, mas as obras civis não foram contratadas

Sem muita surpresa, o automóvel foi elencado como um objeto de desejo pela passageira da Linha 12. Aqui existe um problema ligado ao ativismo que predomina em São Paulo, o qual é fortemente elitista e não consegue superar questões de classe:

A car is a more achievable aspiration for most in São Paulo. Alcione says she would drive if she could afford it, although that is a long way off. “Public transport is so bad that the first thing people do when they have a little money is buy a car,” says Gabriela Vuolo. “Or a motorbike, one of those really polluting 50cc ones, they are an epidemic out in the periphery. There’s something cultural I think about car ownership. People really believe their car is going to make them happy — that it’ll make them more powerful, more comfortable, more successful, more beautiful. They think, ‘If I’m going to spend three hours in a traffic jam I’d rather be on my own, listening to my own music.’”

Antes de afirmar que o “transporte público é tão ruim que a primeira coisa que as pessoas fazem quando elas possuem algum dinheirinho é comprar um carro”, Gabriela Vuolo já havia opinado de maneira genérica sobre o transporte de um município que simplesmente não entra nas publicações da página Cidade dos Sonhos, movimento que nasceu como Busão dos Sonhos e sempre, sempre foi caracterizado por uma cobertura centrada na capital paulista, pouco plural e cuja transversalidade está ligada ao formato de “portas giratórias”, nas quais as organizações beneficiadas são apenas aquelas em que há trânsito dos membros da Cidade dos Sonhos, como é o caso do Greenpeace ou da Rede Nossa São Paulo, esta última utilizada como fonte pelo Guardian.

Na verdade, a fala, reproduzida logo a seguir, ficou tão genérica, que o leitor desavisado pode aplicá-la para praticamente toda a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), como deve ter sido o caso de toda a audiência internacional que teve acesso à reportagem:

Gabriela Vuolo of urban mobility network Cidade dos Sonhos says the poor state of the bus system is invisible unless you go to the periphery. “They are crowded and dirty, there are not enough buses and not enough routes. They break down a lot and don’t reach all the little areas where people need them. They are expensive too. It’s a complete mess.”

O principal problema da afirmação acima é desterritorialização do transporte, ou seja, a dissociação entre infraestrutura, tecido social e tecido urbano. Soma-se a desterritorialização ao caráter generalista e a confusão está feita. Vamos a alguns pontos rápidos:

  • Superlotação e sujeira não são regra;
  • Falta de ônibus não é regra, mas como qualquer modal, existe uma capacidade/hora máxima e questões de infraestrutura a serem observadas;
  • Falta de linhas não é regra, sendo que no caso da capital, é preciso cautela para não dinamitar a hierarquização das linhas (muitas vezes chamada de racionalização) e provocar um enorme retrocesso em todo o sistema.

Voltemos agora para Itaquá: as linhas que partem do terminal de ônibus vizinho à Estação Eng. Manoel Feio realmente não precisam de muito esforço para encarar estradas de terra, afinal, estamos falando de um dos municípios com pior IDH da Região Metropolitana de São Paulo e que não costuma ser visitado pelas parcelas mais influentes do tecido ativista paulistano, que diga-se de passagem, mal costumam visitar a periferia da própria capital. Pode parecer óbvio, mas é melhor pecar pelo excesso: senhores e senhoras, a RMSP não é feita apenas de Itaquaquecetubas, mas são Itaquaquecetubas que refletem o resultado da desigualdade de renda, da especulação imobiliária e da falta de políticas que orientam o uso, ocupação do solo e construção de infraestruturas.

A periferia da capital, pelo menos, costuma ter asfalto e hierarquização do padrão de serviço dos ônibus, com linhas alimentadoras e estruturais, algo muito diferente do tipo de serviço encontrado em diversas cidades da Região Metropolitana de São Paulo, nas quais costuma ser pouco ou nada racionalizado, constituído de linhas radiais e muito mais precário em comparação com a SPTrans. Ainda assim, mesmo entre municípios da metrópole, há diferenças. A dificuldade de tratar do transporte se dá, justamente, pela falta de compreensão das diferenças e da complexidade do tema, além disso, parece existir uma relutância muito forte por parte da Cidade dos Sonhos em tratar do transporte sobre trilhos, compreender a importância de sistemas regionais que retirem das ruas os automóveis oriundos do interior e do litoral, lutar por mais infraestrutura, entre diversos outros pontos.

Infelizmente, toda a periferia, seja ela a periferia da capital, seja ela as cidades da Região Metropolitana de São Paulo em condição de periferia da capital, seja a periferia das cidades da Região Metropolitana de São Paulo, teve o serviço de ônibus resumido em poucas linhas. Não precisamos de um ativismo genérico, precisamos de um ativismo que dialoga amplamente e que pelo menos tem o bom senso de sair do Centro Expandido com alguma frequência.


Contextualizar é preciso: metrópole

O fragmento abaixo é extremamente contraditório, pois coleta a opinião de uma passageira leiga sem averiguação factual, construindo a noção de que São Paulo é extremamente monocêntrica, o que simplesmente não é mais verdade.

“The trouble is that everything is in central São Paulo” she says. “It’s a big problem for the kids. As they grow up they have to work to help support their family but if they spend four hours a day standing on buses they are too tired to keep up with school work and they drop out. It is a vicious cycle.

Para se ter uma ideia do quão contraditório foi a postura do Guardian, a própria reportagem trouxe uma imagem dos heliportos nas torres comerciais do Itaim Bibi, que abriga centralidades como a Vila Olímpia, na Zona Oeste de São Paulo, às margens do rio Pinheiros e da Avenida das Nações Unidas. Ainda que se adote a noção de Centro Expandido, fortemente atrelada ao sistema viário e à CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), o Itaim Bibi fica no limite deste. A subprefeitura responsável pelo bairro, inclusive, tem um índice de empregabilidade formal superior à da subprefeitura da Sé, a passageira, porém, apresenta uma visão anacrônica, que provavelmente não construiu sem contribuições da mídia e de outras pessoas.

Conforme os dados mais recentes do portal ObservaSampa (ano de 2014), o índice de concentração do emprego formal se distribui da seguinte forma, considerando as quatro subprefeituras mais bem posicionadas:

  • Pinheiros: 2,43;
  • Sé: 1,83;
  • Santo Amaro: 1,45;
  • Lapa: 1,37.

Ora, há muito mais empregos formais nos bairros da subprefeitura de Pinheiros, além disso, a marca conquistada pela subprefeitura da Sé parece pouco impressionante quando comparada com Santo Amaro e Lapa, duas subprefeituras que, assim como a da Sé, também abrigam áreas de intenso comércio popular e escritórios com m² mais acessível.

E existe também outra questão fundamental: o próprio Alto Tietê, região esta que tem Itaquaquecetuba entre seus municípios. Qualquer pessoa leiga que se dedicar a observar e acompanhar o fluxo de passageiros no segundo trecho da Linha 11-Coral (Guaianazes-Estudantes), vai observar que Mogi das Cruzes e Suzano, outros dois municípios do Alto Tietê, são polos de atração. A Estação Estudantes, inaugurada na década de 1970, surge justamente para atender duas universidades privadas com considerável importância. Transcrevo abaixo fragmento do relatório final de um plano piloto de transportes publicado em 1981 (página 17; disponível na Biblioteca Virtual da Emplasa com o número de chamada 28 28.10 06.06):

Nesse aspecto, destaca-se a implantação das universidades que vieram a se constituir em fator determinante na aceleração deste processo, dinamizando o comércio e prestação de serviços — restaurantes, bares, papelarias, imóveis, transporte etc. — e caracterizando o município como polo gerador de viagens.

Legenda: As duas primeiras fotos ilustram o movimento no período noturno observado na Estação Estudantes em maio/2017; a última foto exibe um trem cheio em Calmon Viana pouco antes do anoitecer, em agosto/2016. As três fotos documentam o comportamento da Linha 11-Coral no contra-fluxo, no qual Mogi das Cruzes é inegavelmente um polo de atração

De 1970 até os dias atuais, Mogi das Cruzes passou por diversas transformações, estando consolidado o desenvolvimento do Centro Cívico e entorno, sendo possível destacar inclusive o surgimento de um polo gastronômico, a presença de um dos principais centros comerciais da região (inaugurado em 1991), além da existência de uma unidade Poupatempo (inaugurada em 2011).

Finalmente, o caráter policêntrico da metrópole fica reforçado quando pensamos em Barueri, município da Sub-região Oeste que abrigou os primeiros residenciais Alphaville, possuindo hoje em seu território uma centralidade composta por centros comerciais e edifícios corporativos, que mesclados com edifícios residenciais, formam um perímetro acessível por transporte coletivo integrado ao sistema metroferroviário e dotado de calçadas, com variados graus de acessibilidade. E falar de Alphaville faz todo sentido numa perspectiva de múltiplas centralidades, pois sua existência, ainda que controversa em alguma medida, modifica toda a vida ao longo da Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi). Mesmo que aquém do ideal, a realidade não condiz com a visão apresentada.


Causas-raízes não podem ficar de fora

Nas seções anteriores, opiniões tratadas como fatos pelo Guardian foram contestadas, agora chegou o momento de refletirmos acerca de causas-raízes que não passaram perto de serem exploradas pela reportagem.

Uma coisa relativamente simples, que poderia reduzir drasticamente os tempos de viagem na Linha 12 seria a existência de serviços expressos. Já falamos sobre serviços expressos aqui, aqui, aqui e aqui, entretanto, vale retomar brevemente o assunto. A Linha 12 é predominantemente paradora, sobretudo na Zona Leste da capital, quando o tecido urbano permite estações mais próximas. O baixo desenvolvimento das cercanias cria um efeito de pendularidade, ou seja, a linha circula vazia no contra-fluxo e muito cheia no fluxo. Os principais desembarques no pico da manhã estão concentrados em apenas duas estações: Tatuapé e Brás, sendo que nas duas uma parcela permanece no sistema e se transfere para outra linha. Diante do cenário descrito, a linha deveria oferecer viagens diretas e com menos paradas, pois o cenário mais otimista de desenvolvimento das cercanias muito provavelmente exigiria duas ou mais décadas, contudo, oferecer viagens diretas exige mais vias, mais trens e mais energia, sendo que em alguns pontos a linha sofre estrangulamento, o que torna a expansão em superfície mais difícil.

Outro ponto negligenciado diz respeito ao comportamento da Linha 12. Ao terminar no Brás, a conectividade fica prejudicada, tanto pela mudança de vocação do bairro, como pela expansão das centralidades na metrópole, incluindo a capital, adicionalmente, cabe salientar que a conexão com a Linha 3-Vermelha é uma das mais humilhantes, visto que esta primeira já se encontra saturada e também tem perfil pendular. Retomar a discussão do enterramento dos trilhos da CPTM no eixo Lapa-Brás é essencial, tanto para fortalecer a pauta da eliminação de gargalos, como para tentar um desenvolvimento urbano melhor da orla ferroviária, o que passa por garantir maior diversidade de renda (ou seja, o eixo deve abrigar moradores com diferentes perfis de renda, de forma a não perpetuar a segregação sócio-espacial), reduzindo a pressão por moradia na periferia e aproximando as pessoas do trabalho.

Observação: confira aqui outras propostas para melhorar os serviços da CPTM na Zona Leste.

Resumindo, há um diálogo envolvendo elementos como:

  • Segregação sócio-espacial;
  • Clivagem de renda;
  • Questão habitacional e;
  • Privilegiação do automóvel ao longo de décadas, com a construção de modernas rodovias e diversas vias expressas em detrimento à expansão do transporte de alta capacidade.

Contudo, para enxergá-lo é preciso adotar uma análise crítica, pois nenhum dos elementos foi atacado no texto do periódico britânico, que exceto por uma crítica breve e distorcida ao tamanho da malha de metrô, não tratou de questões estruturais.


Conclusão

Enquanto a população afetada não tiver consciência política, não apoiar os movimentos de luta por moradia, não compreender a importância de instrumentos como IPTU progressivo e não enxergar a disparidade entre as infraestruturas de mobilidade, o quadro não vai mudar.

Infelizmente, se organizações como a Cidade dos Sonhos e a Rede Nossa São Paulo não mudarem de postura, a história vai continuar se repetindo. O documento da Emplasa citado na seção “Contextualizar é preciso: metrópole”, por exemplo, aborda a mobilidade por bicicleta de forma extremamente atual, porém, data de 1981. Reitera-se o que foi dito anteriormente: existem questões de classe que não estão sendo superadas, a atuação tem sido pautada por elitismo e profundo desconhecimento das condições de vida da maior parte da população. É entristecedor observar e precisar alertar que indicadores sintéticos e pesquisas sobre a qualidade de vida da população não estão sendo suficientes, já que as distorções e o distanciamento ainda permanecem muito maiores do que seria razoável.




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