Por Caio César | 16/01/2018 | 10 min.
Na metade de 2017, uma discussão surgiu em um de nossos posts no Facebook, nele divulgávamos uma notícia intitulada “Consórcio Intermunicipal ABC vai formalizar proposta de BRT no lugar de monotrilho na linha 18” e, a princípio, não havia motivo para escrevermos um artigo longo por sua causa, até recebermos alguns comentários reforçando pré-conceitos e concepções equivocadas sobre sistemas de monotrilho. O maior problema foi a impressão de que havia um otimismo exagerando envolvendo sistemas de BRT (Bus Rapid Transit). Proponho o presente artigo como uma espécie de guia para construir melhores oportunidades de diálogo.
Observação: quando a capacidade em termos de lugares/hora for mencionada, ela se dá por sentido (ou seja, é a metade da capacidade total, que considera os dois sentidos juntos). Referências: “BRT ou VLT: questão de escolha?”, “Sistemas de Média Capacidade para Transporte Público de Passageiros”, “How Do Different Modes Compare?”, “Public transport improvement” e “Corridor capacity of different modes of transportation (people/hr on a 3.5 mile-wide lane)”.
Introdução
Costumo dizer quando tenho a oportunidade de conversar pessoalmente, não só com os membros do Coletivo, mas também com outros indivíduos interessados na melhoria da mobilidade dentro da Região Metropolitana de São Paulo, que precisamos desenvolver três características para sermos capazes de propor soluções enquanto olhamos para algum cenário: (i) a ponderação nas opiniões; (ii) desejo por embasamento (busca de dados e fatos, substituindo o “achismo”) e; (iii) capacidade de pensar em um planejamento de longo prazo.
Um grande desafio encarado pelo COMMU é a criação de uma massa crítica, para tanto, é fundamental que sistemas de transporte sejam enxergados com toda a riqueza que proporcionam, não só como um meio de mover pessoas entre pontos de interesse dentro de uma lógica de rede, mas como instrumentos com valor político. Ora, a infraestrutura de transporte é um conjunto de tecnologias e obras de engenharia, sendo assim, podemos partir do princípio de que existe um problema a ser resolvido e uma solução escolhida para resolvê-lo.
Quando um monotrilho é escolhido em detrimento de um BRT, significa que alguns elementos condicionaram sua escolha, ou seja, ele foi considerado uma solução melhor. Nas seções seguintes, abordarei os elementos que considero fundamentais, mantendo o diálogo com os comentários observados na fanpage.
Capacidade
A capacidade é um elemento muito traiçoeiro. É extremamente comum encontrar comentários em fóruns e redes sociais (como foi o caso da publicação em nossa fanpage) apontando que o “um corredor BRT pode transportar o mesmo que uma linha de monotrilho”. A resposta que eu tenho a dar é clássica: depende.
Se a região dispõe de um viário privilegiado, como é o caso de alguns bairros nobres da capital que passaram por transformações nas últimas décadas (Vila Olímpia, por exemplo), reapropriar parte dele para implantar um sistema de BRT provavelmente exigirá pouco esforço. Existe um detalhe importante, entretanto: quanto maior a capacidade desejada, maior a necessidade de espaço. Enquanto uma faixa de tráfego misto oferta até 1.000 lugares/hora, um corredor de ônibus simples oferta até 10.000 lugares/hora, já um BRT simples (ou seja, um corredor com veículos de maior capacidade e estações para embarque, que concentram também a estrutura de pagamento) atinge cerca de 20.000 lugares/hora.
Aqui está o pulo do gato. Um BRT simples exigirá duas faixas (uma para cada sentido) e espaço suficiente para abrigar as estações, cuja arquitetura deverá considerar a capacidade e demanda projetadas, o que geralmente significa manter um canteiro central ou, em sua ausência, instalar estações desmembradas, uma para sentido, com alguns metros de distância uma da outra, exigindo pequenos desvios. O monotrilho tem outra abordagem: ele permite preservar ou implantar um canteiro arborizado, portanto, exigindo menos espaço e garantindo maior capacidade, ao custo de uma estrutura elevada, com maior impacto na paisagem e também maior peso.
Apesar da estrutura elevada, o monotrilho mantém a premissa da escalabilidade, marca registrada de sistemas ferroviários, ou seja, ele pode começar com os mesmos 10.000 lugares/hora e crescer até cerca de 50 mil lugares/hora (no caso da Linha 15-Prata da Companhia do Metropolitano de São Paulo, 48 mil lugares/hora). É aí que o BRT mostra seu ponto fraco: ele não escala facilmente e qualquer tentativa de construir estruturas em elevado para uma demanda tão alta exigiria uma construção monumental, mais pesada e impactante.
Um BRT sofisticado, com duas faixas por sentido e estações maiores ou modulares, pode passar dos 20 mil passageiros/hora (possivelmente oferecendo o dobro). Estações maiores exigirão facilmente o espaço de mais duas faixas, o que talvez justifique a manutenção de um canteiro arborizado. O espaço exigido, portanto, é de seis faixas no total. Não é pouca coisa, requerendo planejamento rigoroso de rotas expressas e paradoras, além de apresentar maior potencial de segregação.
Bom, caro leitor ou cara leitora, se você conhece a Região Metropolitana de São Paulo e certas periferias, deve saber que não é lá muito comum encontrar seis faixas “dando sopa”. Desapropriações, com elevado conflito social (leia-se: disputas judiciais por discordância entre as envolvendo a indenização) serão inevitáveis, sendo ainda capazes de “varrer” parte do comércio dos bairros atendidos. Convenhamos, além das seis faixas para o BRT, a população ainda exigirá pelo menos duas faixas por sentido para os automóveis. A “calha” precisa ser de oito faixas e não há garantia alguma de que o BRT vai induzir a redução do rodoviarismo, além de constituir uma barreira para a travessia de pedestres comparável a sistemas ferroviários mais pesados, que, diga-se de passagem, ofertariam muito mais do que 30 ou 40 mil lugares/hora. E veja só: eu nem comecei a falar de intermodalidade, afinal, como as pessoas chegarão nas estações do BRT? Bicicletários, terminais de ônibus e estacionamentos, três exemplos típicos de equipamentos que conferem intermodalidade, exigirão ainda mais espaço e estruturas de conexão, além disso, provavelmente reforçarão a necessidade do viário paralelo e adjacente ao BRT, que inclusive precisa ser pensado do ponto de vista da logística, da circulação de bicicletas etc.
Espero ter deixado claro que a capacidade é um fator determinante. Conseguir alta capacidade exige espaço. Articular o eixo de alta capacidade com o entorno exige ainda mais espaço. Garantir a coexistência do eixo com o transporte individual motorizado, sistemas de ônibus de caráter difuso e/ou capilarizador, bicicletas e pessoas, exige ainda mais e mais espaço.
O monotrilho é interessante por:
- Transportar mais pessoas por m²;
- Manter uma capacidade elevada sem criar uma barreira devido ao volume de tráfego;
- Transitar na estrutura elevada de menor impacto já inventada na história do transporte de massa;
- Coexistir bem com sistemas de ônibus, podendo inclusive abrigar terminais de ônibus e bicicletários na parte inferior das estações;
- Pode ser complementado por um sistema simples de corredor de ônibus ou BRT, que atende demandas específicas (ônibus seletivos e serviços expressos, por exemplo), mantendo a intermodalidade como premissa.
Mas não pense que acabou. É preciso operacionalizar a circulação do material rodante, seja ele rodoviário ou ferroviário. Vale salientar que um trem da Linha 15-Prata do Metrô foi projetado para carregar 1.000 pessoas. Reflita agora: quantos ônibus, mesmo se forem usados apenas biarticulados, seriam necessários para oferecer a mesma capacidade? E como colocar tudo para rodar de forma harmoniosa? Uma linha de monotrilho pode oferecer aquele mesmo trem com capacidade para 1.000 pessoas a cada 90 segundos… em 90 segundos, algum sistema de BRT consegue disponibilizar 1.000 lugares prontamente? Imagine que uma linha como a 15 vai atender bairros como São Mateus (supostamente chegaria até Cidade Tiradentes, mas há metroviários que dizem que não passa da Estação Iguatemi). Acompanhe o raciocínio: Estação São Mateus, 7h10, estamos no topo da curva de demanda, numa fração de minuto, dezenas de pessoas entram na fila para validar seu bilhete, uma meia dúzia de micro e midi-ônibus do Sistema Local da SPTrans despejam, cada um, 50 pessoas, do outro lado, mais outras dezenas de pessoas desembarcam de linhas do Sistema Estrutural da SPTrans e, para completar, ainda temos passageiros chegando de carona e de bicicleta. Parece cenário para implantação de um BRT? Alguém, no calor de uma estação como Tatuapé, Carrão ou Guaianazes, embarcando lado-a-lado com passageiros de Cidade Tiradentes e localidades relacionadas, que chegaram após uma longa viagem de ônibus, poderia pensar algo assim? Talvez apenas no mais franco desespero, suplicando por uma alternativa. Mas aqui não fomentamos desespero, fomentamos racionalidade.
Impacto
Confesso que fiquei tentado a falar do impacto em primeiro lugar, mas como espero ter demonstrado, o impacto está condicionado à capacidade desejada, além disso, ele também dialoga com a ocupação e uso do solo previamente existentes. Pois bem, quando estamos na casa dos 10 a 20 mil lugares/hora de oferta, um BRT é inegavelmente menos impactante, desde que sua estrutura não seja elevada (caso do Expresso Tiradentes, cuja conversão para VLT, exploramos brevemente no passado). Mantendo a premissa de que a capacidade será suficiente a longo prazo, bem como de que aquele sistema não nascerá superado ou será superado rapidamente, é óbvia a vantagem do BRT sobre o monotrilho.
Na Região Metropolitana de São Paulo, é defensável a predileção pelo BRT, por exemplo, nos corredores da EMTU projetados para cidades como Itapevi e Santana de Parnaíba. Os corredores passarão por bairros residenciais relativamente pequenos e sem verticalização, estruturando o transporte entre municípios e também conferindo uma capilaridade de padrão mais elevado ao Trem Metropolitano da CPTM, uma vez que o passageiro pode circular num eixo bem definido e cujas estações, por si só, já seriam pontos de referência.
Os projetos da EMTU, portanto, dialogam com uma ocupação do território que os favorece. Arrisco dizer que possuem um papel coesivo e transformador bastante subestimado pelo campo progressista, o que é uma pena, porém, quando se discute a implantação de um sistema de BRT no lugar da linha de monotrilho (caso da Linha 18-Bronze, na qual o governo rejeitou a possibilidade de trocar o monotrilho pelo BRT), considero mais difícil encontrar o mesmo nível de coesão e a transformação, o que se deve a:
- Maior grau de consolidação do tecido urbano;
- Dificuldade de conciliar capacidade, volume de desapropriações e exigência de espaço;
- Perfis de demanda potencialmente inadequados para um BRT desde o princípio.
Articular ligações de caráter metropolitano num ambiente institucional marcado por fragmentação, no qual recai ao Governo do Estado de São Paulo formular políticas de transporte que envolvem a conexão entre múltiplos municípios numa região metropolitana, é uma tarefa árdua e que não tem sido acompanhada pela sociedade civil com a devida atenção. Os sistemas implantados pelo governo estadual, por sua vez, buscam ampliar a capilaridade do sistema de trilhos mantendo um mínimo de estruturalidade (como comentado previamente), não raramente em ligações perimetrais, abrindo oportunidades legítimas para sistemas de BRT.
Chegamos então a um aspecto nevrálgico da discussão: a recíproca não é verdadeira quando se tenta equivaler o BRT a sistemas ferroviários. Por exemplo, no contexto da Sub-região Oeste da Grande São Paulo, no qual são projetos da EMTU os corredores Itapevi-Butantã, Itapevi-Cotia e Cajamar-Santana de Parnaíba-Barueri, existe uma inevitável articulação com o sistema de trilhos, sobretudo com a Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno). Ainda, no contexto da Linha 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes), o papel do BRT projetado para a conexão entre Arujá e Ferraz de Vasconcelos é descrito da seguinte forma no EIA (Estudo de Impacto Ambiental; página 55 do Volume I; processo 2014/257):
Cabe então aos sistemas sobre pneus, em face à sua maior flexibilidade e capilaridade, o papel de alimentadores, deixando ao modo ferroviário a função de transporte de massa de alta capacidade e espinha dorsal das redes de transporte.
Existe uma hierarquização. Eis aí o motivo da menção oportuna à Linha 18-Bronze. Quando se fala que um BRT pode tomar o lugar do monotrilho, é, guardadas as devidas proporções, análogo a dizer que um BRT poderia fazer o papel da Linha 8-Diamante, o que não é verdade. Hoje ela transporta quase meio milhão de passageiros diariamente (estimados 490.100 passageiros, conforme informação oficial). Sistemas de transporte são como ferramentas: a escolha inteligente e racional é crucial conforme o problema que se pretende resolver. É claro que alguém poderia especular: mas não estaria um BRT no lugar da Linha 18-Bronze em posição análoga aos BRTs que se conectarão à Linha 8-Diamante, se mantida a conexão com a Estação Tamanduateí? Minha resposta é: não, justamente pelo uso e ocupação do solo existentes.
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