As entrelinhas da preservação do Minhocão

Por Caio César | 01/03/2018 | 8 min.

Legenda: Minhocão na região da Estação Marechal Deodoro da Linha 3-Vermelha (Itaquera-Barra Funda)
Falar do Minhocão não precisa se resumir a pensar, de maneira imediata e indolor, alternativas viárias ou de lazer. Que tal resgatarmos algumas discussões e reflexões?

Índice


Recentemente o 32xSP publicou reportagem intitulada “Prefeitura autoriza Parque Minhocão, mas moradores sonham com demolição do elevado” a qual veiculamos na nossa página facebookiana, como parte da nossa postura de incentivar veículos regionais, veículos independentes e outras mídias que contribuem para um olhar mais plural sobre São Paulo e a metrópole.

Introdução realizada, o que vale destacar é que a partir da divulgação, foram observados alguns pontos de vista nos comentários, os quais valem ser discutidos com maior profundidade e tranquilidade aqui no Medium, longe das pressões impostas por uma caixa de comentários e o imediatismo tão comum no Facebook e, talvez não seria exagero dizer, o imediatismo tão comum ao próprio Elevado.


Alternativa viária

Chega a ser irritante a insistência de alguns motoristas em exigir alternativas quando a derrubada do Minhocão é defendida. Aquele elevado tem duas faixas, portanto, considerando que os automóveis que circulam em São Paulo transportam predominantemente apenas um ocupante, estamos falando de uma capacidade baixíssima, algo em torno de 2 mil passageiros/hora por sentido, totalizando 4 mil passageiros/hora.

Construíram um monstrengo que contribuiu para arrebentar todo aquele entorno em troca de uma capacidade que é menos da metade de uma faixa exclusiva de ônibus num único sentido! O “trunfo” do monstrengo? Evitar cruzamentos.

Se tem algo que a Grande São Paulo ainda não aprendeu é que meios expressos não devem privilegiar o automóvel. Veja a seguinte passagem por Maria Elizabet Paez Rodriguez, extraída da tese “Radial Leste, Brás e Mooca: diretrizes para requalificação urbana” (pág. 73):

O Elevado afeta a cidade com seu forte impacto estético, através de suas laterais de concreto que impossibilitam a circulação de pedestres na extremidade que desemboca na Avenida Radial Leste, junto à Avenida do Estado.

Enquanto a cidade está cheia de vias expressas (incluindo a estrovenga malufiana), é raro encontrar uma linha de ônibus expressa ou semi-expressa e, pior ainda, só existe uma linha expressa nos mais de 300 km do sistema de trilhos. Simplesmente não faz sentido achar razoável propor uma alternativa viária para o Minhocão, pois a cidade possui um vasto e luxuoso viário à disposição sobretudo do automóvel, que transporta ⅓ dos paulistanos e ocupa quase 90% do viário, enquanto os ônibus transportam 30% mais e ocupam apenas 3% do viário (vide reportagem de maio de 2017 intitulada “Carros levam 30% dos passageiros, mas respondem por 73% das emissões em SP”).

Nos tempos da administração Kassab a boa ideia de enterrar os trilhos da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) no eixo Lapa-Brás era permeada sobretudo por dois objetivos nefastos:

  1. Facilitar a exploração imobiliária especulativa naquele vetor; e
  2. Construir uma grande avenida no sentido Leste-Oeste, paralela à Marginal Tietê, Marquês de São Vicente e Francisco Matarazzo.

Legenda: Avenidas Marquês de São Vicente (esquerda) e Francisco Matarazzo (direita)

Considerando o funcionamento típico das operações urbanas consorciadas (OUCs) paulistanas, seria inocência esperar moradia social e uma intervenção urbanística de maior qualidade, no entanto, um processo participativo mais longo mereceria ser recuperado, principalmente trocando a avenida proposta por uma espécie de parque linear (que poderia ou não ser dotado de transporte coletivo na superfície, visto que a CPTM continuaria operando no subterrâneo, tendo seu papel de metrô reforçado).


Alternativa de lazer

Não é meu tipo de programa bater perna num viaduto, admito, porém não faz sentido justificar a manutenção de uma estrutura que está cada vez mais comprometida em prol do lazer de alguns. É egoísta e amesquinha, pra variar, a discussão de qual cidade queremos.

O eixo do Minhocão possui alguns espaços de fruição, é verdade, mas eles não são grandes. Um deles é o Parque da Água Branca, que possui paradas dedicadas no Corredor Pirituba-Lapa-Centro e está a uma distância caminhável da Estação Palmeiras-Barra Funda; outra opção é a Praça Roosevelt, que dispensa comentários e pode ser acessada a partir de uma caminhada a partir da Estação Anhangabaú ou República, por exemplo.

Sabendo então que os espaços de fruição naquele eixo não são tão grandes, é natural o questionamento por alternativas, assim sendo, abaixo foram enumeradas algumas possíveis alternativas a serem discutidas, num sentido claramente mais idealista do que de preservação do trambolho:

  1. Recuperar o papel do Parque Dom Pedro II, o que envolve discutir todo o plano viário da região e também possíveis modificações nos ônibus, já que o terminal existente nas imediações concentra linhas da Zona Leste, a mais populosa da capital;
  2. Fortalecer a ideia de uma intervenção não-rodoviarista e recuperar a operação urbana consorciada para o eixo Lapa-Brás, o que beneficia moradores da capital e de cidades vizinhas, além de permitir a construção de um novo parque linear;
  3. Iniciar a discussão do desmonte das marginais, principalmente a Marginal Tietê e recuperar intervenções que propunham o que poderia ser considerado um grande complexo de parques, áreas para prática esportiva, ciclovias e pistas de caminhada, além de áreas alagáveis.

Nos três casos o transporte coletivo, principalmente aquele de caráter mais estruturante, é um elemento-chave.


Outros aspectos

Existem alguns outros aspectos que não podem ficar de fora. Um deles já foi comentado com indiscutível competência pelo professor João Sette Whitaker da Universidade de São Paulo, ao que destaco abaixo o seguinte fragmento:

É a mesma coisa de sempre: quando a coisa vira boa, tiram-se os pobres. Senão por políticas oficiais, pela força do dinheiro. Por isso, antes de se falar em destruir o elevado ou transformá-lo em parque, a reivindicação deve ser outra: a apresentação de um plano, por parte da Prefeitura, de regulação de preços e proteção aos moradores de menor renda que lá moram. Essa deve ser a luta no atual momento. Sob o risco, se não o fizermos, de carregar a culpa de ter defendido a criação de algo que pode tornar-se um dos projetos mais gentrificadores que a cidade já teve.

Ou seja, como apontado em 2014 pelo professor, precisamos garantir que não haverá uma expulsão da população mais vulnerável. E vou além: o mesmo deveria valer para praticamente qualquer operação urbana, daí eu ter dito anteriormente que precisamos discuti-las por anos e construir um processo participativo. Se não preservarmos a população vulnerável no caso do Minhocão, ficará difícil usar os trilhos da CPTM como a “carta na manga” para fornecer, ao mesmo tempo, tanto serviços de alta capacidade com qualidade, como também um espaço incrível na superfície para convivência e lazer, já que o enterramento do eixo Lapa-Brás depende fundamentalmente de uma operação urbana consorciada.

Outro aspecto importante diz respeito ao Parque Dom Pedro II. É curioso que uma área verde que já teve status comparável ao Ibirapuera se encontre retalhada por estruturas viárias e que algo assim não seja objeto de questionamento recorrente. A questão do terminal de ônibus é delicada, mas pessoalmente acho muito difícil que não se possa encontrar uma solução.

Legenda: Legenda original: “Imagem do Parque Dom Pedro II, década de 1920. Fotografia tirada do Palácio das Indústrias. No plano intermediário direito, o antigo Mercado dos Caipiras, que ficava no final da Rua General Carneiro. No meio do Parque, o coreto da Ilha dos Amores — Acervo do Museu da Imigração”. Localizada em Sampa Histórica, De Várzea do Carmo a Parque Dom Pedro II

E quando falo em solução, aproveito para dizer que até hoje o Centro de São Paulo, diferentemente do que aconteceu em diversos centros de cidades europeias e até norte-americanas, não ganhou um sistema de bondes modernos. A indústria automobilística dos EUA desmontou muitos sistemas de bonde, mas ainda que timidamente, houve uma retomada. São Paulo não seguiu o mesmo caminho e ainda por cima reduziu a rede de trólebus.

O que quero dizer é que a solução poderia passar por mudanças no transporte da área central. De qualquer maneira, o terminal de ônibus ali presente jamais buscou ser um espaço confortável, ele é um terminal como qualquer outro, de passagem e cuja integração com o entorno se limita ao mínimo necessário. Como aponta Tomás André Rebollo Figueiredo da Silva em sua tese “Urbanismo e mobilidade na metropóle paulistana, estudo de caso: o Parque Dom Pedro II” (pág. 72):

Em 1996 o enorme terminal de ônibus que ocupava o quadrante noroeste do parque foi substituído por um menor, projetado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Este terminal, que havia sido pensado como um equipamento provisório, está em funcionamento até hoje e é um dos mais movimentados da capital. Sua construção permitiu a liberação de uma área onde mais tarde viria a ser implantada a estação terminal do VLP (veículo leve sobre pneus), o expresso Tiradentes, projetada pelo arquiteto Ruy Ohtake. Essa área foi conquistada afastando-se a avenida do Estado do canal do Tamanduateí no trecho entre os viadutos Diário Popular e Mercúrio.

O autor ainda caracteriza a presença do transporte coletivo como oportuna após ponderar os aspectos negativos da implantação da Linha 3-Vermelha (pág. 86):

De qualquer maneira, apesar dos aspectos negativos da implantação do metrô nesta área da cidade, sua presença, hoje, representa um enorme potencial de reinserção urbana. A conjugação dos sistemas de alta capacidade, representados pelo metrô e pelos trens da CPTM, com os sistemas de ônibus de média capacidade, representados pelo expresso Tiradentes e pela promessa de implantação de corredores de ônibus na avenida Celso Garcia — por parte da Prefeitura Municipal e da SPTRANS — representa um enorme potencial e uma grande oportunidade de se repensar o uso da área do Parque Dom Pedro II e a maneira como ela se relaciona com o Centro e com os bairros vizinhos.

Finalmente, em 2015 o COMMU publicou um artigo defendendo o enterramento dos trilhos da CPTM no eixo Lapa-Brás. Trata-se de uma leitura recomendada.


Conclusão

Espero ter demonstrado com alguma brevidade que a questão do Minhocão dialoga atualmente com uma série de outras, sendo o transporte coletivo um elemento sempre presente. Sua demolição deveria estar sendo viabilizada e servindo como ponto de partida para retomarmos outras discussões essenciais.




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