Por Caio César | 06/03/2018 | 11 min.
Índice
Contextualização
Há alguns dias o COMMU publicou um artigo de minha autoria intitulado “As entrelinhas da preservação do Minhocão”, o qual foi gentilmente compartilhado pelo senhor Alexandre A. Moreira num grupo público do Facebook chamado “SP sem Minhocão!”, gerando uma reação por parte do senhor João Baptista Lago, o qual declara em seu perfil naquela mesma rede social ser fotógrafo, dirigir uma organização da sociedade civil, ser morador do bairro nobre de Santa Cecília e contar com uma formação acadêmica em universidades tradicionais, incluindo uma passagem pela França.
Pois bem, apresentada a situação, que se dê continuidade à discussão, para tanto, reproduzo abaixo o comentário do senhor João Baptista Lago na íntegra e sem qualquer tipo de alteração:
A matéria é lúcida, mas estão absurdamente delirantes, loucos de pedra mesmo, em qualificar como “boa”, a idéia de se enterrar os trilhos da CPTM com os trens passando sob a terra: isso inviabilizaria a expansão do transporte ferroviário de massas, que necessita se expandir para os lados (ao menos 4 vias e não sómente 2, caso os trens passassem a serem subterrâneos. Sem falar do custo astronômico, em se fazer vias subterrâneas). Se expandir para os lados, que fique claro, dentro da própria via férrea já existente, que opera em capacidade ociosa sem usar todas as suas linhas laterais). Eu os aconselharia a se espelharem no exemplo de Paris, cuja operadora ferroviária nacional, a SNCF, não abre mão sob hipótese alguma de sua “´petite ceinture”, ferroanel dentro de Paris construído no século XIX e desativado nos anos 1930. Por que a SNCF não cede a Petite Ceinture (cedeu um pequeno trecho para a “Promenade Plantée” e depois se arrependeu) para que seja usada como espaço de lazer? Porque, mesmo com a imensa malha metroviária parisiense mais a rede de trens de subúrbio que cortam a capital francesa, a demanda pelo transporte ferroviário continua crescendo e mesmo essa rede ferroviária parisiense imensa, Metrô + trens de subúrbio, já está exaurida, precisa se expandir, mas não encontra espaços suficientes. Ou, melhor, já encontrou: as vias férreas desativadas há 90 anos atrás da Petite Ceinture. Para azar e indignação de ecologistas e defensores da “ressignificação” de espaços urbanos, parte dessas vias está sendo transformada em linhas de bondes, outra parte será reaproveitada pela RATP (Metrô) e outra parte pela própria SNCF, para a expansão de suas linhas de trens de subúrbio.
Aliás, o jogo sujo que a gestão Kassab fazia era esse: propor a demolição do Minhocão e, em troca, aterrar os trilhos. Nesse sentido, qualquer matéria falando sobre o Minhocão e, dentro da mesma matéria, numa numa suposta necessidade de se enterrar os trilhos da CPTM, deve ser lida com suspeição e desconfiança, pelos riscos de se tratar de matéria a serviço do lobby pró-enterramento dos trilhos.
E uma vez reproduzido, me proponho a rebater, ponto a ponto, as colocações feitas, a partir da visão de um indivíduo que apesar de não residir num bairro nobre e central, possui mais de uma década de utilização e convívio com os trens metropolitanos e passageiros daquele eixo. Minhas colocações traduzem não só a defesa de uma proposta técnica elaborada por uma empresa ligada à Universidade de São Paulo, como também meus anseios como usuário assíduo e não mero observador ou passageiro esporádico.
Serão abordados assuntos referentes às linhas 3-Vermelha (Barra Funda-Itaquera), 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí), 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno), 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra), 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes) e 12-Safira (Brás-Calmon Viana).
Mito 1: seria impossível expandir a capacidade
Para começar, o eixo Lapa-Brás da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) não é homogêneo. O tamanho da faixa de domínio difere e as próprias estações hoje constituem obstáculos intransponíveis para que o plano de vias possa ser modificado da maneira como o sr. João Baptista Lago coloca. Simplesmente não é verdade que existe espaço sobrando e que é trivial quadruplicar a ferrovia. As particularidades vão ainda mais além quando consideramos que a Linha 8-Diamante, diferentemente das outras linhas do eixo, opera em mão francesa e não em mão inglesa.
O primeiro obstáculo é a Estação Brás, o segundo obstáculo é a Estação Luz, o terceiro obstáculo é a Favela do Moinho e o quarto obstáculo é o pátio da MRS Logística. O pátio provavelmente seria desapropriado, assim como a favela, a diferença é que no caso da favela existe uma obrigação moral por parte do poder público em abrigar aquelas famílias, preferencialmente mantendo-as no mesmo local após a construção da estação (ou seja, o ideal seria desenvolver um projeto de moradia combinado com o projeto da Estação Bom Retiro).
Diferentemente do que ocorre com a Estação Brás, que sofreria com maiores demolições, a julgar os incipientes renders animados da Fupam (Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente), a Estação Luz seguiria preservada, mas o projeto prevê outra estação, extremamente necessária e que naquela altura estava sendo chamada de Nova Luz, em alusão a outro projeto controverso de intervenção. A ideia da Estação Nova Luz nada mais é do que construir uma nova estação subterrânea na frente da atual Júlio Prestes, assim, considerando que a população rejeitou o projeto de intervenção urbana Nova Luz, a nova estação poderia se chamar Júlio Prestes e ser integrada ao antigo edifício da Sorocabana.
O enterramento dos trilhos, se feito adequadamente com a implantação da sinalização CBTC (Communications-Based Train Control), garante facilmente o dobro da capacidade existente, o que não é pouca coisa. Enquanto a Linha 3-Vermelha consegue ofertar intervalos de 101 segundos (1 minuto e 41 segundos) nos picos, algo que sem dúvida beneficia os usuários das estações vizinhas ao Minhocão, Santa Cecília e Marechal Deodoro, o melhor intervalo da CPTM é de 240 segundos (4 minutos), porém infelizmente nem todas as linhas da estatal possuem capacidade de operar assim nos picos.
Outras questões essenciais ligadas ao eixo Lapa-Brás:
- Hoje os trens do Expresso Leste fazem uma curva em S a no máximo 20 km/h para conseguirem entrar na Estação Brás sentido Luz, problema que existe há pelo menos 10 anos;
- Pelo menos desde 1996 a CPTM promete uma Estação Lapa unificada, sendo que uma das estações foi erguida pela Santos-Jundiaí nos anos 1960 e está absolutamente defasada. A ausência de uma conexão na Lapa força uma conexão na Barra Funda;
- A passagem de nível da Estação Água Branca é incompatível com a redução de intervalos prevista para a Linha 7-Rubi, além disso, está prevista a chegada da Linha 6-Laranja (São Joaquim-Brasilândia) e o término de linhas de trens regionais na mesma estação, assim, sua reconstrução é mandatória e existirão serviços em subterrâneo de qualquer maneira;
- O Expresso Leste foi inaugurado em maio de 2000 e até hoje não chegou na Estação Palmeiras-Barra Funda, forçando uma transferência na Luz para milhares de usuários a cada hora, com milhões de pessoas se arriscando no pico vespertino todos os meses, além disso, ao não atender a Estação Palmeiras-Barra Funda, contribui para pressionar ainda mais a conexão com a Linha 3-Vermelha na Estação Brás, uma das mais humilhantes da metrópole;
- Existem sérios problemas de transposição e integração urbana ao longo do eixo, que precisam ser discutidos com lucidez. O aumento da capacidade e da qualidade dos serviços da CPTM não pode desprezar aspectos ligados à inserção urbana;
- A Estação Brás é terminal da Linha 12-Safira e o enterramento dos trilhos poderia facilitar a expansão desta para além dali, buscando um melhor equilíbrio da rede.
A utilização de vias adicionais em superfície, é claro, importante, mas ela não é sempre possível. Atualmente existem potencialidades, como é o caso da Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra), que aguarda há décadas a licitação para construção do Expresso ABC. Já na Linha 11, a CPTM se limitou a licitar um projeto para uma via auxiliar entre Brás e Suzano e o assunto caiu no esquecimento. Em todos os casos, as estações centrais da CPTM são um problema e não há espaço para construir mais vias. O enterramento é uma maneira eficiente de garantir tanto a reinserção, quanto a reconstrução das estações sem gargalos e com a sinalização adequada para uma operação de altíssima capacidade.
Cabe salientar que vias adicionais funcionam para ofertar serviços expressos e semi-expressos. É assim que se faz na França, citada pelo senhor João Baptista Lago, com cada trem da RER recebendo um código, que por sua vez corresponde ao trajeto e estações que serão servidas. O que permite que a RER faça isso não são as estações-chave nas áreas centrais, pois estas não possuem múltiplas plataformas para cada serviço ou conjunto de serviços, mas sim as vias adicionais, principalmente na periferia. Enterrar a CPTM no eixo Lapa-Brás não elimina a possibilidade de serviços adicionais, estes seriam ofertados na mesma plataforma, como faz a RER e como faz a CPTM de forma limitada hoje, vide os chamados loops operacionais.
Observação: a problemática da Estação Luz foi discutida por nós em 2015. Recomenda-se a leitura do artigo “Março e a Estação Luz, mês de um aniversário inglório”, que também possui menções aos planos da CPTM e Fupam.
Mito 2: custos absolutamente proibitivos
Diferentemente da maioria das obras da CMSP (Companhia do Metropolitano de São Paulo), a obra da CPTM seria financiada em parte pela venda de CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção). Até hoje os custos não foram precisados pelo poder público, porém, obras de vulto como a Linha 5-Lilás, empregando tuneladoras em áreas nobres e de viário luxuoso, ocorrem sem grandes questionamentos acerca dos custos, ou seja, enquanto a CMSP pode construir linhas em subterrâneo sem ser questionada, a CPTM precisa fazer malabarismos com uma infraestrutura centenária e qualquer tentativa de reinserção está fora de questão. Parece justo?
A Fupam também destacou uma série de potencialidades para o uso do solo, que podem ser capturadas pela CPTM, reduzindo o déficit da estatal. Hoje a CPTM está cada vez mais refém e não tem autonomia financeira, de forma que mesmo a manutenção da via permanente está negligenciada, o que motivou inclusive a ação do Ministério Público.
Como o senhor João Baptista Lago não apresentou uma estimativa de custos e um estudo comparativo, ainda que seja uma preocupação válida, ela precisa ser pensada diante da realidade dos 3 milhões de passageiros da CPTM, do histórico de obras da CMSP, do histórico de obras da própria CPTM, da política de subsídios à SPTrans e investimentos em transportes da PMSP (Prefeitura do Município de São Paulo), além do histórico de obras viárias no perímetro do eixo, a ser definido (exemplo: perímetro da operação urbana destinada a captar recursos para a obra e modificar o uso e ocupação do solo).
Mito 3: Paris não enterrou trilhos
O mito em questão já foi rebatido num artigo publicado pelo COMMU em 2015, intitulado “Por que o enterramento da CPTM no eixo Lapa-Brás é tão importante?” e o fato é: Paris realizou obras de vulto há mais de 40 anos, enterrando ferrovias com trens suburbanos que conectavam Paris às cidades vizinhas, para criar um sistema de metrô regional batizado de RER, que em tradução livre seria algo como Rede Expressa Regional. Abaixo estão duas reportagens curtas em francês que registram a RER quando ela ainda era uma novidade.
Para aqueles mais familiares com o idioma inglês, reproduzo abaixo o fragmento de um artigo de 1972 da revista Popular Science:
Mito 4: qualquer lobby pró-enterramento deve ser rechaçado
É triste ser submetido a enfrentar na pele, dia após dia, uma série de problemas que parecem incomodar muito pouco a mídia hegemônica e o campo progressista, tendo depois o ponto de vista desqualificado e tornado suspeito a troco de nada.
Se há alguma loucura envolvida, é o fato dos passageiros precisarem usar infraestruturas obsoletas e precisarem (tentar) compreender, dia após dia, inúmeros problemas em virtude disso. Quando o poder público exibe uma proposta, ainda que problemática, que possui elementos importantes para resolver uma série de problemas, esta passa a ser rechaçada sem que nenhuma alternativa clara seja fornecida. Novamente: é justo?
Com certeza é preciso fazer lobby em prol do enterramento e exigir um processo participativo e transparente, como aliás nunca foi feito. Com o devido aproveitamento do solo, seria possível reduzir parte do déficit habitacional e ainda permitir a exploração pelos atores interessados em construir e comprar CEPACs. O que não dá é continuar com uma periferia cada vez mais inchada e uma infraestrutura extremamente deficiente e que, pior ainda, segrega áreas urbanas estratégicas, centrais e que recebem um grande fluxo de pessoas diariamente.
Ao campo progressista que não vive na região e não utiliza os trens, o mínimo que se espera é bom senso, não adjetivos como “absurdamente delirantes” ou “loucos de pedra” ou ainda, meias-verdades sobre a realidade parisiense, que revela o oposto: obras pesadas de infraestrutura, metronização dos serviços suburbanos e enterramento das linhas nos pontos nevrálgicos de conexão da malha metroferroviária.
Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.
comments powered by Disqus