Até que ponto faz sentido despedir-se de um trem?

Por Caio César | 22/05/2018 | 7 min.

Legenda: A Estação Palmeiras-Barra Funda através da janela de um trem da série 1100
O título parece estranho? Pois é, contudo, mais estranho ainda é uma despedida que parece virar as costas para uma série de questões ligadas aos trens da CPTM, principalmente os mais antigos

Índice


Uma breve introdução

Quando comecei a escrever este artigo, simplesmente não fazia ideia de como poderia provocar o leitor e ser capaz de expressar um profundo questionamento à ideia de se despedir de uma série de trens da Companhia Palista de Trens Metropolitanos (CPTM) que, felizmente, serão aposentados — na verdade já deveriam ter sido em 2014, considerando um artigo de dois engenheiros da CPTM para a Revista Engenharia em 2013.

Mas qual questão motivou a escrita do artigo? A divulgação no Twitter de uma fotografia de uma reunião com a equipe de marketing e relacionamento da CPTM, com vistas a garantir uma “despedida”. A foto havia sido linkada aqui, mas após insultos no Twitter em reposta ao seu uso, apesar de se tratar de algo veiculado publicamente, ela foi retirada.

Respiro fundo para tentar explicar. A CPTM vai aposentar os trens da chamada série 1100, fabricada originalmente na década de 1950 para a finada Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. Antes de ser modernizada nos anos 1990, a série de trens era conhecida pelo número 101. A modernização, porém, foi motivada por uma ação do Ministério Público, num contexto de extrema carência de serviços adequados de transporte, com direito a quebra-quebras, sindicato “pirata” e cidades praticamente falidas após o fechamento da Linha 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí) pelo governo estadual, então chamada de Linha Noroeste (Brás-Francisco Morato-Jundiaí). O governador da época, Mario Covas, admitia que não havia condições de operar a linha. Poucos anos depois na mesma linha, a periferia ficou marcada por uma tragédia em Perus em 2000, que mais uma vez evidenciou a precariedade e a rusticidade do material rodante disponível para a CPTM. Comentamos um pouco a respeito aqui (artigo de 2015).

Legenda: Um trem da série 1100 na Estação Luz

Aposentar a série 1100 é, de certa forma, uma demonstração de que, pouco a pouco, episódios tão tristes e dolorosos estão ficando no passado. Mas a despedida que se pretende, claramente, não tem nada a ver com o passado referido acima. Vai ser um evento para “ferrofãs”, jovens fanáticos pelo sistema de trilhos que, não raramente, possuem consciência inversamente proporcional à capacidade de fotografar trens. Fanatismo vazio e que, talvez por isso mesmo e sem surpresa alguma, chegue até mesmo a contar com a presença de defensores do mais podre e vil privatismo. Hoje o privatista exibe nas redes sociais uma foto comemorando o acolhimento proporcionado pela estatal, mas amanhã não hesitará em pedir seu desmonte em prol de utopias privatizantes que legaram e continuam a legar catástrofes econômicas e sociais na América Latina.


É simplesmente muito difícil comemorar

A Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, ao acolher o pedido, precisa ser auto-crítica. A série 1100 carrega, em meio aos remendos no teto e interior rabiscado e desgastado, uma carga muito pesada. Ela é a cristalização do absurdo, do imediatismo e da desigualdade. Ela reflete o rebaixamento dos cidadãos mais pobres, moradores dos antigos subúrbios e nem por isso menos essenciais para permitir que São Paulo possa existir.

A desativação da série 1100 contrasta ainda com a permanência de outras séries tão rústicas e ultrapassadas quanto, incluindo a 1700, que só teve o sistema de freios aprimorado após a tragédia de Perus. Pior ainda, cerca de 10 anos mais velha, a série 4400 continua dando suas caras na Zona Leste e no Alto Tietê.

É curioso que a CPTM tenha promovido um programa de requalificação do material rodante no passado, mas que este tenha culminado na desativação de todas as séries envolvidas, em geral mais tecnológicas (ou menos rústicas). A série 1400, por exemplo, é muito similar à série 1100 em termos de desempenho (aceleração e frenagem, por exemplo), mas o interior e cabines de comando estavam em estado de novo após a reforma pela IESA; foram cedidos trens da série 5500 que não tinham a menor capacidade de circular e estes foram entregues com conforto similar ao dos trens da frota E da Cia. do Metropolitano de São Paulo, com o interior lembrando muito os trens da frota G, sendo batizados de série 5550 ou 5500 Fase II. Daquele programa, apenas a série 4400 sobreviveu, com trens sacolejantes, barulhentos e com seus infames assentos inteiriços nas laterais, nada ergonômicos. A série 5550, por exemplo, foi encostada por suposta falta de peças.

Um descalabro com o dinheiro público. Enquanto um punhado de ferrofãs lamenta a desativação da série 1100, trens em melhores condições se tornaram sucata. Sem transparência. Sem diálogo. Sem explicação. Sem prestação de contas. E mesmo com o fanatismo em torno da ferrovia sendo excessivamente voltado ao material rodante e nada mais, ou seja, ignorando questões arquitetônicas (como as estações) e geográficas (como as regiões atendidas), não se observa qualquer reflexão maior envolvendo a aposentadoria de trens tão ruins.

Há até quem peça a preservação de um exemplar. Ora, muito bonito, muito bacana, muito legal. Mas não sobra um ferrofã numa sala de reunião que seja para discutir quão parca é a nossa capacidade de preservar a memória do transporte ferroviário. Simplesmente não se discute o Expresso Turístico, não se discute a litorina Budd RDC que foi reformada às expensas do erário e nunca rodou comercialmente e, sobretudo, não se discute uma destinação planejada e inteligente do material rodante mais antigo. A verdade é uma só: a CPTM não conseguiu desde 1992, construir uma política adequada para municípios como Santo André (Paranapiacaba), Jundiaí, Mogi das Cruzes (Sabaúna), Guararema e São Roque. Mesmo a Estação Júlio Prestes é um verdadeiro abacaxi nas mãos da estatal!

No final das contas, a ideia parece derivar das ações realizadas pela Cia. do Metropolitano, que realizou uma despedida do último trem da Frota A, sua mais antiga série de trens.

Para mais fotografias dos trens, acesse os seguintes álbuns do Flickr, criados especialmente para o artigo:


Chegou o momento de fazer um apelo

Se há um apelo a ser feito, é para que a CPTM repense certos rumos. Que fique claro: o problema não é organizar uma despedida, mas sim conseguir justificar uma despedida em meio a um cenário de crise política e institucional. E mais: justificar uma despedida com certas questões em aberto em relação a outras séries de trens.

Qual mensagem a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos pretende passar para aqueles que não são ferrofãs?

Nós sabemos que os profissionais envolvidos também utilizam os trens e conhecem muitíssimo bem o passageiro. Exatamente por isso, vale lembrar: quando a CPTM fez a campanha Gente que Move São Paulo qual foi mesmo o motivo das críticas? Foi que o passageiro habitual claramente não se enxergava nos personagens da campanha, chegando a se sentir até mesmo ofendido.

É evidente que existem muitos problemas quando se fala do cotidiano nos trens de uma parcela da malha de transporte metropolitano. Há muita falta de educação, muitas noções equivocadas, muita raiva. O COMMU foi criado para tentar reverter a mobilização negativa e difusa e orientá-la para não só dar a visibilidade que tantas cidades e o próprio sistema da CPTM merecem, mas para que exista a capacidade de lutar por melhorias e pautar o sistema inteligentemente. Ainda não conseguimos, mas sabemos que certas posturas por parte do governo, da Secretaria dos Transportes Metropolitanos e de suas estatais, são decisivas.

Legenda: Elevador vandalizado na Estação Palmeiras-Barra Funda e banheiro com horário restringido devido a vandalismo recorrente na Estação Lapa da Linha 8 (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno). Sabemos que não é fácil…

Quando será que vamos sentar à mesa com a CPTM para discutir, de verdade, o sistema em sua completude? Não uma reunião pontual. Uma reunião permanente, que resulte numa agenda, num conjunto de compromissos, com acompanhamento por meio de encontros regulares.


Bibliografia complementar

BEZERRA, Paulo. Estudo sobre a modernização da malha da CPTM - Companhia Paulista de Trens Metropolitanos: resultados operacionais. Tese (Graduação em Logística e Transportes) - Faculdade de Tecnologia de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível em < http://daroncho.com/tcc/tcc111-Paulo.pdf >

LUZ, Luciano Ferreira da. A geografia do transporte de passageiros: avaliação da modernização da CPTM e de seu papel no planejamento e na estruturação do espaço metropolitano de São Paulo. 2010. Tese (Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. doi:10.11606/T.8.2010.tde-10022011–094138. Disponível em < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-10022011-094138/pt-br.php >




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