Nossa imprensa ainda descarrila quando aborda a (má) qualidade da CPTM

Por Caio César | 08/07/2018 | 8 min.

Legenda: Estação Francisco Morato, Linha 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí): estrutura provisória completará oito anos em novembro
Afirmações subjetivas podem não ser a melhor forma de abordar temas ligados à mobilidade. Entenda

Índice


Parte 1: qualidade, prazo e investimento

Recentemente o Estadão publicou um inusitado editorial sobre a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, no qual acertadamente chamou atenção para sua importância e um processo modernizador que se arrasta desde o início da década de 1990.

O problema começa quando o editorial sobre a CPTM esbarra no famigerado hábito que a imprensa e algumas pessoas têm de falar em qualidade sem definir o que exatamente entendem por qualidade. Confira o fragmento abaixo:

Se comparada a situação da CPTM quando surgiu ao que se tornou nesses 26 anos, houve uma significativa mudança para melhor. A imagem dos velhos trens de subúrbio foi ficando para trás. Mas, se a comparação é com o que a CPTM pretende ser, falta muito para se atingir o objetivo. Principalmente, porque se pretende dar à CPTM o padrão de qualidade do Metrô — um meio de transporte rápido, respeitador dos horários e confortável, com trens modernos e estações funcionais.

No sentido de ser uma unanimidade, fica o questionamento seguido de reflexão: quem disse que os trens da CMSP (Companhia do Metropolitano de São Paulo, oficialmente abreviada como METRÔ) sempre são confortáveis e rápidos? A Linha 3-Vermelha, a mais movimentada da capital, possui um dos mais tensos horários de pico, se não do país, do mundo. É ingenuidade achar que mesmo na Cia. do Metrô tudo é perfeito e, pior ainda, é demonstração de desconhecimento fazer parecer que apenas ela possui estações funcionais e trens modernos, principalmente quando a Zona Leste precisou esperar até uma Copa do Mundo para que estações como Belém ganhassem uma cobertura na passarela de acesso entre mezanino da estação e as ruas do entorno.

⇒ Como fazer então? Iniciativas como o MoveCidade, a partir da coleta de dados por passageiros, permitem construir uma noção de qualidade menos subjetiva, já que ela fica atrelada a indicadores. A percepção do passageiro não é colocada de lado, porém, também não fica dissociada de um conjunto fixo de perguntas e respostas. Outra forma é tentar solicitar dados de incidentes graves que prejudicaram os serviços por meio da Lei de Acesso à Informação (na CPTM, o SIC é o responsável) ou ainda coletá-los de forma independente, combinando Twitter, IFTTT e Google Docs (no momento o COMMU já tem um processo de coleta funcional a partir dos tuítes do Direto dos Trens, com a expectativa de iniciar a análise dos dados em 2020).

O editorial então prossegue, sem avançar além da ideia de rapidez, conforto, respeito a horários, trens modernos e estações funcionais:

Se e quando o serviço da CPTM atingir o nível de qualidade do Metrô, como deseja o governo do Estado, São Paulo disporá de uma rede metroviária de 370 km, o que a colocará em posição próxima da de grandes cidades dos países desenvolvidos. Trata-se de um objetivo que pode ser perfeitamente atingido num prazo razoável, tendo em vista que os investimentos necessários para tal são bem menores, por exemplo, que os exigidos para a expansão do Metrô.

Para atingir a vaga ideia de qualidade, o editorial fala em prazo razoável, mas não esboça estimativas, além disso, arrisca que os investimentos necessários para uma malha 3× maior seriam bem menores do que aqueles para expandir a rede da Cia. do Metrô. Ora, o que é razoável para uma pessoa pode não ser para outra. Talvez seja razoável para o governador os prazos que a CPTM recorrentemente torna públicos, embora os descumpra, iniciando ciclos de novos prazos, contudo, a ideia de que os investimentos podem ser bem menores pode reforçar a noção de que a expansão da malha exige cavar túneis, o que não é bem verdade, além disso, a qualificação do atendimento nos subúrbios pode exigir duplicar, triplicar ou quadruplicar as linhas, para não falar de outras melhorias que poderiam ser exigidas, se o intuito for oferecer serviços expressos que tornem o fenômeno da pendularidade menos penoso, afinal, mesmo num mundo perfeito, desenvolver toda a região metropolitana de maneira relativamente uniforme poderia exigir muitas décadas, talvez mais um século.

⇒ Como fazer então? No caso apontado, a pressão e o acompanhamento são mais difíceis, porém, é possível acompanhar editais via Diário Oficial, utilizar algumas iniciativas de transferência governamentais, se valer novamente da Lei de Acesso à Informação e também tentar pressão pela via política, pressionando deputados de oposição da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo). O Ministério Público também pode ser útil.

Importante: os comentários dos tópicos “Como fazer então?” não esgotam o debate sobre possibilidades nem representam os únicos caminhos possíveis. São apenas sugestões objetivas que buscam tornar o debate e a crítica menos vagos.


Parte 2: evitando distorções

Feitos os devidos apontamentos ao editorial na seção anterior, torna-se oportuno, mais uma vez, explicar que a ideia de subúrbios ou periferias não implica na noção de que a CPTM e a CMSP precisam operar sistemas completamente diferentes.

A grande questão é que o atendimento suburbano não necessariamente exige um tipo de serviço diferente, o que faz muito sentido quando olhamos para o processo de metropolização da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo), que foi iniciado na década de 1940 e patinou bastante no que diz respeito à governança, com falhas institucionais e marcos regulatórios problemáticos, algo que permanece até hoje, devidamente agravado pelo conceito de Macrometrópole, que a Emplasa tem falhado em consolidar.

É preciso compreender que a existência de serviços que foram chamados de trens suburbanos e trens urbanos, de forma equivalente e absolutamente vaga, se dava quando os corredores ferroviários utilizados eram de propósito geral, com a existência de transporte regional de longa e média distância, além de transporte de carga, sem exigência de segregação. Trata-se de um cenário que não existe mais hoje e nem mesmo é mais desejável.

O modelo da CPTM precisa ser aquele que dialoga com a realidade das cercanias, não com idealizações tipológicas subjetivas, as quais não deixam claro o que pretendem engrandecer, exceto talvez pelo ego de uma minoria.

O problema começa quando se tenta afastar a CPTM e o próprio termo cunhado pela sua predecessora Fepasa DRM — o Trem Metropolitano — de uma realidade inevitável, que é a metropolização do território, exigindo que a ferrovia tenha um atendimento metropolitano. Quando o ex-governador paulista Fleury criou a CPTM e prometeu intervalos de 3 minutos, já deveria estar óbvio que nossos subúrbios não são sinônimo de bucolismo e subdivisões surgidas no pós-guerra, exaltando o automóvel. Nossos subúrbios apresentam marcas relevantes de conurbação, possuem extensões significativas com elevada densidade populacional, possuem imensas áreas fruto de autoconstrução e um grau de complexificação que, ainda com populações que nem sempre possuem rendas médias adequadas, apontam que uma Linha 1 da CMSP não está fazendo um atendimento diferente da Linha 8 da CPTM. Os subcentros da RMSP, mesmo olhando para uma cidade como Francisco Morato, são muito mais complexos do que os vilarejos/vilas de cidades com 5% a 10% da população daquele município, como são algumas configurações esteticamente belíssimas atendidas pelo Metro-North em Nova Iorque.

É também absurda a ideia de que, se o atendimento é suburbano, então ele não pode ser metropolitano. Primeiro, pois a noção de subúrbio também fica vaga e pode, como disse, estar associada a um tipo de tecido idealizado, segundo, por negar que sistemas clássicos de metropolitano, como o londrino, nasceram associados à expansão e integração dos subúrbios às movimentadas ruas da capital (leia aqui uma reportagem da BBC News).

Em suma, a discussão existe, pois suas raízes são negligenciadas, a começar pela problemática da habitação, que se inicia no Brasil-colônia com o regime sesmarial e a produção de latifúndios. Se as raízes são negligenciadas, a facilidade de interpretar a realidade distorcidamente é potencializada.

A CPTM nasceu para “metronizar” uma malha que tem como finalidade não ela mesma, mas a manutenção de uma metrópole, que precisa ser minimamente competitiva, o que envolve atender as cercanias surgidas em contextos que podem remontar ao século XIX.

A CPTM pode e deve elevar a sofisticação de seus serviços, porém, ela vai fracassar se interpretar equivocadamente o território, embora o plano de inserção elaborado pela Fupam demonstre que as chances são pequenas, sendo que as questões políticas e orçamentárias são os complicadores principais.

Ao sofisticar seus serviços, provendo a expansão da malha, a conexão com trens regionais que circulam em infraestrutura própria e segregada (operada ou não pela própria CPTM ou estatal ligada à STM, Secretaria dos Transportes Metropolitanos), a diversificação dos serviços metropolitanos (com a oferta de expressos e o aumento da flexibilidade, exigindo mais vias, pátios, estacionamentos etc) e até mesmo a elevação do conforto do salão e dos trens (incluindo adotar trens de dois andares que permitam embarque e desembarque rápidos, como acontece com linhas como A e a B da francesa RER), a CPTM não estará se afastando de um serviço de metrô, mas se aproximando, fira ou não o saudosismo e as interpretações simplistas de parcelas da imprensa, da sociedade, da elite política ou mesmo de uma academia que ainda se encastela vergonhosamente.




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