Comércio ambulante merece “tolerância zero”?

Por Caio César | 24/12/2018 | 11 min.

Legenda: Antiga placa da CPTM destacando a proibição ao comércio ambulante na Estação Mooca
A dissociação entre a prática do comércio ambulante, o território e a sociedade parece facilitar a ideia de que apenas um combate rigoroso e nada tolerante com a atividade poderá devolver a paz ao sistema. Será mesmo que precisa assim?

A ideia de uma política do tipo “tolerância zero” aparece comumente quando a questão do comércio ambulante é abordada. Obviamente, existem nuances e nem todos que são contrários acreditam, necessariamente, que o combate ao comércio ambulante deve ser pautado a partir de uma perspectiva punitivista.

Recentemente veio ao meu conhecimento a agressão de um agente de segurança (BAZANI; MARQUES, 2018) da Companhia do Metropolitano de São Paulo (oficialmente abreviada como METRÔ, abreviada aqui por mim como CMSP). A discussão feita em um grupo do Telegram teve como elemento central a necessidade de “combater a zona”, especialmente a partir da valorização de experiências do tipo “tolerância zero”, como a do passado de Nova Iorque e de seu sistema de metrô, que passou por um agudo processo de sucateamento nas décadas de 1970 e 1980.

Infelizmente minha noção sobre tolerância zero não é permeada por entusiasmo e muito menos por uma ideia exacerbada de disciplina. Na verdade, procurar por “zero tolerance mass incarceration” no Google revela reportagens bastante interessantes e, infelizmente, entristecedoras, indicando que o caminho talvez precise ser outro, além de alimentar rápidas comparações com nossa infrutífera guerra às drogas. Exemplos de reportagens: One Robber’s 3 Life Sentences: ’90s Legacy Fills Prisons Today, The Effects of Mass Incarceration on Communities of Color, What is zero tolerance? e 5 Myths on zero-tolerance policies.

Em um artigo que trata da existência de uma trajetória entre a escola e o presídio (HEITZEG, 2009), o foco está, justamente, na discussão da ideia de tolerância zero aplicada ao ambiente escolar — aparentemente se trata de um tema recorrente quando se fala de tolerância zero nos Estados Unidos. O tratamento de problemas disciplinares com severidade, transformando-os em crimes, se tornou sinônimo de uma política de encarceiramento em massa, na qual os infratores são presos na escola ou fichados junto à polícia. Combinando a política de tolerância zero com sistemas carcerários voltados à juventude, que podemos grosseiramente comparar à Fundação Casa (antiga Febem), ir para a escola se torna, figurativamente, sinônimo de ir para a prisão (HEITZEG, 2009, p. 2). O tema abordado pelo artigo de Heitzeg é também discutido com maior brevidade em Lind e Nelson (2015).

Heitzeg (2009, p. 3) ainda alerta para a influência exercida pela televisão, que contribui para criar um mundo do crime que, na prática, não existe. Pessoalmente, costumo chamar tal fenômeno de “datenismo”, em alusão a um certo apresentador de programas de jornalismo policial de qualidade bastante questionável. Como Glassner apud Heitzeg (2009, p. 4) aponta, as representações midiáticas produzem uma “cultura do medo”. No caso do artigo que estou mencionando, interseccionam-se ainda questões de raça, que atrelam a prática de determinados tipos de delito aos negros e latinos. Considerando como se constitui nossa população carcerária segundo Pires (2017), seria bastante razoável levantar imediatamente a hipótese de que o mesmo pode se aplicar ao Brasil e à Região Metropolitana de São Paulo, hipótese esta que parece se confirmar em Caldeira (2011, p. 37–38).

Caldeira (2011, p. 27) argumenta que “a vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do crime e do medo”, o que por sua vez, afetou as conversas diárias, tornando-se um tema central. As conversas diárias sobre o crime, por sua vez, proliferam-se e circulam justamente devido à combinação de medo e violência, duas coisas de difícil entendimento. É aí que Caldeira (2011, p. 27) desdobra um conceito fundamental e que, apesar de ter sido introduzido ao falar do aumento de crimes violentos, não está restrito a eles, chamado de fala do crime e que, adverte, é contagiante, fragmentada e repetitiva:


[...] todos os tipos de conversas, comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o medo como tema.

Para Caldeira (2011, p. 27), a “fala do crime não é só expressiva como também produtiva”: ela molda percepções e forma opiniões. Observando a narrativa inicialmente analisada pela autora, podemos rapidamente traçar parelelos envolvendo os ambulantes. Por exemplo, a ideia de que o sistema de trilhos era mais tranquilo antes de ações de expansão (como a ampliação da Linha 5-Lilás ou mesmo a redução de intervalos ao longo dos anos, no sentido de uma expansão de capacidade/oferta de lugares). Neste sentido, é oportuno fazer uma citação mais abrangente:

“Nas narrativas, o crime organiza a estrutura de significado e, ao fazer isso, combate a desorganização da vida produzida pela experiência de ser vítima da violência. No entanto, esse uso do crime como divisor entre um tempo bom e outro ruim simplifica o mundo e a experiência. Recurso retórico que dá a dramaticidade à narrativa, a divisão entre antes e depois acaba reduzindo o mundo à oposição entre o bem e o mal, que é a oposição central que estrutura as reflexões sobre o crime. Ao fazer essa redução, as pessoas normalmente apresentam relatos simplistas e tendem a criar caricaturas: o antes acaba virando muito bom; o depois, muito ruim.” (CALDEIRA, 2011, p. 33)

Quando Silva (2009, p. 177) argumenta que há uma “intensa perseguição e na política de criminalização que sofre esta atividade ao colocá-la no mesmo nível de delitos cometidos no território dos trens como os de tráfico de drogas, roubos e furtos”, rapidamente podemos traçar uma relação com visões de tolerância zero, que, por sua vez, são aceitas e ganham legitimidade devido à fala do crime.

Também é oportuno fazer uma citação mais abrangente com relação ao comércio ambulante, pois Caldeira destaca as características dos espaços e o recorte de classe existente (grifos meus):

Os centros que articulam o transporte público — metrô, estações de trem e terminais de ônibus — têm sua própria cultura. São geralmente espaços das camadas trabalhadoras, cheios dos sons de música popular e dos cheiros de frutas e todos os tipos de comida. Todos os dias, milhares de pessoas passam por essas estações e gastam um tempo considerável nos transportes públicos. Essas áreas sempre apinhadas são grandes espaços para se vender qualquer coisa, de religiões a comida, de curas a aparelhos eletrônicos, de ervas medicinais a lingerie, e o intenso comércio dos ambulantes toma boa parte do espaço das calçadas do centro. Tomar um ônibus, trem ou o metrô na hora do rush (algo que as classes média e alta deixaram de fazer) significa lutar por um espaço em carros lotados ou amassado contra os outros. E isso apesar do fato de que o transporte público em São Paulo melhorou, especialmente o metrô. Entretanto, aqueles que usam os transportes coletivos diariamente, como os moradores do Jardim das Camélias, sentem que as coisas hoje estão muito mais tensas e desagradáveis do que no passado: há pouca cortesia e muita agressão. E certamente há mais preconceito, já que a classe média ensina a seus filhos que os ônibus são perigosos e contrata motoristas particulares para eles. (CALDEIRA, 2011, p. 320–321)

Meu ponto é que considero um grande equívoco dissociar a prática do comércio ambulante de questões territoriais e de classe, até porque considero que o aumento do comércio ambulante é fruto da situação econômica, análise esta corroborada por Juliana Inhasz do Insper, conforme Arcoverde e Prado (2018), além disso, Silva (2009, p. 129) argumenta que o Trem Metropolitano da CPTM apresenta “algumas especificidades não só que o diferencia dos demais espaços públicos normalmente pelos ambulantes, mas principalmente pelo fato de que ele torna mais latente e visível as contradições existentes na sociedade pelo fato de ter a ação direta de uma empresa pública, a CPTM, portanto o Estado agindo exatamente de acordo com a lógica de mercado do sistema capitalista”.

Legenda: Extraído de: Arcoverde e Prado (2018)

Insistir na argumentação de que apenas é preciso punir com severidade e ignorar quem, como e onde o sistema de trilhos atende, seria, diante da minha formação acadêmica e trajetória pessoal, uma incoerência tremenda, até mesmo desrespeitosa. Infelizmente, como salienta Silva (2009, p. 136), “a massa de trabalhadores que exerce formas alternativas de trabalho configura-se como um mecanismo que aplaca de maneira significativa às carências oriundas do longo tempo no qual esses trabalhadores ficam sem possibilidade de um ’emprego formal’”.

Como podemos supor a partir dos relatos em Lemos (2018), as opiniões sobre a presença dos ambulantes dividem-se. Legalmente, a prática é proibida pelo Artigo 40 do Decreto 1832/1996, porém, pessoalmente não creio que a prática venha a desaparecer, ainda assim, enxergo nela um importante termômetro, que deveria suscitar a construção de políticas públicas e uma maior preocupação quanto ao desenvolvimento socioeconômicos dos territórios atendidos pelo sistema metroferroviário. Quando Silva (2009, p. 138) observa que seu objeto de pesquisa, a Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) da CPTM (SILVA, 2009, p. 142), exibe uma realidade que une e coaduna “fenômenos de âmbito macroeconômico e que se relacionam diretamente ao fenômeno do desemprego e conseqüente aumento das atividades do setor informal como um todo e do comércio ambulante especificamente” (SILVA, 2009, p. 138), o autor elenca (i) a redução da necessidade de mão de obra pela adoção de novas tecnologias e mudanças no padrão de organização produtivo das empresas; (ii) sucessivas crises econômicas e a globalização da economia de forma dependente e; (iii) migração intensa de uma população de difícil empregabilidade em direção à Região Metropolitana de São Paulo durante as décadas de 1970 e 1980 (SILVA, 2009, p. 138–139).

São exatamente tipos de fenômenos que ao meu ver parecem amesquinhados frequentemente quando se fala do comércio ambulante, no entanto, quando se fala contra a presença do ambulante no sentido de que são criminosos que devem ser severamente punidos, há pouca margem para dar um caráter mais racional à discussão, fugindo do empobrecimento devido à “fala do crime”.

Quando Silva (2009, p. 152) ao fazer referência à Linha 8-Diamante, aponta que “os municípios desse eixo da RMSP foram caracterizados como cidades dormitórios fazendo com que houvesse uma homogeneidade nesses municípios em relação à população que a ela se destinou para efetivar moradia, criando uma espécie de ’especialização’ da mão-de-obra”, está claramente descrevendo características socioeconômicas que provavelmente não serão alteradas por uma visão de tolerância zero, baseada na ideia de “janelas quebradas”. Resolver o problema do comércio ambulante, que conflita com o ritmo frenético dos trens, também ligado às disparidades no uso e ocupação do solo, passa por pensar os municípios atendidos. Eis a diferença entre atacar sintomas e causas-raízes.

Como a Linha 8-Diamante foi citada, sobre a aproximação de Barueri em relação a Osasco devido à implantação de condomínios residenciais Alphaville e edifícios corporativos e empresariais associados, vale salientar que “embora haja uma nova função econômica para a cidade ela não foi suficiente para modificar de forma substancial o quadro socioeconômico da população que vive aquém dos altos muros com proteção de rede elétrica dos condomínios” (SILVA, 2009, p. 153). Por quais motivos é importante mencionar a dificuldade de elevar o desenvolvimento dos outros municípios, apesar da presença de Alphaville? Pelo fato de que, mesmo atuando como centralidade, Alphaville em si não é suficiente para tornar sustentável e homogêneo o desenvolvimento dos municípios ao longo da Linha 8-Diamante, mesmo para quem vive em Barueri mas está fora dos muros.

Silva (2009, p. 160), ao analisar uma amostra de 50 indivíduos, identificou que “essa relação entre o desemprego e o trabalho como ambulante também é reforçada pelo percentual de 70% dos entrevistados declararem que essa atividade não foi o primeiro emprego”, além disso, o autor verificou que 50% dos entrevistados atuavam há dez anos ou mais vendendo mercadorias na Linha 8.

Diferentemente de Silva (2009, p. 190–191), embora eu concorde que a atividade do comércio ambulante possa ser inserida na dinâmica capitalista e dialoga com a existência de um exército de reserva, francamente não acredito que sua legalização, a exemplo que tentou ser feito no Rio de Janeiro, terá uma característica de emancipação (num sentido pleno, econômico e social, rompendo com visões que marginalizam os praticantes). Ainda sobre o Rio de Janeiro, segundo O Dia (2014), apenas 160 vendedores aceitaram a formalização, muito pouco diante de um universo de 10 mil ambulantes. Minha visão se aproxima daquela observável em Pamplona (2004, p. 336), para o qual em contexto econômico recessivo “a capacidade de regulação do poder público municipal acaba ficando reduzida e os conflitos com os ambulantes crescem. O uso de políticas de emprego e renda, especialmente dirigidas a homens em idade madura e com baixa escolaridade, e que possam reduzir esse fluxo de novos entrantes no comércio de rua, é fundamental”.

Longe de pretender esgotar o tema, meu objetivo foi apontar que é possível pensar na questão do comércio ambulante para além de uma perspectiva puramente punivista. Tomando como exemplo o trabalho de Silva (2009), o poder público poderia desenvolver um mapeamento em parceria com uma ou mais universidades, elaborando políticas públicas em múltiplos níveis, que abrangeriam desde ações de inteligência para um combate menos afoito e casuísta, que pode acabar envolvendo passageiros e contribuindo para alimentar crises de imagem, até planos de desenvolvimento local que busquem reduzir a vulnerabilidade das populações que se encaixem no perfil dos ambulantes, bem como busquem elevar o nível de desenvolvimento socioeconômico das regiões em que se residem.




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