Estadão defende reajuste e opta por escamotear discussão envolvendo fontes de financiamento

Por Caio César | 07/01/2019 | 7 min.

Legenda: Ônibus da linha 7002-10 (Jardim Rosa Maria-Hospital das Clínicas) na região de Pinheiros
Para jornal da família Mesquita, aumento autorizado por Bruno Covas corresponde aos interesses de quem vive em São Paulo

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Em um editorial pouco surpreendente, o jornal O Estado de S. Paulo defendeu a postura do prefeito Bruno Covas, argumentando que o aumento da tarifa é uma decisão que “corresponde aos interesses dos paulistanos” e que houve “sensatez e realismo”.

Para nossa infelicidade, o editorial não passa de uma sucessão de erros que reproduzem uma opinião rasa e pouco comprometida com o bem-estar dos passageiros e passageiras do transporte público.


Equívoco 1: equipara as posturas de Fernando Haddad e João Doria

De imediato, é perceptível que os reajustes adotados por Haddad e Doria foram comparados como se representassem apenas a tarifa unitária. O Estadão omite, por exemplo, que Doria tornou a integração entre ônibus e trens do Metrô e da CPTM mais cara (a tarifa integrada então era de R$ 5,92 e passou para R$ 6,80, o que, segundo a Rede Brasil Atual, significou um aumento duas vezes superior à inflação), contrariando a política de intermodalidade vigente até então, ademais, também foram omitidos os reajustes e mudanças nos bilhetes temporais que tinham sido introduzidos na gestão de Fernando Haddad, o que significou o fim do Bilhete Único Mensal. Também foram feitos cortes no Passe Livre Estudantil, potencializando o confinamento de estudantes pobres, que perderam o acesso a equipamentos públicos e privados, incluindo equipamentos de uso gratuito que contribuem para ampliar a bagagem cultural, como parques, bibliotecas, centros comunitários e outros.


Equívoco 2: jogou com o discurso da má qualidade para diminuir a importância do subsídio

Flagrante também foi a desonestidade envolvendo a qualidade dos ônibus municipais: como o serviço de ônibus tem muitos problemas, para o Estadão foi cômodo falar em má qualidade e fazer uma comparação vira-lata com um exterior idealizado:

O argumento segundo o qual o transporte coletivo é subsidiado em quase todo o mundo, como alegam os que tentam justificar o que acontece com o serviço de ônibus da capital, é verdadeiro, só que lá fora eles apresentam qualidade muito superior.

E após jogar fumaça citando problemas na qualidade do serviço, o editorial segue rechaçando uma postura que ele resume como sendo “experiências de congelamento”. Em nenhum momento houve a preocupação de se apresentar reportagens comparativas envolvendo cidades e sistemas de outros países, que pudessem complementar o editorial, similarmente, não há nenhuma menção a fontes alternativas de financiamento, assunto que discutimos brevemente nos últimos dias. O Estadão repetiu ainda o mesmo erro cometido em um editorial publicado na metade de 2018, quando tentou abordar a má qualidade da CPTM, naquela época, também escrevemos uma crítica.

Há ainda outros fatores ligados ao custeio que ficaram de fora: insumos, combustíveis (vide gráficos abaixo) e até mesmo quadro funcional. São Paulo não tem reduzido o papel dos cobradores, por exemplo? Por que o Estadão ignorou tais questões, baseando a argumentação em dois pilares: congelamento e inflação? Fica a dúvida.

Legenda: Variação percentual mês a mês do preço desde julho de 2001. Fonte: Nexo
Legenda: Preço do combustível corrigido pela inflação (real). Fonte: Nexo

Finalmente, como apontado pelo pesquisador Rafael Calabria do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), a Política Nacional de Mobilidade Urbana, sancionada em 2012, “possibilita que o gestor público busque recursos em algumas áreas para cobrir o custo da tarifa. Esses recursos podem vir de receitas alternativas ou de compensações e tributações de outras categorias que se beneficiam dos serviços de transporte”. O editorial do Estadão, obviamente, não tem uma palavra sobre a Política Nacional de Mobilidade Urbana.


Equívoco 3: ignorou uma situação contratual delicada

É impressionante que pareça ter sido depositado excessivo otimismo numa licitação que está se arrastando desde a gestão Fernando Haddad e, com o otimismo, veio mais uma omissão: os contratos emergenciais, que aludem à última grande situação emergencial enfrentada pela capital: a tarifa dos bondes da Light durante a Segunda Guerra Mundial. Para recordar o que acontecia naqueles cada vez mais longínquos tempos, vale um fragmento do livro “A capital da vertigem”, de Roberto Pompeu de Toledo:

A Light, insatisfeita com o eterno congelamento da tarifa e com a falta de resposta a seu plano de metrô, se desinteressara havia muito do serviço de bondes. Para alívio da empresa canadense, o final de seu contrato se daria em 1941. Para prolongamento de sua agonia, não se deu. A emergência da guerra serviu de pretexto ao governo federal para, por meio de decreto-lei, forçá-la a continuar a prestar o serviço. O poder público, em qualquer de seus níveis, não tinha naquele momento condições de substituí-la.

A questão da licitatória, abre, inclusive, oportunidades para discussões sobre remuneração, que afetam diretamente as contas do município. Segundo clipping do Diário do Transporte feito pelo Idec, para o Tribunal de Contas do Município, “com a falta de esclarecimentos suficientes sobre alguns custos previstos nos editais e com a TIR - Taxa Interna de Retorno proposta de 9,85%, o TCM sustenta que os paulistanos terão prejuízos de R$ 3,76 bilhões, com remunerações acima do necessário. O TCM sugere uma TIR de 6,44%”. Em 2017, segundo reportagem do Portal G1, o mesmo Tribunal apontava gastos de R$ 2,5 bilhões com contratos emergenciais.

Apesar de não ter sido citado no editorial, no mesmo dia o Estadão publicou reportagem na qual apontava que “de 2013 para cá, o TCM cancelou as licitações por cinco vezes, argumentando que os editais tinham irregularidades formais”. A mesma reportagem ainda contraria frontalmente o editorial ao concluir que “se todos os aumentos que a passagem de ônibus de São Paulo sofreu desde que o bilhete único foi criado, em maio de 2004, tivessem sido corrigidos apenas pela inflação, a tarifa cobrada atualmente deveria ser de R$ 3,82”, porém, ameniza a tarifa de R$ 4,30 considerando que “na prática, o que a gestão Bruno Covas (PSDB) fez foi recuperar as perdas: no lugar de um reajuste de 3,5% optou por considerar os três últimos anos: 13,06%”.


Equívoco 4: historicamente, foi contra as faixas exclusivas de ônibus

Na esteira de tropeços, é preciso apontar que a priorização viária aos ônibus recebeu covardes ataques em editoriais passados, embora seja um elemento importante para reduzir custos e aumentar a qualidade, pois melhora a pontualidade dos ônibus e evita queimar diesel em congestionamentos. Sob a máscara da necessidade de um planejamento que agradasse os donos do pasquim e, muito provavelmente, anunciantes da indústria automobilística, faixas exclusivas e corredores receberam duras críticas, como se fossem irrelevantes ou estivessem sendo implantados de forma excessiva. Uma das covardias recebeu o título de “A demagogia da mobilidade” e foi publicada em outubro de 2013, quando o COMMU ainda não existia, nela, lemos:

No lugar de implantar, sem planejamento e a toque de caixa, as faixas exclusivas que servirão de cenários para os próximos programas eleitorais do PT na campanha para o governo do Estado, Haddad e Tatto deveriam adotar um plano capaz de harmonizar a utilização de carros com o transporte público, de acordo com as necessidades das várias regiões da cidade.

Este suposto planejamento ausente não parece ter inspirado o Estadão a investir mais na equipe, contratando jornalistas especializados e desenvolvendo reportagens mais aprofundadas e em série. O jornal tratou as faixas exclusivas como uma espécie de egoísmo e ataque a motoristas indefesos, que então seriam multados cruelmente, pois atrapalhavam os ônibus apenas pelo fato de terem compromissos e horários a cumprir — e quem utiliza os ônibus, que transportam mais e são mais eficientes do que os automóveis, pode se atrasar?

O ataque às faixas exclusivas não ficou restrito ao ano de 2013, em um texto elogioso intitulado “A retomada dos corredores”, publicado em 17/06/2018, o jornal instrumenta o corredor com padrão BRT da Radial Leste (que tentou ser construído durante a gestão Fernando Haddad e não evoluiu desde então) para rechaçar as faixas exclusivas, considerando-as uma “solução mágica, rápida e barata, para substituir os corredores”, dizendo ainda que “foram as faixas exclusivas, que se multiplicaram em um ritmo impressionante, pois não era preciso muito mais do que simplesmente escolher o itinerário e fazer a marcação e a sinalização indicando sua existência, sem pistas reforçadas”. Ora, uma solução mais simples sem dúvida, porém em nenhum momento tratada como substituta para corredores, pois estes últimos possuem papel estruturante muito maior, dependem de terminais de ônibus e estão inseridos numa forte lógica de tronco-alimentação.


Colaborações: Eduardo Ganança



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