Discutindo privatizações: o fracasso do Reino Unido e o sucesso do Japão

Por Caio César | 28/01/2019 | 11 min.

Legenda: Trem da Linha Yamanote na Estação Shinagawa. Autor: 運転太郎. Original: Wikimedia Commons. Licença: Creative Commons Attribution 3.0 Unported
Tendo em vista as recentes promessas do governo estadual paulista, convidamos você a entender um pouco mais da realidade britânica e japonesa

Recentemente o Financial Times decidiu abordar a polêmica questão dos serviços ferroviários privatizados do Reino Unido. Polêmica, pois a opinião pública (e também de certos veículos da imprensa, vide vídeo a seguir) tem crescentemente favorecido a renacionalização. Aparentemente a perspectiva ideológica de promover a competição, o que supostamente elevaria a qualidade e reduziria os preços, acabou provocando justamente o efeito inverso.

Legenda: Reportagem do Channel 4 News intitulada “Por que os trens da Grã-Bretanha são tão ruins — a nacionalização poderia resolvê-los?”

Considerando que dificilmente o sistema metroferroviário de São Paulo permanecerá estatal se as promessas do atual governador, João Doria (PSDB), forem cumpridas, chegou a hora de abordar o assunto pelo viés da postura ideológica, ou seja, podemos partir da seguinte pergunta: se a privatização é uma escolha ideológica e inegociável por parte do atual governo, então como nós passageiros poderemos garantir que não vamos enfrentar retrocessos durante as próximas décadas?

A resposta é simples: vamos produzir conteúdo em português e olhar experiências mundiais, mostrando que a receita para o sucesso é muito mais difícil e tortuosa do que ilusões envolvendo a Linha 4-Amarela parecem sugerir, afinal, o pesadelo do Reino Unido começou em 1994 e ainda não terminou, logo, todo cuidado é pouco, para não dizer que já escrevemos sobre problemas em Buenos Aires e Rio de Janeiro.

Ainda que a renacionalização possa ser um caminho para os britânicos, o fato é que o comando da secretaria de transportes está sob os cuidados de Chris Grayling, membro do Partido Conservador e entusiasta de privatizações. Grayling tem um grande desafio pela frente e pode ser responsável por garantir ou não a manutenção de poder nas mãos dos conservadores. Segundo o Financial Times, o segredo para encarar tal desafio está na compreensão do modelo ferroviário japonês, surgido com a privatização no final dos anos 1980, embora já existissem companhias ferroviárias privadas na altura.

Legenda: Vamos até o Japão para enriquecer o debate! Autor: LennSan

O Financial Times considera que, ainda que o caso do Japão evidencie o triunfo da iniciativa privada, este não ocorre sozinho: um sistema robusto de regulação, competição feroz indireta e uma dose sadia de especulação imobiliária são elementos indissociáveis, o que torna a replicação nada trivial.

Hironori Kato, professor de engenharia civil na Universidade de Tóquio, considera que o sucesso no ramo ferroviário depende de consciência social em relação às comunidades servidas pela malha. Hironori Kato não fala em consciência social a esmo, pois segundo Fumiaki Shiroishi, diretor da divisão ferroviária em Tokyu, que serve alguns dos subúrbios mais populares de Tóquio, o componente imobiliário tem papel muito importante. Ao Financial Times, Fumiaki Shiroishi aponta que os trilhos servem áreas residenciais relativamente atraentes e que a companhia se preocupa em garantir a fixação de uma população jovem, que considere tais bairros como bons lugares para morar.

Falar em imóveis pode parecer estranho, principalmente considerando a cristalização da desigualdade social ao longo da malha de trilhos da Região Metropolitana de São Paulo, porém, faz todo sentido dentro do modelo de negócio praticado no Japão. Grayling precisará compreender que o Japão não separa a infraestrutura dos trens como faz o Reino Unido, sendo assim, não existe uma disputa por franquias.

O Japão privatizou a rede ferroviária nacional de forma conjunta, ainda que permanecesse uma separação no nível regional, assim, em Tóquio, a JR East é dona da infraestrutura (trilhos e estações) e também dos trens. No Reino Unido, a infraestrutura é de propriedade estatal e não faz diferença para a responsável se o faturamento privado cresceu ou diminuiu, além do mais, os operadores privados não podem se envolver em problemas decorrentes da infraestrutura, como falhas na sinalização, algo que seria absolutamente impensável no Japão.

Observação: o Financial Times destaca que ainda há operações da JR que são 100% de propriedade estatal, como o caso da JR Hokkaido, que atende regiões rurais e não é lucrativa.

Ainda sobre a ideia de franquias que supostamente estimularia concorrência de alto nível, há ainda mais um problema, apontado por Takeshi Omori, funcionário da JR East: franquias com duração de 10 anos não funcionam quando o investimento só se paga no longo prazo, o que em outras palavras significa que quanto mais próximo do fim da concessão, menos há incentivo para investir. Omori diz que aí consiste a diferença entre ser o dono da própria infraestrutura ou o usuário de uma infraestrutura que está sendo emprestada.

Falar em empréstimo nos remete ao tipo de concessão que comumente vemos no Brasil, certo? Mais ou menos. É verdade que no caso da Linha 5–Lilás o governo adotou a chamada concessão por outorga, na qual o operador privado vencedor foi aquele que ofereceu a maior outorga. Basicamente a CCR, ganhadora por meio da ViaMobilidade, estava disposta a pagar o “maior aluguel”, além das poucas contrapartidas exigidas pelo governo estadual que, numa lógica não muito distante do raciocínio de Omori, possuem prazo acima de 10 anos, facilitando o amortecimento do investimento. É por isso que a ViaMobilidade tem até o final de 2021 para modernizar a Estação Santo Amaro, ainda que o poder concedente tenha recomendado que a reforma seja feita imediatamente, como salientou o Ferroviando em 24/08/2018. As diferenças podem ser observadas quando olhamos o caso da rede trens de alta velocidade (Shinkansen): um fundo governamental constrói e detém a propriedade da infraestruturas, repassando-as para as companhias da JR, que então operam os trens com custo fixo, via outorga por 30 anos. Shohei Ishii, que cuida do assunto no ministério responsável, explica que o poder público coleta e analisa informações de todas as ferrovias privadas do território japonês, fixando então o teto do custo fixo com base numa margem de lucro e de custos que exigem padrões eficientes de gestão. O poder público também colabora precificando pedágios em rodovias concorrentes para que sejam tão ou mais caros quanto as tarifas dos trens-bala, o que se soma aos custos de estacionamentos (não existe estacionamento gratuito nas ruas).

A ideologia do Partido Conservador, que lembra um pouco o que aconteceu no Rio de Janeiro, visava estimular competição, enquanto o Japão legitimou um monopólio local. Pessoalmente, acredito que os japoneses sabiam que infraestrutura ferroviária é um tipo de monopólio natural e, não somente, queriam incentivar a lucratividade pela chamada “competição por padrões” (yardstick competition, na literatura em inglês), por outro lado, os britânicos temiam os efeitos colaterais de um monopólio: tarifas extorsivas, superfaturamento, serviço mal prestado e recusa em cooperar com rivais, porém, o Japão foi capaz de contorná-los.

Saiba mais: competição por padrões é “adotada nos casos de monopólio natural”, sendo um instrumento que “procura introduzir estímulo à redução de custos entre as empresas, diminuindo o risco moral e seleção adversa, e reduzindo o custo das assimetrias de informação existentes, além de estimular maior eficiência econômica”. Os padrões são definidos e avaliados pelo ente regulador, via benchmarking, que pode se valer de métodos como Análise de Envolvente de Dados (DEA), Mínimos Quadrados Ordinários Corrigidos (COLS) e Análises de Fronteira Estocástica (SFA). Fonte: Fls. 7 e 8 da Nota Técnica nº 064/2006 da SRT/ANEEL, 18/04/2006.

Adotar um modelo concorrencial por padrões permite maiores lucros se existir a possibilidade de reduzir custos em relação à concorrência, o que beneficiou o Japão simplificando o sistema tarifário em comparação com o Reino Unido, porém, como o estado fixa um teto, a tarifa é cobrada por distância e, nos picos, os valores não se alteram em função da oferta e da demanda. O Financial Times exemplifica o resultado dizendo que todos querem embarcar no trem das 8h, na lógica de que, se custa o mesmo preço em qualquer momento do dia, então para o passageiro não faz sentido chegar mais tarde e sem poder economizar alguns ienes.

Um aspecto importante sobre a concorrência no Japão, já que ela não funciona com base em franquias com duração de 10 anos, é o paralelismo: há três rotas concorrentes entre Tóquio-Yokohama e entre Osaka-Kobe, por exemplo.

A abundância de infraestrutura, porém, ainda assim não supera a exploração imobiliária, considerada uma forma crucial de competição pelo Financial Times, ainda que possa ser abstrata. Como comentado anteriormente, as companhias JR procuram manter as cercanias das linhas lugares interessantes para se morar. Na prática, as linhas operam numa lógica radial — a mesma que predomina na malha de São Paulo — , sendo que cada linha atende um conjunto diferente de subúrbios, que por sua vez, competem. O Financial Times argumenta que o desenvolvimento imobiliário é mais fácil no Japão, embora não explique exatamente os motivos, se limitando a dizer que, dentro da lógica de negócio das ferrovias, se um subúrbio passa a ser desinteressante devido à falta de investimentos numa linha, a população simplesmente começa a se mudar, o que é indesejável e tenta ser evitado pelas empresas.

Shiroishi deu a entender ao Financial Times que o importante é manter um certo equilíbrio populacional, pois sempre haverá áreas que perdem população, enquanto outras ganham. Funcionário de uma ferrovia concorrente, Yoichi Takahashi, explica que, no passado, a construção de lojas e apartamentos eram ativadores de demanda, porém o excesso de oferta levou à consolidação da localização como diferencial, se dando pela presença de uma estação.

É preciso entender ainda que, diferente do que muitos críticos da operação estatal acham, ignorando os relatórios administrativos das duas companhias que atuam na Região Metropolitana de São Paulo (CMSP e CPTM), a receita extra-tarifária tem uma grande participação na sustentabilidade financeira das ferrovias japoneses. Shiroishi revelou que a receita da JR East está dividida da seguinte maneira: 33,3% na exploração do transporte de passageiros + 33,3% na exploração comercial (supermercados, lojas de conveniência e hotéis) + 33,3% na exploração imobiliária (Shiroishi especificamente aponta para o desenvolvimento ao redor da estação terminal em Shibuya).

Finalmente, a capacidade de cooperação entra em cena: o sistema de bilhetagem adota cartões intercambiáveis ao longo de todo o país (usando cartões por aproximação, para os quais o Financial Times utilizou o termo touch-and-go) e há ainda compartilhamento de trilhos e de material rodante (frota de trens), de forma que em Tóquio há trens suburbanos que entram diretamente nos trilhos do sistema de metrô. As empresas não colocam trens rivais para rodar, mas um passageiro pode acabar passando pelos trilhos de cinco empresas diferentes numa única viagem. A motivação, segundo o jornal, está na busca pela agregação de valor nos trechos exclusivos de cada companhia, que, lembremos, atendem subúrbios cujo desenvolvimento imobiliário complementa a receita, integrando um mercado de unidades habitacionais altamente competitivo. O ministério responsável pelos transportes também aplica forte pressão.

O compartilhamento pode parecer agressivo, porém é preciso salientar que há mais de trinta companhias diferentes, sendo duas ligadas ao governo metropolitano, a JR e outras operações privadas, funcionando num modelo similar ao da JR, que confunde a atuação privada com a pública por motivos já discutidos anteriormente. O compartilhamento de frota, para quem ficou curioso, pode ser visto entre o metrô da Toei (de propriedade estatal, do Departamento Metropolitano de Transporte de Tóquio, ligado ao Governo Metropolitano de Tóquio) e o Tokyo Metro (de responsabilidade de uma empresa de capital fechado formada em parceria conjunta pelo Governo Metropolitano de Tóquio e o Ministério de Terras, Infraestrutura, Transporte e Turismo) ou entre uma JR e outra.

Ainda que o Financial Times não tenha dito, o compartilhamento usando linhas do sistema de metrô pode acontecer pois:

  • A linha parava fora do área central antes, com o compartilhamento a baldeação via JR é suprimida, pois apesar da cooperação, não existe integração tarifária (o que acaba estimulando trens superlotados);
  • Devido à supressão de linhas em algum momento no passado, que foram desativadas em favor do desenvolvimento imobiliário.

O Financial Times sugere que o Reino Unido mantenha algumas linhas estatais e, quando fizer a privatização de parcelas da malha, a faça linha a linha, escolhendo entre outorga de longo prazo ou venda completa dos ativos. A regulação das linhas privatizadas se daria por benchmarking. As linhas estatais contribuirão para manter a idoneidade da iniciativa privada e o ente regulador ciente dos custos. Em todo caso, está longe de ser a primeira vez que o Financial Times aborda a questão do sistema ferroviário privatizado do Reino Unido, como podemos ver no vídeo abaixo, relativamente recente:

Legenda: Vídeo do canal do Financial Times publicado em abril de 2018, que busca elucidar (dentro da linha editorial do jornal) por quais motivos a privatização ocorreu em primeiro lugar

Espero que o artigo tenha contribuído para trazer algumas informações que normalmente não estão disponíveis em português, mostrando que alguns casos tidos como de sucesso exigem posturas, tanto por parte da iniciativa privada, como também do próprio poder público, que diferem bastante dos tipos de contratos que estamos acostumados a ver no Brasil. Uma “solução japonesa” exigiria drásticas mudanças na legislação, de forma a permitir uma atuação múltipla, contemplando empreendimentos imobiliários, comerciais e hoteleiros, sem deixar de existir participação e regulação eficiente por parte do governo. A inexistência de um governo metropolitano também significa que cada município tem seus processos de licenciamento e regulação do uso e ocupação do solo, embora o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDUI) possa elevar a sinergia existente entre os governos municipais e o governo estadual. Com o marco regulatório atual e o tipo de postura que tem sido observada historicamente, é difícil acreditar em resultados extraordinários. Há ainda outros fatores sobre o Japão que ficaram de fora, tais como: níveis mais aceitáveis de pobreza e desigualdades, juro baixo, além de um monte de linhas (e servidões) ferroviárias herdadas, que não foram transformadas em rodovias.


Colaborações: Thiago de Thuin (informações sobre cooperação, tarifação e outros elementos sobre o ecossistema socioeconômico nipônico)



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