Por Caio César | 19/02/2019 | 6 min.
Antes de começar, saliento que os debates sobre temas como passe livre e faixas exclusivas que, sem sombra de dúvida, possuem grande importância, seguem restritos, pior ainda, seguem sazonais, ocorrendo geralmente depois do incêndio, numa eterna e pouco frutífera corrida contra o tempo.
O campo progressista (e a esquerda, principalmente), precisa colocar as mãos na cabeça e adotar uma postura mais pragmática, coesa e robusta em prol de uma agenda para a mobilidade na cidade. É nítido que o fenômeno que consolidou a cidade como principal habitat do brasileiro não vai ser revertido. A cidade corresponde ao lugar no qual passamos e passaremos a maior parte de nossas vidas, porém, ainda assim não o discutimos muito, não gostamos de falar sobre ele e não nos debruçamos sobre os problemas adequadamente. A cidade não vai deixar de existir da noite para o dia, nem perderá o protagonismo que já adquiriu. Urge que olhemos para a cidade com disposição para encarar todos os desafios a ela associados.
Obviamente, não é possível pensar a cidade como sinônimo de todas as cidades do Brasil, assim sendo, volto-me especificamente à RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) e, feito o recorte, revelo pela primeira vez que tenho tentado contato com alguns parlamentares da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) para tentar discutir e articular uma oposição construtiva em torno do pacote desestatizante do atual governador, João Doria (PSDB), sobretudo por temer a precarização ou, na melhor das hipóteses, o engessamento da infraestrutura da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, responsável por operar uma malha de 274 km, 7 linhas e 94 estações, que passa por 23 dos 39 municípios da RMSP). O resultado tem sido um fracasso retumbante, que oscila entre o silêncio, o desinteresse e o despreparo. Sim, exceto por um vereador, nem obtive resposta, algo simplesmente inaceitável.
Em um momento de grande delicadeza, marcado pelo risco de primarização da economia brasileira, aumento da pobreza e consolidação de desigualdades e mecanismos de opressão herdados do Brasil colonial, é revoltante se ver diante de uma parede fortificada, uma barreira que, contudo, não deixa de transparecer de maneira cristalina o recorte de classe que permeia o ativismo ligado à mobilidade no Estado de São Paulo. Posturas elitistas, descoladas da realidade da periferia, resistentes a qualquer tipo de autocrítica e não raramente associadas a negócios pessoais. Em alguns momentos parece que a resposta para os problemas da metrópole são um punhado de bicicletas e patinetes distribuídas entre Pinheiros e o Brooklin.
A transformação de nossas cidades tem sido lenta e praticamente só contempla a parcela formal do urbano. Movimentos de luta por moradia que atingiram a maturidade, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) seguem marginalizados, evidenciando mais duras e cruéis questões de classe. O morador do loteamento popular (para não dizer loteamento de origem irregular) pede a cabeça das lideranças de um movimento que luta por reforma urbana, pelo cumprimento da função social da propriedade e pela redução do estoque de imóveis ociosos. Qual a reação do campo progressista? Nenhuma, praticamente nenhuma. Não há ação conscientizadora, fala-se só para convertidos, usando discursos viciados (puro cálculo eleitoral imediatista, aposto).
A integração entre as pessoas ligadas à discussão da mobilidade urbana na região metropolitana é quase nula, porque não se pode integrar aquilo que efetivamente não passa de um frágil castelo de cartas, nos quais o baralho apresenta muitas figurinhas repetidas. Quanto mais engajada a pessoa, mais ela pode ser identificada em diferentes organizações. É triste, mas é comum perceber que um militante vale por dois, três ou até quatro, pois atua em múltiplas iniciativas. Será que numa metrópole com 20 milhões de habitantes podemos normalizar um ativismo tão tímido e tão difícil? E mais: será possível continuar normalizando as dificuldades ligadas à participação e fiscalização social, com conselhos e audiências com horários proibitivos e pouco ou nenhum poder de deliberação?
Corta-me o coração admitir, porém, sejamos francos com nós mesmos: a maior parcela da população está alijada do processo político e encontra pouca ou nenhuma possibilidade de mobilização coletiva. O trabalho de base, que exige recursos que geralmente apenas os partidos são capazes de concentrar, se perdeu há muito tempo. Sem trabalho de base, o MTST segue em vias de ser criminalizado; sem trabalho de base, o mercado imobiliário continua sendo um sonho distante para muitas famílias; sem trabalho de base, o simples ato de tomar um ônibus pode significar o comprometimento da renda e o aumento da vulnerabilidade social; sem trabalho de base, o uso e ocupação do solo não mudarão, com populações comparáveis às do Uruguai inteiro (caso da Zona Leste da capital) precisando se deslocar por dezenas de quilômetros apenas para trabalhar e ganhar um salário de miséria.
Nada do que estou dizendo parece importar, no entanto. Quem sofre os efeitos do rolo compressor cotidiano está isolado, desmobilizado ou confuso. Arriscaria ainda dizer que uma boa parte da população está atirando no próprio pé diariamente, provavelmente sem se dar conta do estrago, que cedo ou tarde, vai causar dor e sofrimento.
Meu ponto é que alguns fantasmas precisam ser enfrentados de uma vez por todas. Chegou a hora de fazer um balanço sobre o pacto federativo e seu o municipalismo exacerbado, por exemplo, similarmente, é preciso reconhecer que o período do velho PSDB, de figuras como Fernando Henrique Cardoso e Mario Covas, chegou ao fim. O tipo de oposição risível que muitas vezes foi e ainda é feita precisa acabar. A qualidade de vida da população não pode ficar refém de ganhos pontuais, que em determinadas circunstâncias nem mesmo são compreendidos (caso da ampliação das faixas exclusivas, algo raro e praticamente encontrado apenas na capital paulista, no bojo da gestão Fernando Haddad).
Espero que as bancadas do PSOL, do PT e também que qualquer outro parlamentar que se coloque dentro do campo progressista, mesmo aqueles que a parcela mais extremada do espectro jocosamente chama de “esquerda liberal”, reajam. Reajam e reajam pra já!
Termino dizendo que a privatização da CPTM está sendo um excelente termômetro. A companhia, seus funcionários e a vasta maioria das cidades atendidas seguem marginalizados, completamente ignorados. 3 milhões de pessoas e mais de uma dezena de municípios, numa das principais concentrações urbanas do continente. 3 milhões podem parecer pouco diante dos mais de 9 milhões de passagens registradas no sistema da SPTrans (São Paulo Transporte, responsável pelo planejamento e gestão dos serviços privados, sob concessão, dos ônibus paulistanos), porém o potencial estruturante está longe de ser desprezível. É na CPTM que estão os vetores de desenvolvimento do futuro, adormecidos, sufocados pela pendularidade, amesquinhados por décadas de desinvestimento e, agora, pela ameaça de sucateamento e de privataria.
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