Vila Operária da Rua João Migliari

Por Eduardo Ganança | 23/02/2019 | 5 min.

Legenda: Foto da vila em janeiro de 2019
Estamos destruindo a nossa memória?

“There are two strong conquerors of the forgetfulness of men, Poetry and Architecture”

“Há dois fortes conquistadores do esquecimento do Homem (pessoa): a Poesia e a Arquitetura.”

John Ruskin, Seven Lamps of Architecture — The Lamp of Memory, 1849, (Capítulo VI, § II)

Na noite de 20/02/2019, o Urbanista e Arquiteto, Lucas Chiconi, decidiu compartilhar sua indignação com relação da parcela mais influente do campo progressista e a relação desta com a Zona Leste da capital e pautas de cunho mais local. O motivo da indignação: uma antiga vila operária no Tatuapé, bairro que há muitos anos passa por um processo de enobrecimento, parece estar com os dias contados. Para quem não conhece a região, a vila em questão pode ser vista no encontro das ruas Itapura (um reduto gastronômico e boêmio) e Padre Estevão Pernet, porém talvez seja mais acertado fazer referência a ela pela rua João Migliari. O local está a cerca de 500 metros da Estação Carrão da Linha 3-Vermelha do Metrô.

Em primeiro lugar, é preciso notar que políticas públicas de preservação do patrimônio são um assunto à parte, em relação ao ativismo pequeno-burguês e elitista denunciado pelo Lucas, mas sim, há pontos em comum com outros ativismos, como a tendência pela dominação das classes economicamente privilegiadas.

Contudo, no caso do patrimônio edificado, há três problemas que podemos identificar, que podem ter levado ao episódio da demolição.

Primeiramente, a histórica negligência dos órgãos de preservação em relação ao patrimônio edificado nos séculos XIX e XX, fora do cânone da arquitetura modernista carioca.

Criado por decreto, em 1937, o IPHAN (então SPHAN), teve por muito tempo uma atuação alinhada com uma narrativa histórica de suporte da identidade nacional brasileira na produção arquitetônica do Século XVIII, em Minas Gerais e na produção da arquitetura de Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e aqueles alinhados às suas ideias.

Por exemplo, dentre os primeiros bens protegidos estão o conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade de Ouro Preto (tombado em 1938) e a Igreja de São Francisco de Assis, da Pampulha (tombada em 1947, 5 anos após sua construção). Já a Estação da Luz, construída em 1901, não se encaixa nessa narrativa de construção da identidade nacional, e somente foi reconhecida pelo órgão em 1996.

Nas outras esferas; estadual, com CONDEPHAAT e municipal, com o CONPRESP, criados, respectivamente em 1968 e em 1985, são protegidos os bens que, segundo o órgão federal, não têm valor reconhecido em âmbito nacional. Contudo, em suas ações são observados outros dois problemas, também compartilhados com o IPHAN.

Legenda: Cidade Histórica de Ouro Preto, frente do Museu da Inconfidência Mineira, ao lado a Igreja Nª Senhora do Carmo: Marcello Casal Jr (Agência Brasil). Original: Wikimedia Commons. Licença: © Todos os direitos reservados

O modo autoritário com que o instrumento do tombamento trata as edificações nas quais é aplicado é um deles. Do modo com que é aplicado, sem interlocução ou negociação com os proprietários e ocupantes, o tombamento frequentemente “congela” a edificação e burocratiza qualquer intervenção nela feita, condicionando-a à aprovação dos órgãos. Esse engessamento frequentemente vai contra as intenções do proprietário, que muitas vezes quer dar à edificação uso diferente ao inicialmente previsto, necessitando fazer modificações profundas, ou ainda, tirar proveito do potencial construtivo do local, desejando a sua demolição.

Num contexto em que solo construído tem valor de commoditie, o resultado é a franca desvalorização monetária dos imóveis nos quais são reconhecidos valor Histórico ou Artístico.

Por fim, outro vício das políticas de preservação é a tendência a valorizar o excepcional em detrimento ao comum. A Carta de Veneza, principal documento internacional da atualidade em relação aos Monumentos Históricos, diz, em seu primeiro artigo: “Estende-se (a noção de monumento histórico) não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural.” Contudo, frequentemente, o fetiche da excepcionalidade e da ancianidade faz com que seja priorizada a preservação do patrimônio excepcional, em detrimento ao comum.

A armadilha que esconde a postura que permite o apagamento do que é comum, é, em primeiro lugar, de que é perdida parte da História do Cotidiano, que não é feita de momentos singulares ou excepcionais. Em segundo lugar, de que o próprio valor do excepcional emana do ordinário.

Por exemplo, no caso das vilas operárias, a Vila Maria Zélia, de caráter excepcional e valor Histórico inquestionável, é tombada nos âmbitos estadual e municipal desde 1992. Já a vila operária da Rua João Migliari, não esteve sequer em processo. Contudo, como demonstrar a unicidade da Vila Maria Zélia se todos os conjuntos contemporâneos de mesmo tipo, que não possuem esse caráter excepcional, forem perdidos?

Legenda: Vila Maria Zélia. Autor: y.naomi. Original: Wikimedia Commons. Licença: Creative Commons Attribution-Share Alike 2.0 Generic

Não é a primeira vez que a antiga vila operária aparece em publicações alertando para o risco de demolição, porém, até então ela não exibia imóveis vazios e seguia operando normalmente, como ilustrado pela foto do post do Lucas Chiconi acima.

A discussão sobre a preservação deve começar pelo reconhecimento um conjunto de valores pela população que se relaciona a este patrimônio, por meio de seu uso ou pelo suporte de sua identidade e memória. Depois, o pedido de reconhecimento desses valores pelos órgãos de preservação.

Legenda: Casa das Rosas. Autor: Rodrigo Soldon. Original: Wikimedia Commons. Licença: Creative Commons Attribution 2.0 Generic

Com isto, nesse caso, existem alternativas de preservação que podem ser conciliadas com o desenvolvimento imobiliário. A que mais provavelmente teria êxito seria a transferência do potencial construtivo da área para outro terreno da mesma incorporadora, que são vários na região, mediante a preservação do conjunto. Algo parecido aconteceu em três casos notáveis, o Casarão do Conde Sarzedas, no centro, a Casa das Rosas, na Avenida Paulista e a Casa Bandeirista do Itaim, na Avenida Brigadeiro Faria Lima.

Atualização (13/03/2019, 1h51): está circulando um abaixo-assinado digital solicitando o tombamento das edificações da vila que não foram demolidas. Você pode assinar acessando aqui.


Referências bibliográficas


Colaborações: Lucas Chiconi e Caio César (adaptação original para o Medium)



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