Vale-transporte em São Paulo sob ataque

Por Caio César | 26/02/2019 | 4 min.

Legenda: Ônibus da linha 5362-10 (Pq. Res. Cocaia-Pça. da Sé) circulando na periferia da Zona Sul
Aumento de uma hora no tempo de integração em troca de maior custo para o empregador e redução de dois ônibus na tarifa integrada. É assim que a prefeitura incentiva o uso do transporte público?

As recentes alterações na política tarifária da capital paulista soam como verdadeiros ataques a uma classe trabalhadora cada vez mais precarizada. Bruno Covas e sua trupe anunciaram um decreto que contempla uma mudança no regime de integração do vale-transporte: 3 horas para embarcar em até dois ônibus, enquanto os outros bilhetes continuam permitindo o uso de até quatro ônibus durante 2 horas. Opto aqui por me abster de comentar as perfumarias para obtenção de receita tarifária que também foram incluídas no decreto, como a possibilidade de inclusão de publicidade nos cartões.

A mudança é um tiro no pé do Interligado, nome em desuso do sistema de ônibus da capital, que surgiu como fruto dos esforços de racionalização e troncalização que marcaram a gestão Marta Suplicy (então do PT). Com a nova restrição, o passageiro da Zona Leste, caso precise combinar duas linhas estruturais e um alimentador, por exemplo, enfrentará dificuldades. Acompanhe o raciocínio: se um passageiro precisa utilizar um ônibus do Sistema Local (as famigeradas “lotações”) para ter acesso ao centro de bairro ou alguma avenida importante, para então seguir para o Terminal Parque Dom Pedro II e então tomar mais um ônibus, passará a não ser mais coberto pela nova política do vale-transporte. O passageiro terá de suprimir a linha local e seguir a pé, mudar o trajeto usando linhas estruturais ou, no pior dos casos, comprometer o salário para custear a “perna” faltante.

É verdade que o tempo para integração aumentou em uma hora, porém, cabe salientar que a média em São Paulo é de 1 hora e 57 minutos, conforme revelou pesquisa do Ibope/Rede Nossa São Paulo, da qual extraímos o décimo slide:

Legenda: Média de tempo gasto em São Paulo, média da cidade e das zonas, considerando o deslocamento principal (exemplo: de casa para o trabalho

Outro ponto problemático, oportuno para ser comentado aproveitando o ensejo do decreto, diz respeito ao encarecimento do vale-transporte desde metade de janeiro, quando o valor passou de R$ 4,30 para R$ 4,57, seja para os ônibus da capital, seja para os dois sistemas de metrô da região metropolitana. Com o reajuste silencioso, empregadores podem começar a restringir o acesso ao sistema de trilhos. Sem acesso ao sistema de trilhos, a pressão sobre o sistema da SPTrans, de menor capacidade e, agora com um vale-transporte piorado, tende a aumentar. O resultado não poderia deixar de ser outro: piora na qualidade de vida, prejudicada por deslocamentos ainda mais demorados. Mais tempo dentro do ônibus, mais caminhadas, mais incentivos a linhas de ônibus infernalmente longas.

Fica claro que o governo estadual e o governo municipal da capital tentam reduzir os subsídios se valendo da ausência de uma discussão abrangente e forte sobre mecanismos de financiamento, ou seja, não há discussão do modelo. O empresário do setor de ônibus segue de cabeça fresca, enquanto empregadores e empregados são surpreendidos por um pacote que eleva o valor da passagem e piora a integração. A mídia hegemônica, como já apontamos no passado, apoia abertamente a prefeitura. Para o pesquisador e especialista de mobilidade do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), o decreto é “muitíssimo injusto” e “precisa ser confrontado”.

Não deixa ainda de ser revoltante pensar que, apesar de a SPTrans registrar um número brutal de 9,3 milhões de passagens, a minoria que utiliza o automóvel segue sem ter seus privilégios contestados. Somam-se ainda aos ônibus municipais da capital, movimentações na casa dos 8 milhões de passageiros no sistema metroferroviário. Infelizmente, a única “ameaça” ao automóvel consistiu na bizarra ideia de transformar um elevado decrépito e autoritário, herança da ditadura militar, numa espécie de parque.

Os danos causados pela violência do viário da Radial Leste, por exemplo, seguem ignorados, o que, se por um lado preserva moradores vulneráveis que moram em cortiços e pensões, por outro, subutiliza o uso do solo e preserva uma cidade dura e cruel, na qual os mais pobres sempre precisam habitar espaços rejeitados e desvalorizados — pelo menos até segunda ordem, é claro. O antigo Parque Dom Pedro II, recortado por viadutos e alças viárias, segue abandonado e irreconhecido como área verde e de lazer.

Transporte público é uma política de distribuição de renda, desenvolvimento do território e, como tal, deve ser pensada para a cidade, exigindo modicidade tarifária e tendo prioridade sobre o automóvel. A decisão do prefeito colide frontalmente com essa ideia de transporte público, condenando-nos a uma cidade mais mesquinha e desigual.




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