Por Caio César | 09/03/2019 | 7 min.
A compra da SuperVia pela japonesa Mitsui não demonstra ainda quais serão os caminhos para sanar a dívida de mais de R$ 1,5 bi, que tem entre os credores bancos como Bradesco e Itaú, para não falar do imbróglio envolvendo a Light, que já chegou a pedir a falência da empresa. É difícil sustentar qualquer expectativa otimista, como parece ter feito O Globo ontem, 8 de março, em reportagem intitulada Japoneses da Mitsui fecham acordo de compra da SuperVia por R$ 800 milhões:
A expectativa com o novo dono é que a SuperVia consiga aumentar os investimentos, melhorar a qualidade de seus serviços e equacionar suas dívidas. Entre as queixas mais frequentes dos usuários estão vagões lotados em viagens mais longas e em horários de pico, enquanto nos fins de semana a frequência das saídas é reduzida.
Ninguém deveria alimentar expectativas com relação à concessão à iniciativa privada firmada pela Central (Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística), que deu origem ao contrato com a SuperVia, sem antes traçar um breve panorama, pelo menos. Não há como esperar nada por parte dos japoneses, pois mesmo que os novos donos desejem tirar o sistema do buraco, seria preciso desembolsar bilhões de dólares para receber absolutamente nada em troca, nem hoje, nem amanhã, nem depois de dez anos. Infraestrutura não permite retornos rápidos e, como já explicamos recentemente, no Japão os sistemas privatizados auferem apenas 33% da receita com a tarifa, sendo que os 66% restante são oriundos de negócios imobiliários agressivos, que também estão ligados à exploração comercial e de serviços. Alguém aí acha que vão brotar negócios imobiliários altamente lucrativos em Bangu ou Jacarezinho? O quadro é agravado pelo aumento do desemprego, que cresceu mais no Rio de Janeiro do que em qualquer outro estado da República Federativa (salto de 138%, passando de 6,3% para 15%).
A concessão fracassada nasceu no final da década de 1990, sendo a SuperVia incapaz até o momento de transportar 1 milhão de passageiros, marca atingida durante o período estatal, ainda antes da estadualização que resultou no surgimento da Flumitrens, quando o sistema estava nas mãos da RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) e da CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos). O recorde atual é de 735 mil passageiros em 17/08/2016, segundo a própria SuperVia. Para efeito de comparação, sozinha, a Linha 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) transporta quase o mesmo volume de passageiros em média por dia útil; são 51 km de trilhos ligando o Centro de São Paulo ao Centro Cívico de Mogi das Cruzes, porém, a malha da SuperVia tem 270 quilômetros, cinco linhas (que são chamadas de ramais) e 104 estações.
Acanhada pela ideia equivocada de que é possível proporcionar concorrência, abraçada pelo governo estadual, a malha da SuperVia sofre com falta de integração com os ônibus, tanto municipais quanto intermunicipais. A noção de terminais de integração e de intermodalidade, tão comum em São Paulo, é um sonho distante na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ao anoitecer e aos finais de semana, a situação se agrava ainda mais devido ao transporte de caráter clandestino, o que acaba significando a interrupção dos serviços ainda antes das 22h. Ver um simples filme no cinema pode significar pagar o dobro da tarifa numa van clandestina e se submeter as imposições do operador, que pode modificar o trajeto, exigir pagamento em dinheiro vivo, entre outros absurdos. A prefeitura do Rio de Janeiro também adota o procedimento lobotomizador do governo estadual, ficando refém dos empresários de ônibus, e sendo incapaz de exercer papel regulador, por não ter tamanho para tanto, ademais, a cidade do Rio de Janeiro tinha apenas 20 agentes para fiscalizar mais de 2 mil vans em 2018. Enquanto isso, em meio à profusão de vans, empresários seguem formando uma complexa teia, enquanto poluem a cidade com dezenas de ônibus fazendo o mesmo trajeto, o que na prática resulta em perda de capacidade e aumento da poluição atmosférica.
Com a morte do maquinista Rodrigo da Silva Ribeiro, que não resistiu aos ferimentos provocados devido à colisão entre dois trens, a irresponsabilidade da concessionária privada, respaldada por um contrato frouxo e com contrapartidas irrisórias, exigiu quase 8 horas para a retirada da vítima, ou seja, não só houve um prejuízo irreparável e inestimável para os familiares, como também um prejuízo estatal (pago por todos os contribuintes), decorrente de economia burra.
Não há como esperar um verdadeiro milagre por parte da Mitsui, por meio de sua subsidiária Gumi (Guarana Urban Mobility Incorporate). A SuperVia está atrasada em relação à CPTM, a empresa simplesmente parou no tempo. Os trens chineses comprados pelo poder público não foram e continuam não sendo suficientes para devolver dignidade aos subúrbios, embora inegavelmente tenham reduzido a insalubridade do sistema. Para começar, governo e parceiro privado precisam urgentemente definir o que vão fazer com as estações herdadas da RFFSA, incluindo a Barão de Mauá, que vai acabar ruindo enquanto o Ministério Público tenta mitigar ou adiar um destino trágico. Numa sentença publicamente disponível, o juiz federal declara que a estação apresenta “estado deplorável”, “digno de dar vergonha”:
O estado deplorável do imóvel é digno de dar vergonha. Se tal situação ocorresse num país de 1º mundo, dito desenvolvido, a empresa responsável (assim como a entidade maior) viria a público pedir desculpas à população. Não se consegue imaginar uma situação como essa da Estação Leopoldina num país europeu que, ao contrário do nosso, não fecha os olhos para a história e para os signos representativos da cultura nacional.
Claro que não podemos exigir do nosso país, com idade e história diferentes, o mesmo modelo de gestão desses países europeus desenvolvidos. Mas o mínimo que se espera da União e do Estado do Rio de Janeiro, bem como de sua concessionária (SUPERVIA), é a preservação do patrimônio público. E também uma atitude mínima no sentido de não deixar apagar a memória de um imóvel que já representou um dos marcos do transporte ferroviário nacional.
Pior ainda: um componente “invisível” do sistema está obsoleto, como argumenta Rodrigo Sampaio ao jornal O Dia. Rodrigo ocupa a posição de diretor-técnico numa ONG e denuncia que os equipamentos do sistema de sinalização são analógicos e das décadas de 1930 e 1940, apresentando graves problemas de confiabilidade. Para efeito de comparação, ainda antes do surgimento da CPTM, a FEPASA (Ferrovia Paulista Sociedade Anônima), empresa estatal que foi de propriedade do governo estadual de São Paulo, começou a implantar uma sinalização mais moderna nas atuais linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú) ainda antes da década de 1980, de forma que, quando a CPTM assumiu as linhas em 1996, as duas já estavam com controle semi-automático de trens. Nas linhas que eram da RFFSA, repassadas às CPTM pela CBTU, o mesmo sistema de controle também já funciona plenamente há anos (foi um dos marcos da CPTM).
Enquanto a SuperVia ainda patina com o obsoleto CTC (Controle Centralizado de Tráfego) que exige controle manual dos trens, permitindo o desrespeito aos sinais e condução acima da velocidade máxima estipulada, a CPTM patina na implantação de tecnologias como ATO (Operação Automática de Trem) e CBTC (Controle de Trens Baseado em Comunicação), sendo que o ATO automatiza operações como abertura e fechamento de portas, enquanto o CBTC é o estado-da-arte em sinalização ferroviária (tanto que é utilizado nas linhas mais novas do sistema metroferroviário, como a 4-Amarela, Luz-São Paulo·Morumbi). Mais uma vez, será um desafio e tanto recuperar tamanho atraso, sendo que o estado do Rio está basicamente quebrado e respirando por aparelhos.
É imprescindível considerar a dramática situação da SuperVia, principal infraestrutura de transporte da baixada fluminense, para não favorecer a ideia de que privatizar a CPTM vai proporcionar milagres e resultados impressionantes e positivos. A privatização da CPTM é uma ameaça e, conforme já discutimos, o teor do contrato para a concessão das linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda é garantista, entreguista e sem contrapartidas de vulto, sem estações novas e sem serviços novos. A CPTM precisa de mais investimentos, porém, o contrato das linhas 8 e 9 vai na contramão, engessando duas das mais promissoras ligações metropolitanas da estatal por longos trinta anos. Não vale a pena.
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