Ciclovias compartilhadas

Por Lucian De Paula | 18/05/2019 | 4 min.

Legenda: Sinalização de trecho compartilhado na Avenida dos Estados, em Santo André
Bom para ciclistas, bom para pedestres

Legenda: Largo São Bento. Fotografia: Nicolas Le Roux

Só pra explicar uma coisa sobre “ciclovias sobre calçada” que quase ninguém parece saber, nem mesmo o novo prefeito eleito. Pensei nisso porque esta foto é particularmente explicativa e me lembrou do assunto.

É extraordinário o descaso generalizado com as calçadas de São Paulo. Por quê? Porque apesar de ser passeio público, desde um decreto-lei da década de 50 as calçadas são responsabilidade dos proprietários do lote lindeiro. Isso resultou no gigantesco descaso pela calçada, na total falta de manutenção, buracos, desníveis, degraus, privatização do espaço, rampas de garagem, obstáculos mil. A situação precária das calçadas de São Paulo é conhecida, notória, e acho difícil alguém discordar que a situação geral é ruim, certo?

Ok, ciclovias sobre calçadas: primeiro o argumento de autoridade (que eu odeio, mas está aí pra ilustrar): elas são extremamente comuns no mundo todo. Não são uma improvisação, não são um acochambramento, não são uma solução qualquer. É uma de muitas tipologias e soluções possíveis para demarcação do espaço para bicicletas, e tem critérios a serem seguidos, situações diferentes onde ela vai ser mais ou menos apropriada.

Agora uma explicação de verdade: apesar de bicicletas serem consideradas veículos, bicicletas não são carros magrinhos, não são motos sem motor. São bicicletas. Mesmo sendo veículos, estão muito mais próximas da escala do pedestre do que de um carro ou ônibus. Não podem ser tratadas como carros magrinhos ou motos sem motor, tem que ter um tratamento específico para o que são. O motivo delas serem comuns pelo mundo é que elevando a ciclovia ao nível da calçada você confere mais proteção física ao ciclista do que se ela estivesse no nível do asfalto. E ao contrário do carro e do ônibus, tudo bem você genericamente dividir o espaço com o pedestre, porque como são escalas muito próximas, não existirão acidentes letais e mutilamentos todos os dias, como acontece quando carros interagem com pedestres.

A ciclovia sobre calçada é um espaço compartilhado, com a prioridade para o pedestre. Ela tem essa característica compartilhada, ela pede uma velocidade menor, ela não é uma pista de treino. Faz parte daquela popular “convivência” que aprendemos no jardim de infância, mas esquecemos toda vez que estamos em trânsito. É assim no mundo todo, inclusive no Brasil, inclusive em São Paulo.

Agora volta pra foto e porque ela é especial. Quando alguém fala da ciclovia sobre calçada como se ela fosse ofensiva ou absurda, não percebe a transformação que se deu. Está vendo essa calçada? Percebe como ela é ampla? Regular? Sem buracos? Dentro da norma? Com declividade aceitável e compatível com a rua?

Legenda: Antes e depois da ciclovia no Jardim Helena. Montagem: Felipe Claros

Percebem como ela é completamente diferente da catástrofe que são a maior parte das calçadas da cidade?

A instalação da ciclovia sobre a calçada necessita de uma reforma do passeio público, de uma regularização e, principalmente, de uma expansão do espaço. Nenhuma das horríveis calçadas que temos pode ser simplesmente apontada como ciclovia. O que ocorre é uma reforma que melhora em muito a qualidade da calçada, e a ampliação do espaço sobre o leito carroçável. Uma intervenção ótima para o pedestre, que é completamente abandonado em todos os municípios do país, apesar do modal a pé ser o principal modal de viagens realizadas em todo o país e em todos os municípios. Dessa forma a gente tem uma intervenção que protege o ciclista E beneficia o pedestre.

A ciclovia não aparece “roubando” ou “invadindo” o espaço do pedestre. O espaço do pedestre é ampliado, melhorado e então os dois podem conviver.

Todas as ciclovias são lindas e gatonas que nem essa? Não. Mas a melhora é concreta mesmo nos exemplos para mais e para menos.

Legenda: Antes e depois da ciclovia na rua Cardon. Montagem: Felipe Claros

Então quando alguém falar que é um absurdo ciclovia sobre calçada, lembre-se do que é o status quo das calçadas antes das intervenções, o martírio que é andar a pé, e como essa aliança beneficia a todos, principalmente os mais vulneráveis, como crianças, idosos, pessoas com mobilidade reduzida ou cadeirantes.

Se alguém se propor a retirar ciclovias sobre calçadas, no mínimo esta pessoa deve reproduzir o mesmo espaço de ciclovia sobre o leito carroçável e manter o espaço para pedestre. Caso contrário estará indo diretamente contra a Política Nacional de Mobilidade Urbana , que estabelece a hierarquia dos modais de transporte (a pé, ativo, coletivo, cargas e por último individual motorizado), o CTB (Código de Trânsito Brasileiro) e o Plano Municipal de Mobilidade (que determinam que intervenções devem ser no sentido de melhorar a qualidade e a segurança dos modais) ao retirar espaço da mobilidade ativa e forçá-la a dividir o espaço com veículos automotores, numa relação de compartilhamento nitidamente mais perigosa do que a situação anterior.

Fora isso, gente, essa foto é muito linda! Vou babar mais um pouco porque intervenção desse tipo no espaço urbano público a gente tem que parar pra admirar mesmo!




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