Por Caio César | 18/05/2019 | 11 min.
Índice
Introdução
Nos últimos meses a Linha 18-Bronze (Tamanduateí-Djalma Dutra), que tem tudo para ser mais uma PPP (parceria público-privada) fracassada, tem sido envolvida em discussões sobre mobilidade urbana que adotam as premissas erradas e, como não poderia deixar de ser, chegam a conclusões equivocadas ou até mesmo desonestas.
Considerando que já travamos uma série de discussões na página, que temos vários membros que moram e/ou estudam e/ou trabalham em municípios do Grande ABC (também chamado de ABC Paulista, ABC, ABCD e ABCDMMR, embora a denominação oficial seja Sub-região Sudeste da Região Metropolitana de São Paulo) e que não seria de bom tom ignorar o que vem acontecendo, estamos publicando um artigo a respeito.
Identificando as premissas equivocadas
Não raramente discutir mobilidade urbana exige se aprofundar em temas delicadamente inter-relacionados, como o uso e a ocupação do solo do território que recepcionará ou já recepcionou uma linha de transporte público, dados ligados à dinâmica econômica (como o produto interno bruto e como se dá a composição deste), características do sistema viário, outras infraestruturas de transporte existentes, entre várias outras questões.
As críticas em relação à Linha 18-Bronze, infelizmente, frequentemente descartam questões territoriais e de infraestrutura, acarretando os seguintes problemas:
- Obliteração do papel da Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e anulação de qualquer discussão transversal relacionada;
- Falta de interesse em apontar o funcionamento pouco ou nada racionalizado dos sistemas de ônibus existentes na região, incluindo a malha anacrônica operada por permissionários de índole duvidosa sob conivência da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos);
- Absoluta a ausência de apontamentos em relação ao sistema viário, normalizando a infraestrutura tal como ela está, sem medidas de racionalização do espaço, sem redução do rodoviarismo gritante, sem interferência em rodovias como a Anchieta;
- Bairrismo e/ou municipalismo exacerbado, com munícipes de um município agredindo munícipes de outro município, extremando opiniões que desprezam dados, simplesmente para mostrar que uma cidade deve ter mais prioridade do que outra, numa interminável disputa egocêntrica;
- A insistência de construir uma linha de raciocínio que tem na Linha 18-Bronze a única solução de mobilidade possível, ignorando a obviedade de que o Grande ABC jamais verá sua mobilidade solucionada apenas com uma pequena ligação por monotrilho;
- Comparações desonestas em termos de capacidade de oferta de lugares, especialmente de capacidade por m² de infraestrutura necessária, o que significa, basicamente, insistir, a despeito de qualquer dado ou de leis consolidadas da Física, de que ônibus serão capazes de oferecer, usando espaço idêntico ou similar, o mesmo nível de serviço.
Todas os pontos acima, em maior ou menor intensidade, já surgiram em discussões na nossa página no Facebook. Qualquer discussão viciada pelas premissas acima está fadada à irrelevância e improdutividade, por mais que os ânimos possam estar exaltados.
Discutindo as premissas equivocadas
É absurdo ignorar que o governo estadual parece ter preterido uma solução de caráter estatal para a região, transformando o Expresso ABC em uma PPP, que até o momento naufragou tão vergonhosamente, que nem mesmo é mencionada na agenda privatista do atual governador, João Doria (PSDB), que tem expressado desejo de conceder linhas e estações da CPTM, como temos recorrentemente alertado. Na primeira tentativa, o governo tentou modelar o Expresso ABC dentro do Trem Metropolitano, na segunda tentativa, o governo elitizou o serviço e o inseriu dentro do Trem Intercidades, no contexto da ligação entre Santo André e Santos, importante município da Região Metropolitana da Baixada Santista. O governo fracassou e em nenhum momento parece ter considerado fazer, ele mesmo, as obras para a operação de um serviço expresso, o que obrigou a CPTM a fazer um arremedo de serviço expresso, um “expressinho” que recentemente foi expandido para a Estação Luz aos sábados.
Exceto pela atual Linha 10-Turquesa, não existe hoje e não existiu no passado nenhuma outra infraestrutura de transporte com o mesmo poder de definir o território. É a Linha 10 que atende os centros da maioria dos municípios do ABC, passando por São Caetano do Sul, Santo André, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Sua hegemonia supera, dada a escalabilidade possível, o Corredor Metropolitano ABD da EMTU (que atende Diadema, Mauá e São Bernardo do Campo) com larga margem. Raramente as discussões mencionam a Linha 10, fazendo parecer que toda a sub-região está isolada e dependente dos ônibus, sendo que só a CPTM é responsável em transportar mais de 360 mil pessoas em média por dia útil (conforme dados oficiais obtidos quando da escrita do artigo, a partir do site oficial da estatal).
É também impressionante a má vontade em admitir que, sozinha, a Linha 18 não fará milagres, principalmente porque, sendo operada por uma empresa privada ou não, será uma linha da Companhia do Metropolitano de São Paulo (oficialmente abreviada como METRÔ) que, diferentemente de todas as outras, não foi concebida dentro da lógica questionável que vinha permeando todo o desenho da rede, ou seja, era uma linha que finalmente demonstrava existir algum entendimento por parte da Cia. do Metrô de que a metrópole não é a capital, mas sim a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), sendo assim, seria a primeira vez que a Cia. do Metrô teria uma linha que, muito provavelmente, não seria inaugurada com integração tarifária com os ônibus.
Em nenhum momento os ônibus apareciam nas discussões com a criticidade necessária. São Caetano do Sul, por exemplo, permite que uma empresa privada opere um sistema de menos de 10 linhas, sem qualquer tipo de integração com a CPTM, sendo que a lógica das linhas é totalmente radial, sem operação entre os bairros, uma praga que Santo André, por exemplo, combateu com a finada estatal EPT (Empresa Pública de Transportes), cuja sombra deu origem à atual SATrans (Santo André Transportes), porém, mesmo os municípios maiores e mais ricos, como Santo André e São Bernardo do Campo (que esvaziou sua empresa pública, a ETCSBC de forma similar ao que foi feito em Santo André), não possuem integração tarifária entre os sistemas de transporte. Foi Mauá o único município a tentar implantar uma operação tarifária integrada, porém, a iniciativa não deu certo por falta de pagamento e se encontra suspensa.
A situação dos ônibus no ABC é tão irritante, que no passado já escrevemos uma provocação a respeito. Resumidamente, naquele momento, a ideia foi questionar o seguinte: e se os municípios se organizassem e, por meio de um consórcio, operassem um sistema unificado próprio, integrado, que suplantasse os municipais fragmentados, desafiasse os permissionários da EMTU e tivesse integração física e tarifária? Não fazia e, a luz dos últimos reajustes, ainda não faz sentido ter operações minúsculas como as de São Caetano do Sul, Rio Grande da Serra e Ribeirão Pires, ao passo que não faz sentido pagar escorchantes R$ 4,75 nos ônibus municipais de São Bernardo do Campo, quando há intermunicipais que fazem o mesmo trajeto com tarifa ligeiramente inferior.
Ainda mais irritante é a noção de tudo ou nada (jogo de soma zero) em relação à Linha 18-Bronze, como se a população, a partir da inserção da linha nos planos de transporte do governo (os PITUs, Planos Integrados de Transportes Urbanos), estivesse proibida a sonhar, imaginar e pensar outras saídas para problemas de longa data. É preciso ter serenidade para admitir que a Linha 18 não é e não pode ser a única solução possível para toda uma região, até porque, como já argumentamos acima, existem outros sistemas que continuam operando, além disso, o Grande ABC é famoso pela sua ligação com a indústria automobilística, o que vai além das fábricas.
Jacu Pêssego (antiga tentativa de anel viário metropolitano), Rodoanel, Anchieta, dos Imigrantes, dos Estados, Francisco Prestes Maia, Pery Ronchetti, José Antônio de Almeida Amazonas, Edson Danilo Dotto, Robert Kennedy, Brigadeiro Faria Lima e a lista poderia ser ainda mais longa. O arrogante sistema viário está presente nos principais pontos da região, exaltando o automóvel em detrimento da vida humana. A própria Linha 18 é uma solução que está inserida numa avenida de fundo de vale, em mais uma várzea que foi aterrada e loteada.
As inundações, os congestionamentos, a poluição, os sinais de declínio da indústria automobilística, o fato de o ABC ser a única sub-região em que o uso do automóvel supera uso do transporte público por uma pequena margem (conforme dados da Pesquisa Origem Destino 2007), nada, absolutamente nada disso parece fazer diferença. Não existe interesse numa discussão integrada e que desafie a lógica vigente, cuja trajetória há muito não exibe sinais de brilhantismo.
Uma série de bairros de São Bernardo do Campo distam cerca de 50 km de um dos balneários preferidos do habitante da região metropolitana, que atualmente é o município que mais cresce na metrópole da Baixada Santista (fenômeno observado há uma década, pelo menos). A proximidade com Praia Grande, impressionantemente, não parece ensejar o desejo de uma ligação sobre trilhos. Quando falamos que é preciso olhar para a rodovia Anchieta com perspectiva crítica, os olhares são ameaçadores, como se aquele corredor rodoviário devesse continuar sendo, em conjunto com a rodovia dos Imigrantes, uma espécie de “tapete sagrado”, uma espécie de “monumento” para o automóvel e a indústria automobilística. Apodrece ainda às margens da SP-55 o antigo ramal de Juquiá, que poderia muito bem estar atrelado a uma ligação de caráter urbano-metropolitano entre as duas aglomerações, em conjunto com um plano diretor voltado a garantir um uso plural e adequado do solo lindeiro.
Bobagem, não é mesmo? Estamos todos perdendo tempo com picuinhas, estamos perdendo tempo precioso a todo momento, porque precisamos sempre tentar provar que 1+1=2, já que algumas pessoas ignoram a estagnação brutal da infraestrutura do único corredor da EMTU de todo o ABC e, pior, ainda insistem que um corredor igualmente limitado será capaz de oferecer a mesma oferta que uma ligação completamente segregada, com tráfego centralizado e sistema de controle automático (capaz de oferecer intervalos de pouco mais de um minuto com segurança, algo impensável para um sistema de ônibus) e com veículos muito maiores e de maior capacidade (mais de 5 vezes maior em comparação com um ônibus articulado de três eixos).
Por que será que uma parcela não pode admitir que o Corredor Metropolitano ABD da EMTU já nasceu estrangulado em termos de viário, tanto que, apesar de oferecer linhas de mais de 10 km de extensão, como é o caso da 285 (São Mateus-Ferrazópolis, com cerca de 11,5 km), nunca foi capaz de proporcionar viagens expressas? Será que é incômodo admitir que o atual governador está cedendo ao lobby de uma família que há décadas atrasa o desenvolvimento dos sistemas de transporte da região? Atualmente a oligarquia Setti Braga e Romano controla Metra, Viação ABC, SBCTrans, Plena Assistência Funerária e o cemitério Vale dos Pinheirais, além de unidades do Habib’s, tendo o ego recorrentemente o massageado por veículos regionais ou especializados de imprensa (vide aqui, aqui, aqui e aqui), que parecem gostar de quem se acidenta numa Ferrari e depois foge, ignorando o triste retrato da mobilidade na “Detroit brasileira”.
A sociedade tem votado a favor do caos
A questão-chave aqui é que estamos diante de uma brutal clivagem de investimentos e de prioridades. Estamos diante de escolhas políticas equivocadas, que continuam sendo legitimadas pela população.
Como Ailton Brasiliense Pires muito bem lembrou num artigo para o BrCidades, o transporte público recebeu 3,5 vezes menos investimentos, é o trilhão contra o bilhão. O transporte individual motorizado, geralmente representado pela figura do automóvel, mesmo tendo baixa eficiência, recebeu muito mais investimentos. Fica evidente que a redemocratização do país, aparentemente, não tem sido capaz de reverter o quadro, tanto por ter sido um momento marcado por incentivos equivocados à indústria automobilística (vide aqui, aqui e aqui), como por estar crescentemente ameaçada por desinformação e terror psicológico em escala massiva.
Tanto a indústria ferroviária quanto a parcela da indústria automobilística voltada para os ônibus, já possuem, pelo menos desde os anos 1970, uma série de soluções que permitem uma elevação substancial da nossa qualidade de vida, como trólebus, variados tipos de trens, sistemas de controle com elevado grau de precisão e automação, bondes cada vez mais versáteis, entre outras, que, somadas ao incentivo à caminhada e à bicicleta, que também movimentam suas próprias indústrias, permitiriam-nos construir um cenário inestimavelmente melhor, porém, há um detalhe crucial: você está preparado para enfrentar o lobby do automóvel e posturas egoístas? Sem o devido preparo e disposição para compreender o tema com a mínima complexidade que ele merece, seguiremos sempre em direção às trevas da mobilidade e do urbanismo.
Finalmente, muito do que foi exposto ao longo deste artigo não é uma exclusividade do ABC. Recentemente rechaçamos duramente a postura d’O Diário de Mogi, além disso, no passado já rebatemos editoriais do Estadão sobre a SPTrans e sobre a CPTM.
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