Por Caio César | 20/05/2019 | 10 min.
Índice
Contextualização
A ideia de que a demolição do Minhocão (oficialmente Elevado Presidente João Goulart) provocará uma hecatombe em São Paulo é repetida por algumas pessoas sempre temas envolvendo o patético elevado ressurgem. A justificativa geralmente gira em torno das seguintes premissas duvidosas: (i) é preciso investir no transporte público primeiro; e (ii) é preciso investir no transporte individual primeiro, fornecendo pelo menos uma nova alternativa viária. Nada mais equivocado, como veremos neste artigo.
Antes de começarmos, porém, pode ser interessante ter em mente que o Elevado incomoda a população e a cidade de São Paulo há décadas. De acordo com Luna e Magalhães no livro Caminhos do Elevado: Memória e Projetos, após apenas cinco anos passados da inauguração, em 1971, a via já precisava ser fechada durante a noite em razão do barulho e dos constantes acidentes (página 8). Abaixo, você pode conferir uma linha do tempo que resume uma série de eventos-chave desde a inauguração, compilada a partir de uma reportagem da Folha de São Paulo.
Premissa duvidosa I: “eu pago IPVA, então você não pode me criticar por eu circular com meu carro no Centro de São Paulo”:
Precisamos ser categóricos: excetuando veículos de carga e de emergência, usar automóvel no Centro é praticamente imoral. Para começar, o IPVA (Imposto sobre Propriedades de Veículos Automotores), que é um tributo não vinculado (não precisa necessariamente ser aplicado para ações ligadas à mobilidade), não paga metade dos problemas que são causados pelos automóveis. O IPVA não paga as mortes que são incentivadas por um rodoviarismo de longa data, sejam elas por doenças (como doenças respiratórias), sejam elas por acidentes. O IPVA não confere nenhum tipo de posição privilegiada na hora de discutir a cidade.
Premissa duvidosa II: “tudo bem demolir o Minhocão, desde que exista uma alternativa viária”:
Alternativa viária? Não deve haver, caros leitores e caras leitoras. O sistema viário existente é um verdadeiro luxo em comparação com a infraestrutura de transporte público, pois já fornece alternativas diversas, em vias dos mais diversos tipos. Não faz sentido construir mais vias para carros numa cidade que já deixou claro que a receita não funciona. É preciso ter coragem ao tratar do sistema viário, considerando soluções que girem em torno de três palavras mágicas: desmonte, conversão e desestímulo. Desmonte de estruturas de utilidade duvidosa, conversão do espaço liberado em prol de estruturas de utilidade comprovada e desestímulo ao uso do automóvel.
A ideia de que uma alternativa viária é indispensável não está restrita a pessoas leigas ou irredutíveis. Em 2015, o professor Pedro Taddei da USP (Universidade de São Paulo), por exemplo, defendeu um túnel para carros, conforme reportagem do DCI:
“Há trechos em que a demolição pode ser bem absorvida pela cidade. Mas alguns outros trechos não, como por exemplo a confluência da Avenida São João com a Rua Amaral Gurgel, um cruzamento com malha viária central complexa que talvez pudesse ser substituída por uma obra enterrada”, diz.
Citar Taddei é especialmente oportuno, porque sua fala dialoga com uma proposta de enterramento de parte da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) que atualmente está nas profundezas de alguma gaveta, dada sua complexidade e custo. Como já escrevemos no passado (veja aqui, aqui e aqui), o potencial do eixo Lapa-Brás é imenso caso as linhas da CPTM passem para o subterrâneo, porém, não há como endossar uma nova e extensa avenida paralela ao trio Marginal Tietê, Marquês de São Vicente e Francisco Matarazzo, sendo muito mais inteligente a implantação de um parque linear, por exemplo.
Premissa duvidosa III: “preciso do automóvel, pois o transporte público é muito ruim” e/ou ainda “primeiro melhorem o transporte público, depois falem na demolição do Minhocão”:
Quanto ao transporte coletivo ser péssimo, insalubre e todo aquele blá, blá, blá, precisamos ser francos: comprar automóvel e construir minhocões e marginais tietê jamais melhorou as condições do transporte público, pelo contrário, o rodoviarismo contribuiu para desmontar sistemas de bondes; trapacear usando sistemas de trólebus (a maioria deles já extintos, pois serviram apenas para regredirmos de bondes elétricos para ônibus a diesel); e forçar o espraiamento da mancha urbana, estimulando urbanizações difusas conectadas por amplas rodovias ou vias de trânsito rápido.
Este Coletivo tem alertado há anos que, mesmo na periferia o transporte público não pode ser generalizado. São muitas as periferias e muitas as realidades. Quanto mais nos aprofundarmos nos problemas da periferia, menos produziremos distorções em múltiplas escalas. Talvez um morador de uma certa periferia da capital caçoe quem viva em certos municípios da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo), por exemplo, porém, dependendo do lugar, o morador da capital chega depois. Tudo depende.
E depende mesmo, porque depois da construção do Minhocão uma série de melhorias foram feitas no transporte público da metrópole, entretanto, a dura realidade é uma só: quem quer deixar de usar o carro, vai fazê-lo. Quem se importa com o transporte público, vai buscar criticá-lo construtivamente. Quem quer usar o transporte público como muleta, negará as melhorias, pois não é capaz nem mesmo de reconhecê-las.
Quando alguém diz que é preciso melhorar o transporte público de forma vazia, simplesmente para tentar inviabilizar a discussão e proteger um elevado decrépito, uma série de coisas estão sendo negadas:
- Modernização do Terminal Parque Dom Pedro (anos 1990);
- Construção da Linha 3-Vermelha (Palmeiras·Barra Funda-Corinthians·Itaquera) completa (final dos anos 1980, por meio da Companhia do Metropolitano de São Paulo);
- Recapacitação progressiva das ferrovias de propósito geral e dos serviços suburbanos, convertendo-os para metrô (dos anos 1960 até os dias atuais, por meio da CPTM);
- Implantação do Corredor Inteligente Pirituba-Lapa-Centro (primeira década de 2000, incluindo terminais associados);
- Implantação do Corredor Inajar de Souza (anos 1990, sendo a pavimentação melhorada na gestão de Fernando Haddad);
- Melhorias consideráveis no padrão da frota de ônibus (sobretudo a partir dos anos 2000).
Precisamos rediscutir todo o Centro de São Paulo
Ter citado o corredor Pirituba-Lapa-Centro chega a ser irônico, uma vez que os baixios do Minhocão formam, em parte, o teto das paradas de um trecho do corredor. Considerando o corredor e a Linha 3-Vermelha, que são os maiores articuladores de mobilidade no eixo do Elevado, além da infraestrutura para modos ativos (caminhada e pedalada). Será que ao longo de tantos anos, quem dirige e insiste que o Minhocão é essencial não conseguiu pensar em algo mais digno? Como veremos a seguir, a fluxo de automóveis está atrelado a uma demanda irrisória, facilmente absorvível, de maneira que um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos, também chamado de bonde moderno) somado a alguns ajustes na urbanização, envidando elevação da qualidade urbanística, dificilmente não seria capaz de superar (e muito) a capacidade necessária para atender quem dirige.
A sociedade paulistana tem patinado nas discussões envolvendo o Minhocão. A questão do Centro precisa ser rediscutida em sua totalidade, ou seja, rediscutida considerando parque imobiliário, sistemas de calçadas e calçadões, terminais, enfim, toda a infraestrutura urbana. Por exemplo, este artigo não se propõe a discutir um sistema de bondes modernos mais aprofundadamente, porque seria necessário, entre outras coisas, considerar que talvez não precisaríamos mais daqueles terminais como hoje conhecemos, porque talvez seria possível pensar outra tipologia de atendimento, principalmente se existirem eixos parcialmente segregados, análogos a corredores de ônibus, operando com VLTs longos (o mercado oferece bondes com até 80 metros de comprimento) e garantir operação confiável (ou seja, boa regularidade e oferta nos intervalos), estes funcionariam como metrô leve e poderiam unificar linhas de ônibus existentes hoje, oferecendo um nível de atendimento muito superior.
Como podemos identificar na composição acima, que combina pequenas tabelas com o fluxo veicular dos picos da manhã (PM) e da tarde (PT), temos números absolutamente irrisórios, que não são capazes de sustentar qualquer tipo de argumento terrorista. Perceba como a interpretação acerca da baixíssima capacidade do transporte individual motorizado ganha ainda mais força quando associada a dois parágrafos do mesmo diagnóstico (também na página 70):
Os volumes veiculares do Elevado Presidente João Goulart nos picos da manhã são da ordem de 3.900 no sentido Oeste-Leste e 3.300 no sentido Leste-Oeste, enquanto na Avenida São João, é da ordem de 700 Veq. no sentido Centro e 1.000 Veq. no sentido Bairro. Nos picos da tarde são de 2.900 e 2.100, respectivamente, no Elevado e, na Avenida São João, 600 e 1.400.
Somando-se os volumes da parte superior do Elevado com os volumes da Avenida, conforme indicado na figura abaixo, temos cerca de 4.600 Veq/h. Atualmente a capacidade máxima da Avenida São João é de 2.400 Veq/h (2 faixas) e da Avenida Amaral Gurgel é de 3.600 Veq/h 3 faixas).
Se a capacidade máxima da São João é de 2.400 veículos/hora e a capacidade máxima da Amaral Gurgel é de 3.600 veículos/hora, estamos falando em 1.200 veículos/hora em média por faixa tanto no caso da primeira como no caso da segunda. É um acinte pensar em três faixas para transportar menos de 4 mil pessoas/hora no caso da Amaral Gurgel, sendo que boas soluções de transporte público de média capacidade, no mesmo espaço, transportariam pelo menos 10 vezes mais pessoas emitindo zero poluição atmosférica.
Infelizmente, são vários os sistemas viários do tipo “arrasa-quarteirão” que foram implantados no Centro de São Paulo, incluindo avenidas horríveis como a dos Estados e a Prestes Maia, justamente por isso, precisamos nos perguntar até quando acharemos que é normal tamanha insistência nos erros do passado, preservando por décadas aberrações rodoviaristas que transportam poucas pessoas. É oportuno salientar ainda que, o mesmo diagnóstico apontou que a área de influência do elevado vai perder menos de 2 km/h de velocidade média, caso este deixe de permitir integralmente o fluxo de veículos, ou seja, o impacto é baixo (de fato, o diagnóstico utiliza baixo e muito baixo para tratar dos impactos em diferentes áreas de influência, como pode ser conferido na página 75).
Trata-se de um diagnóstico que aparentemente colide frontalmente com as palavras do vereador Caio Miranda Carneiro (PSB), o qual publicou no Justificando em abril de 2019, alegando que não haveria possibilidade de comportar o tráfego, pois os congestionamentos aumentariam:
Estudos técnicos feitos pela própria Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) — entidade que controla o trânsito na cidade de São Paulo e que está subordinada ao poder público municipal — sobre o impacto da desativação total do Minhocão relatam que haverá um aumento da relação volume/capacidade no viário do entorno, ou seja, uma piora nos congestionamentos locais. Os volumes veiculares das vias serão aumentados em 5,4% a 169%. A conclusão dos especialistas mostra que se todo o volume da parte superior do elevado se transferisse para a parte inferior, somado ao volume existente no local ela não suportaria o carregamento restante.
É irreal pensar numa São Paulo que não congestiona ou que vai conseguir racionalizar o viário sem elevar congestionamentos. Não deveríamos nos preocupar com aumento dos congestionamentos simplisticamente, deveríamos, pelo contrário, procurar migrar mais pessoas para meios mais eficientes de transporte em conjunto com um bom plano de logística de cargas. Não podemos nos esquecer que Londres tem uma malha de metrô mundialmente famosa, extensa e continua enfrentando congestionamentos, tanto que passou a cobrar por isso muito mais do que a fornecer novas alternativas “a toque de caixa” (sejam elas viárias, sejam elas de transporte público).
Conclusão
Muitas vezes são travadas discussões em nossa página do Facebook sobre o polêmico Minhocão, mas nem sempre conseguimos produzir um material de maior qualidade a tempo. Este artigo visa facilitar um pouco futuras discussões sobre o Elevado Presidente João Goulart e o Centro de São Paulo, pois como foi apontado, as atuais barreiras que são colocadas para sua demolição são bastante frágeis, uma vez que a capacidade do viário é baixa e ele demonstra ter espaço para degradação pouco ou nada perceptível do nível de serviço.
O mesmo tipo de argumento falacioso ressurge em relação a uma série de outras avenidas e vias de trânsito rápido, dentro e fora da zona central da capital paulista. Precisamos colocar um ponto final em discussões improdutivas, que começam de maneira errada e terminam sem nenhuma perspectiva de construção de um futuro melhor para São Paulo.
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