Por Caio César | 02/06/2019 | 9 min.
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Contextualização
Como temos divulgado, os meses de maio e junho de 2019 são especialmente importantes para a mobilidade ativa na capital paulista, pois uma série de audiências do plano cicloviário estão ocorrendo em paralelo com a consulta online. Em 31/05/2019 foi a vez da audiência para a região Leste 1, que abrange as subprefeituras Penha, Mooca e Vila Prudente. Este texto tem como proposta ser um relato que rebate brevemente alguns dos absurdos proferidos durante a audiência, não se propondo a substituir um artigo anterior que rebate argumentos anti-ciclovia.
Em pleno ano de 2019, diante de um cenário econômico pouco favorável, que inclusive confirma o pessimismo em torno da indústria automobilística, que possui plantas fabris instaladas na Região Metropolitana de São Paulo (vide reportagem do Valor Econômico intitulada “ABC encolhe e pode virar região símbolo da desindustrialização no país”), alguns comerciantes e moradores insistiram na ideia de que a priorização da bicicleta por meio de ciclofaixas é um grande entrave para a sobrevivência do comércio e também um dificultador ao acesso a equipamentos públicos e privados de saúde.
As desonestidades (que francamente esperamos que sejam fruto de ingenuidade e desinformação) acirraram as tensões entre a maior parte do auditória, composta por ciclistas e pessoas favoráveis às bicicletas e uma parcela menor, posicionada do lado direito, claramente formada por pessoas ligadas ao comércio. Pequenas vaias e interrupções deixaram claro o antagonismo.
Velha conhecida, tática também é usada para barrar corredores e faixas exclusivas de ônibus
Os argumentos, se é que assim podem ser chamados, são basicamente os mesmos utilizados quando o transporte público é priorizado (ou seja, quando o poder público retoma o espaço desperdiçado com vias para o transporte individual motorizado e instala corredores ou faixas exclusivas de ônibus, por exemplo). Na visão de alguns dos presentes, qualquer redução de faixas para carros e/ou estacionamentos em vias públicas significa que:
- Os comércios vão fechar;
- Mais nenhuma mercadoria poderá ser entregue em São Paulo;
- Os hospitais ficarão inacessíveis;
- Os congestionamentos piorarão.
Infelizmente, a prática de tratar qualquer coisa que ameace a falsa hegemonia do automóvel é uma constante em São Paulo e região metropolitana. Em reportagem recente, o Diário do Grande ABC, comandado por Ronan Maria Pinto, deu farto espaço para atacar a priorização dos ônibus em São Bernardo do Campo:
As vendas de pizzarias, bares, restaurantes, postos de gasolina e todo tipo de comércio que existe na Rua dos Vianas, Baeta Neves, em São Bernardo, não param de cair desde que a Prefeitura começou a efetuar obras na via, que também passou a ter sentido único. Desde julho do ano passado, os motoristas só podem trafegar na direção Centro-bairro, e as perdas, segundo os lojistas, já chegam a 40%. Para os moradores, a mudança implicou em maior dificuldade para chegar e sair de carro, além da piora no trânsito do entorno.
O temor de comerciantes e moradores é que a situação piore ainda mais, uma vez que a via contará com projeto de construção do corredor de ônibus, anunciado pela administração em maio do ano passado e que terá 2,8 quilômetros de extensão. “O que os próprios operários da obra nos informaram é que os ônibus poderão trafegar nos dois sentidos, nas extremidades da via. No centro, será liberado para outros veículos. Como os clientes vão acessar as lojas dessa forma”, questionou o proprietário de uma loja de ferragens há dez anos, Alessandro Miguel Catalano, 49 anos.
Ronan é o senhor feudal dos ônibus em Santo André e, para atacar sua rival Maria Beatriz Setti Braga, senhora feudal dos ônibus em São Bernardo do Campo, vale atirar contra o próprio pé. Santo André precisa de corredores e faixas exclusivas tanto quanto São Bernardo do Campo. E as duas cidades precisam de ciclovias e ciclofaixas tanto quanto São Paulo.
Conectividade, dentro e fora de São Paulo
E a menção ao ABC Paulista não surgiu aqui por mero acaso: ciclistas do Grande ABC cobraram da subprefeitura de Vila Prudente diálogo com municípios como São Caetano do Sul, de forma a garantir a conectividade da malha para além dos limites da capital paulista. A Avenida dos Estados parece só ter perdido em menções para a Radial Leste, controversa via semi-expressa que liga a Zona Leste à Zona Central.
O caso da Radial Leste é emblemático, porque a ciclovia termina abruptamente na altura da Estação Tatuapé e os usuários não possuem opção segura para seguir viagem. Mesmo que quisessem optar pelos trens nas estações ao longo da Radial Leste, não conseguiriam na maior parte do percurso, pois apenas as estações Corinthians-Itaquera, Guilhermina-Esperança e Carrão possuem bicicletário com horário de funcionamento inferior ao horário de funcionamento dos trens (6h-22h, de segunda a segunda, conforme informações oficiais). Mesmo concentrando dois shopping centers e oferecendo ainda a opção das linhas 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes) e 12-Safira (Brás-Calmon Viana) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) em adição à Linha 3-Vermelha (Palmeiras·Barra Funda-Corinthians·Itaquera), não existe nenhum bicicletário na Estação Tatuapé. Outro aspecto ligado à ciclovia da Radial Leste diz respeito ao trecho em vala, paralelo à Estação Penha da Linha 3 do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo), classificado como perigoso pelos ciclistas presentes.
Os comerciantes e moradores que optaram por argumentos pouco lógicos (não foram todos, felizmente), demonstraram pouca empatia, porque não percebem ou fingem não perceber a disparidade brutal entre a infraestrutura para o automóvel e a infraestrutura para quem caminha, pedala e usa transporte público. Tais pessoas não compreendem a importância da presença de infraestrutura cicloviária ao longo de vias estratégicas, que possuem pontos de interesse; também não aceitam a retirada de vagas de estacionamento, o que em alguns casos rendeu narrativas absurdas, instrumentando pessoas portadoras de deficiência para distorcer a realidade.
Racionalização do espaço público
Enquanto os ciclistas imploravam por conectividade, precisavam também ouvir que estavam defendendo uma agenda que “retira direito dos outros”. Na verdade, a agenda em torno da priorização dos meios de transporte mais racionais e eficientes não retira direitos, pelo contrário, ela reduz ou elimina privilégios para expandir o direito à cidade, para democratizar o acesso ao espaço público e às oportunidades nele presentes. O discurso dos opositores presentes tratou a ideia de racionalização como uma medida extrema, porém, extrema é a clivagem entre as infraestruturas, com as malhas de transporte sobre trilhos, faixas e corredores de ônibus, além da malha cicloviária, ficando atrás em milhares de km quando comparadas ao sistema rodoviário concebido com o automóvel em mente. Em 2014, ciclovias representavam apenas 1% da malha viária das capitais brasileiras, conforme reportagem do Portal G1.
A ideia de que a ciclovia deve passar por ruas ermas não tem sentido. Se o automóvel exige menor esforço físico, tem menor capacidade, é ruidoso e poluidor, por que é o ciclista quem tem de passar por vias sem pontos de interesse? Por que o automóvel não pode dividir espaço com bicicletas? Da mesma forma que existem calçadas, devem existir ciclovias ou ciclofaixas. É urgente consolidar a necessidade da implantação das chamadas ruas ou vias completas, defendidas por organizações como a WRI Brasil, que aponta que São Paulo já colheu bons resultados.
Nossa fala foi categórica ao afirmar que vias como a Radial Leste e a Marginal Tietê são irracionais e de baixa capacidade. Para ilustrar a disparidade, a comparação feita envolveu corredores de ônibus: para cada uma faixa exclusiva de ônibus, são necessárias dez faixas para automóveis para se obter a mesma capacidade. Parafraseando uma de nossas intervenções, “as pessoas estão confundindo usos específicos, como o de veículos de emergência e de logística, com o uso exagerado do automóvel de passeio (…) a infraestrutura para o carro não chega no dedão do pé da infraestrutura ferroviária, que passa aqui atrás da Unicid e pena para conseguir investimentos”. Não é a primeira vez que o Coletivo critica vias como a Marginal Tietê, para qual já chegamos a propor uma linha aos moldes da 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú) da CPTM.
A bicicleta não está restrita ao lazer e a presença de ciclovias e ciclofaixas reduz acidentes no geral
Baseando-se numa pesquisa do LabMob, outra de nossas falas também apontou que “a bicicleta é escanteada por uma ilusão, que a trata como um veículo de lazer”, bem como que a “bicicleta é usada para trabalhar e fazer compras” e que “pode significar uma economia de até R$ 400 em combustível”.
Entre as falas que também merecem destaque, está a da Cidadeapé, representada pela Ana Carolina Nunes, tanto por apontar a necessidade de calçadas para pedestres ou uso compartilhado da ciclovia da Radial Leste, caso esta seja expandida em direção ao Centro de São Paulo, como também por destacar a importância da presença de ciclovias e ciclofaixas como elemento de acalmamento de tráfego. Em agosto de 2018, Alex Gomes escreveu para seu blog no Estadão justamente sobre o impacto positivo das estruturas cicloviárias em relação ao número de acidentes:
Os trechos estudados compõem um conjunto de cerca de 2 quilômetros de ciclovias denominado pela CET de “Ciclofaixa da V. Prudente — Trecho 3”. Tratam-se das ruas Mario Augusto do Carmo, Pinheiro Guimarães, Prof. Gustavo Pires de Andrade, da Praça Lourenço Barendse e um pequeno trecho da Av. Francisco Falconi.
Quanto a relação entre as ciclovias e a redução de acidentes, o relatório da CET é claro: “Pode-se observar que em quase a totalidade das estruturas cicloviárias analisadas, houve decréscimo no número total de acidentes, sendo significativa a redução da média anual de acidentes de todos os modais que circulam nas vias. Tal fato deve-se possivelmente à alteração de desenho viário, proporcionado pela infraestrutura cicloviária, assim como pela redução de velocidade nas referidas vias.”
Considerações finais
Se por um lado é desconfortável observar o atraso representado por algumas parcelas da sociedade paulistana, por outro lado é muito bom encontrar sinergia e ouvir pessoas indicando a consciência para somar pautas, como no caso das calçadas, que são historicamente de má qualidade, uma vez que estão sob responsabilidade do dono do lote.
São Paulo precisa urgentemente deixar claro que motoristas que exageram no uso do automóvel e contribuem para dificultar a democratização e melhoria da cidade não podem se apoiar na logística ou na circulação de ambulâncias e outros veículos de emergência, até porque, ao insistirem no automóvel e se colocarem contra ciclofaixas, ciclovias, corredores e faixas exclusivas de ônibus, estão dificultando a logística de cargas e a circulação de ambulâncias, e viaturas policiais.
Finalmente, à parcela retrógrada que questionou, mais uma vez, os estudos e projetos para implantação de ciclovias e ciclofaixas, fica uma proposta: que tal se o poder público elaborar estudos e projetos para reavaliar a presença de infraestrutura rodoviária, visando reduzir o rodoviarismo substancialmente? Seria uma ótima ideia! Quem hoje precisa acordar ao lado de uma via expressa de utilidade duvidosa pode, finalmente, ser contemplado com uma nova linha de VLT a custo reduzido, com uma ciclovia decente ou mesmo um amplo parque linear combinado a um conjunto de infraestruturas de logística de cargas e passageiros.
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