Por Caio César | 20/06/2019 | 6 min.
O COMMU tem, a despeito das dificuldades, alertado veementemente sobre promessas de trens de passageiros eleitoreiros, porém, não raramente notícias sobre os mesmos trens veiculadas em nossa página no Facebook são mais acessadas do que as análises críticas que publicamos. Entre março e junho publicamos três grandes artigos sobre o tema:
- Trem intercidades ignorar Mogi das Cruzes é apenas a ponta do iceberg
- Linha 7-Rubi e o trem intercidades: uma proposta de conciliação
- Concessão da Linha 7-Rubi: sobram dúvidas e incertezas
Atualização (20/06/2019, 21h44): publicamos um vídeo sobre o tema no Facebook e no YouTube, que complementa este e os outros artigos:
A plateia flerta com o acinte, o absurdo. Uma multidão abraça o populismo e, com multidão, podemos incluir pessoas de todo o espectro político-ideológico, da direita à esquerda.
O fragmento abaixo reproduz fala de um deputado do Progressistas (antigo PP), veiculada pelo jornal santista A Tribuna em 19/06/2019:
“O projeto prevê a ligação férrea entre a Estação da Luz, em São Paulo, e o Terminal Marítimo de Passageiros Giusfredo Santini, em Santos. O que foi feito entre segunda e terça-feira foi o primeiro teste para verificar sua viabilidade e condições”, explicou Mendes.
Não é preciso reproduzir qualquer outra passagem da reportagem para afirmarmos, sem qualquer titubeio, que estamos diante de uma piada de mau gosto, que jamais deveria ter sido reproduzida da forma que foi.
Não é possível, em sã consciência, que alguém possa levar a sério a possibilidade de uma estrovenga, movida por locomotiva diesel fabricada há mais de 50 anos, sair da Estação Luz da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).
Não é possível, em sã consciência, que continuemos achando que trilhos funcionam como uma espécie de rua ou avenida na qual veículos e pedestres se amontoam e trafegam uns colados nos outros. Trens não são como ônibus, trens são máquinas muito diferentes: são longos, pesados, carregam mais de 2 mil pessoas e seu tráfego é controlado por equipes que podem estar a quilômetros e quilômetros de distância. Trens são tão pesados, que mesmo uma frenagem de emergência exige alguns segundos e vários metros até surtir efeito, de maneira que a velocidade máxima e as rotas possíveis para se movimentar entre as vias não dependem apenas do maquinista.
Voltemos à razão, cada vez mais escassa. A Estação Luz está saturada e as duas linhas da CPTM que passam por lá exercem um serviço de metrô, que implora por investimentos à altura dos desafios que precisa superar dia após dias. As duas linhas da CPTM que atendem a estação, 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí) e 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes) estão saturadíssimas e já deveriam estar operando com pelo menos 3 minutos de intervalo médio nos picos, porém, o quadro é muito aquém, com 4 minutos entre Luz e Guaianazes, 8 minutos entre Luz e Estudantes e 6 minutos entre Luz e Francisco Morato (entre Jundiaí e Francisco Morato o intervalo é de 11 minutos e são poucos os trens que percorrem todos os 60 km da linha, de Luz a Jundiaí).
A composição flagrada na Baixada Santista nada mais é do que aquela que forma o Expresso Turístico, um serviço que parece ter saído de uma canetada marqueteira e que já deveria ter sido extinto, pelo bem de mais dos cerca de 3 milhões de passageiros, que não podem dividir espaço com um “ferrorama”. Quando o trem do Expresso Turístico chega ou parte da Estação Luz, a CPTM precisa isolar plataformas e convidar passageiros a trocarem cotoveladas e ofensas na plataforma central. A realidade impõe contrastes: enquanto uma plataforma fica vazia para um trenzinho turístico, o movimento de pessoas nas composições atrasadas do Trem Metropolitano é crescente. A demanda tem aumentado anos após ano. A sistemática de manutenção e modernização perceptivelmente está no limite, principalmente na Linha 11, cuja lotação impressiona aos sábados e, não por acaso, tem feito com que a CPTM dependa apenas o domingo e de poucas horas na madrugada para conseguir fazer intervenções mais pesadas na parca infraestrutura existente.
Feitas as devidas considerações e o apelo ao pensamento racional, fica a pergunta: alguém enxerga condições de um trem partindo da Luz para descer até Santos?
Mais: é preciso ainda considerar o tráfego de trens de carga, que não foi segregado e aguarda pelo Ferroanel há anos, bem como o tráfego de veículos de manutenção e trens em manobra (para recolhimento, manutenção, limpeza etc). Tudo isso respeitando intervalos nos picos que correspondem ao limite dos sistemas de controle de tráfego e sinalização da CPTM. Alguém está disposto a esperar mais tempo para que um trem vagaroso possa chegar de/partir para Santos? Como ficarão as já lotadas plataformas?
A reportagem d’A Tribuna, mera difusora das falas apressadas de um parlamentar, não foi capaz de esclarecer (ou mesmo enxergar) uma série de questões:
- Por que seria a EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos a responsável pelo serviço?
- Se o trem é metropolitano, logo, se é um metrô, como poderia ter uma tarifa entre 15 e 20 reais?
- Como ficaria a compatibilização com as linhas existentes?
- As linhas existentes deixariam de ter os intervalos reduzidos ao patamar de 3 minutos?
- Como ficaria o tráfego de trens de carga?
- A descida será pela chamada “serra nova” ou pela cremalheira, que estava tão saturada para o transporte de minério, que a concessionária MRS Logística queria substituir o antigo funicular por uma esteira?
Enquanto isso, nos comentários do mesmo jornal e também nas páginas de mídias supostamente especializadas, brotam comentários otimistas e carentes de informação de qualidade. Há até quem sugira o retorno de trens para Peruíbe (!), numa absoluta demonstração de desconhecimento sobre a delicada situação do antigo ramal de Juquiá e da completa perda de conectividade deste.
A falta de informação de qualidade é tamanha, que o Portal G1 confundiu até a estação:
Um trem metropolitano que pode transportar passageiros entre Santos e São Paulo foi testado nesta terça-feira (18) pela primeira vez. Ele saiu da estação da Luz do Metrô, em São Paulo e desceu a serra em direção ao Terminal de Passageiros de Navio de Cruzeiros de Santos. O teste foi concluído com sucesso e, segundo o deputado estadual Kenny Mendes, o projeto poderá entrar em vigor ainda neste ano.
A Estação Luz da Cia. do Metropolitano de São Paulo não tem nenhuma relação com o episódio e o trem, embora possa transportar passageiros, não é metropolitano, é um pequeno trem turístico, usando uma locomotiva de manutenção e carros de passageiros restaurados por uma associação sem fins lucrativos. Uma verdadeira “lata velha”!
Enfim, se alguém precisava estragar a festa com uma notícia ruim, aqui estamos, doa a quem doer.
Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.
comments powered by Disqus