Populismo ameaça implantação de trens regionais no Estado de São Paulo

Por Caio César | 20/06/2019 | 6 min.

Legenda: Baixada Santista observada a partir da rodovia Anchieta
Discussão sobre trens regionais continua saindo dos trilhos: promessas milagrosas, desconhecimento e insistência de espremer cada gota de uma infraestrutura antiquada

Nos últimos meses tem sido constante a necessidade de explicar que não figura como boa prática compartilhar trilhos entre trens de carga, trens regionais e trens metropolitanos, mas a máquina governamental e a imprensa (incluindo veículos especializados) parecem pouco preocupados com a realidade e as possíveis consequências. A última eleição já tinha dado sinais.

Atualização (20/06/2019, 21h44): publicamos um vídeo sobre o tema no Facebook e no YouTube, que complementa este e os outros artigos:

Legenda: Vídeo publicado no canal do COMMU no YouTube

Em 12/06/2019 o Ferroviando noticiava: “Banco Mundial viu como “inadequada” a segregação de vias do Trem Intercidades”, uma verdadeira bomba, que deixou claro que a interferência de um banco de fomento estadunidense minou, ainda em 2015, a implantação de um trem regional entre as metrópoles de São Paulo e Campinas. O motivo, para variar, foi a insistência de que o governo deveria compartilhar infraestrutura, fazendo três tipos de tráfego conviverem harmoniosamente.

Com todo respeito ao Banco Mundial, o diagnóstico não poderia ter sido mais equivocado e, sobretudo, risível. Qualquer pesquisa preliminar deveria apontar para a saturação dos atuais serviços metropolitanos, engessamento e estrangulamento do transporte de cargas e absoluta falta de espaço (seja físico, seja em termos de fatiamento de tempo em decorrência dos tipos de sistemas de sinalização atualmente instalados) para comportar mais um serviço.

De 2015 até os dias atuais, o tema pouco avançou e a gestão do atual governador, João Doria (PSDB), não esclarece como vai tirar os trens do papel utilizando exclusivamente recursos privados e com o certame pronto ainda em 2020, envolvendo um perigoso atrelamento com linhas que hoje estão nas mãos da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e exigem continuidade de investimentos no programa de modernização e consolidação do Trem Metropolitano.

São novas estações (adição de novas paradas ou reconstrução de paradas existentes), novos sistemas de sinalização e novos trens que precisam ser entregues para garantir a mobilidade de um número de passageiros que já está no patamar dos 3 milhões. Há ainda a necessidade de implantar serviços expressos e de garantir maior flexibilidade para a operação, que hoje mal consegue se recuperar de falhas em tempo hábil, degradando o nível de serviço por horas a fio e provocando toda sorte de inconveniente aos passageiros, que inclusive ficam com a integridade física ameaçada em virtude do tipo de comportamento que pode ser observado durante momentos de falhas críticas.

Nada disso tem sido colocado na balança, aparentemente.

O governo não diz como vai modelar uma concessão à iniciativa privada que não repita os erros da Linha 4-Amarela (patrocínio baseado numa câmara que suga recursos da malha estatal e tarifa real superior à tarifa de bilheteria) e da Linha 6-Laranja (construção paralisada por impossibilidade de obtenção de financiamentos pela iniciativa privada).

O governo também não explica como a deficitária CPTM, que historicamente tem se comportado como um misto de laboratório e de balcão de negócios, sendo dependente da iniciativa privada para garantir serviços de manutenção, limpeza e atendimento, vai se livrar dos contratos existentes, conceder linhas problemáticas, conceder estações em periferias que carecem de planejamento adequado nos níveis local e metropolitano, viabilizar a implantação de serviços regionais coexistentes e garantir a manutenção e melhoria dos atuais serviços metropolitanos.

Nada disso tem sido colocado na balança, ousamos repetir.

São Paulo não está em posição de embarcar numa perigosa aventura privatista. Boa parte da ineficiência de nossas ferrovias decorre do modelo de negócio que vigorou durante a República Velha, na qual concessões de monopólios naturais com inúmeras cláusulas de exclusividade, ausência do Estado e, consequentemente, prestação de péssimos serviços pela iniciativa privada, eram regra. Linhas como a 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí) e 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra) remontam ao auge da economia cafeeira e foram originalmente construídas e operadas pela iniciativa privada com capital estrangeiro (não por acaso a ferrovia que originou as duas linhas ficou conhecida como “Inglesa”).

Como melhor discorremos em um artigo sobre a Linha 7-Rubi, até é possível vislumbrar uma operação compartilhada de serviços regionais e metropolitanos, caso estes sejam mesclados numa única composição, contudo, os tempos de viagem serão torturantes quando observados pela ótica da escala regional. A atual situação dos ônibus executivos do Airport Bus Service da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos), que se viu obrigada a reduzir a tarifa de R$ 52,50 para R$ 39,00, sugere que mesmo oferecendo um transporte regional extremamente confortável, fatores como preço e tempo de viagem continuarão importando mais — no caso do Airport Bus Service, a hipótese gira em torno da adição de três opções sobre trilhos por meio da Linha 13-Jade da CPTM (Eng. Goulart-Aeroporto·Guarulhos), todas pouco confortáveis, mas muito mais confiáveis e previsíveis.

Apostamos que milhares de pessoas nas metrópoles de Campinas e da Baixada Santista estão ávidas por uma opção mais segura para acesso à capital paulista ou mesmo algumas cidades da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), contudo, tem sido difícil deixar o ceticismo e o pessimismo de lado diante da estagnação da modernização da CPTM e da falta de transparência do atual governo estadual, cujo Executivo está sob o comando de João Doria (PSDB), que não enfrenta oposição substancial na Assembleia Legislativa. Temos certeza de que muitos moradores da RMSP adorariam um trem “pé na areia”, por exemplo, capaz de aproximar São Bernardo do Campo e Praia Grande ou Santos e São Paulo, por exemplo.

Carecemos, entretanto, de uma agenda para a mobilidade e o desenvolvimento integrado na Macrometrópole. Ainda que a ideia de um conjunto de regiões metropolitanas seja frágil devido à quase invisibilidade e anacronismo da Emplasa (Empresa de Planejamento Metropolitano), é fato que existe uma conexão entre elas que hoje depende de rodovias, que por mais modernas que sejam, são corredores poluentes e de baixa capacidade, prejudiciais à economia paulista. O aumento da capacidade e a adoção de meios de transporte mais limpos passa pelas ferrovias, que estão reféns de discursos que continuam presos a antigas infraestruturas e que, não raramente, desprezam desafios longe de serem considerados latentes.

Legenda: Ônibus da Viação Cometa em direção ao município de Praia Grande: opção rodoviária é regra

Se queremos trens regionais rápidos e confortáveis, que nos libertem das rodoviárias e das tantas empresas de ônibus que nelas operam, precisamos de seriedade nas discussões. Não é qualquer bobagem que pode virar factoide. Uma série de questões pertinentes envolvendo os atuais sistemas de transporte sobre trilhos e a própria paisagem e configuração urbana das regiões envolvidas precisam ser colocadas. Será que não é melhor potencializar a infraestrutura existente para o transporte metropolitano, construindo uma malha regional nova, capaz de competir com as rodovias inauguradas nas últimas décadas? Será que não deveríamos considerar mais cuidadosamente o atual comportamento dos empregos na capital, de forma a não criarmos ligações regionais que deixam os passageiros muito longe dos principais centros da Região Metropolitana de São Paulo?

São Paulo tem um grande déficit de infraestrutura e não tem sabido pautá-lo. Longe de desejarmos uma crise institucional e/ou de imagem sem precedentes, no entanto, o governo deveria ir além de discursos privatistas ousados. Faltam demonstrações de que os atuais desafios são compreendidos e falta disposição em racionalizar o espaço viário (incluindo o espaço das atuais rodovias) em prol de sistemas mais eficientes. Quanto tempo demorará até retirarmos faixas de rodovias para implantarmos trens regionais competitivos, ao invés de insistirmos em espremer mais ainda ferrovias centenárias que vinham sendo convertidas numa malha de metrô?




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