Por Caio César | 09/07/2019 | 11 min.
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Contextualização
Depois de frustrar moradores e frequentadores dos municípios do Grande ABC, nomeadamente Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, João Doria (PSDB), atual governador do estado, não perdeu tempo em anunciar que a Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) seria convertida em metrô, tentando minorar as críticas em torno da troca de uma linha de metrô leve (que utilizaria monotrilhos) por um sistema de corredores rápidos de ônibus (conhecidos pela sigla BRT, que significa Bus Rapid Transit).
Um detalhe-chave para acelerar a conversão da Linha 10 em metrô foi a aposentadoria dos trens mais antigos, integrantes da série 2100, e a transferência de trens mais novos, integrantes da série 7000, que estavam em outra linha. E está na transferência dos trens o assunto que ensejou a escrita deste artigo.
Bairrismo e desconhecimento
Parece existir uma confusão generalizada quando o adjetivo “novo” é utilizado para se referir aos trens que passarão a operar na Linha 10. Aparentemente uma parcela da sociedade e da imprensa (exemplos de notícias aqui, aqui, aqui e aqui) trata o adjetivo como sinônimo para 0 km ou recém-saído da fábrica, condições estas que não refletem os trens que estão sendo movimentados para a linha. Surge então outro problema, que mescla bairrismo com desconhecimento: a vida útil do material rodante é considerada ambiguamente, conforme a conveniência.
Sentimos então a necessidade de fazer algumas “revelações”:
- Trens são máquinas e, como toda máquina, possuem vida útil e ela pode chegar a 50 anos, como foi o caso da já aposentada série 1100, que circulou desde os anos 1950, recebendo algumas intervenções durante a segunda metade dos anos 1990;
- Idade não pode ser relativizada, o trem tem a idade que tem, rode ele na linha A ou B; se pouco tempo atrás você dizia que aquele trem era novo quando criticava a falta de investimentos na Linha 10, então ele não deixa de ser novo quando passa a rodar nela;
- A série que está sendo transferida tem cerca de 10 anos, porque entrou em serviço a partir do ano de 2010; um trem com 10 anos não é velho, velhos eram os trens espanhóis, que entraram em serviço a partir do ano de 1975, foram doados nos anos 1990 para o governo paulista — modernizados, eram apelidados como “sucatão” por alguns ferroviários — e estavam rodando desde 1998;
- Quando chegou, a série 2100 rodou em praticamente todas as linhas e passou anos rodando na Linha 9-Esmeralda (então entre Osasco e Jurubatuba)
- De forma análoga, a série 7000 rodou em praticamente todas as linhas, sendo hoje praticamente hegemônica na Linha 12-Safira (Brás-Calmon Viana) em conjunto com a série 2000, que por sua vez, circulou por mais de dez anos exclusivamente no Expresso Leste da Linha 11 (primeiro entre Roosevelt e Guaianazes, depois entre Luz e Guaianazes, com o avanço das obras do projeto Integração Centro, então em andamento);
- A série 7000 já estava rodando na Linha 10, todas as fotos deste artigo são do Coletivo e foram tiradas antes do anúncio do atual governo.
É inegável que a transferência da série 7000 proporcionará uma série de benefícios, como maior capacidade e maior confiabilidade, além de um sistema de ar condicionado com desempenho superior. Como também comentamos abaixo, a questão mais preocupante gira em torno do contrato 8764083011 com a CTrens na Linha 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno).
Atualização (20/07/2019): o contrato mencionado no parágrafo acima finalmente recebeu um aditivo, tornando possível a operação da série 8000 na Linha 9-Esmeralda. Reproduzimos a síntese abaixo:
Termo de Aditamento nº 02 ao CN 876408301100 - Objeto: Concessão administrativa de prestação de serviços de manutenção preventiva, corretiva, revisão geral e a modernização da frota da Linha 8 - Diamante - Concessionária: CTRENS - COMPANHIA DE MANUTENÇÃO, tendo como Fiadora a COMPANHIA PAULISTA DE PARCERIAS - CPP - Data: 05/07/19
- Finalidade: Consignar que os trens da Série 8000 também poderão ser utilizados, a critério da contratante e dentro dos seguintes limites de utilização estabelecidos, na Linha 9-Esmeralda: da assinatura do Termo de Aditamento até 31/12/21: 12 trens, de 01/01/22 até 31/12/23: 9 trens, de 01/01/24 até 30/06/25: 6 trens, de 01/07/25 até o final do período do contrato: 2 trens; alteração do item 5.1.2 do contrato; e consignar que a concessionária e a contratante, em comum acordo, deverão elaborar "Procedimento Técnico-Operacional para utilização dos trens da Série 8000 nas linhas 8 e 9 da CPTM" no prazo de até 10 dias da assinatura deste Termo de Aditamento, o qual deverá abordar todas as condições a serem respeitadas pelas partes na alocação da frota para cada linha. O "Procedimento Técnico-Operacional para utilização dos trens da Série 8000 nas linhas 8 e 9 da CPTM" integrará o Termo de Aditamento e constituirá obrigação entre as partes - Parecer GRJ nº 599 de 27/06/19.
É preciso ter franqueza: Doria foi populista não só quando disse que vai inaugurar segunda linha de metrô pesado com início no Rudge Ramos dentro de 4 anos, como também quando afirmou que vai converter a Linha 10 em uma linha de metrô — serviço que ela e outras linhas da CPTM já desempenham por pressão irreversível do tecido urbano lindeiro, mas cuja discussão, dada a complexidade, exige um artigo específico — , porque uma série de questões ficaram de lado e estão sendo esfumaçadas com a transferência dos trens da série 7000, entretanto, quando pessoas insistem que a CPTM deveria ter transferido trens mais novos das linhas 11, 8 ou 7, elas estão pedindo por ainda mais populismo. O sistema já possui uma série de problemas e recebe uma cobertura tão insatisfatória por parte da mídia hegemônica, que chega a ser grotesco, por outro lado, incitar a fragmentação da frota de linhas com maior carregamento (vide tabela abaixo) e que, todas elas, possuem históricos críticos com suas devidas particularidades, não faz o menor sentido.
Como membros da população, ao invés de aderirmos ao populismo, deveríamos questionar se o governo pode, de fato, transferir trens da série 8000, que eram parte do projeto de redução de intervalos da Linha 8-Diamante sem prejuízo ao contrato de manutenção, que diferente dos outros contratos de terceirização, foi inserido numa PPP (parceria público-privada) vencida pela empresa CTrens, ligada ao fabricante. É preciso ter em mente que a possibilidade de redução de intervalos da Linha 8, que já dependia de uma sinalização cuja implantação atrasou e parou por falta de recursos, está totalmente congelada até que a frota seja rebalanceada com uma nova compra de trens que permita, por exemplo, a devolução da série 8000 que será alocada na Linha 9 para permitir, por sua vez, a transferência de trens da série 7000 para a Linha 10, que complementarão a frota nada confiável de trens da série 3000.
O trem do vizinho é sempre melhor
Quando não utilizamos uma linha, ela tende a parecer melhor. Deveria ser óbvio, mas parece que não é, assim, precisamos entender de uma vez por todas que a CPTM opera uma rede. Não opera linhas isoladas. As linhas da CPTM estão todas conectadas. É possível, sem utilizar outros meios de transporte sobre pneus ou sobre trilhos, sair de uma linha para qualquer outra. Decisões feitas num ponto da rede poderão afetar outro extremo, em linhas diferentes, de regiões sem forte inter-relação.
Toda a malha da CPTM foi herdada em uma situação que variava entre péssimo e regular, não existindo uma linha verdadeiramente de excelência. Infelizmente, de 1992, quando a empresa foi criada, até 2019, nós, como sociedade civil, não aprendemos a discutir sobre a CPTM, sobre as cidades atendidas pela CPTM e sobre a metrópole que é dependente da CPTM (incluindo uma capital que parece ter prazer em virar as costas para as linhas da estatal). São 27 anos de convivência com problemas e subinvestimento. Será que em 27 anos não aprendemos a desenvolver uma postura menos egoísta e bairrista, pelo menos de vez em quando?
Se a frota rodou em 4 linhas antes de ser transferida para a Linha 10, qualquer crítica razoável exige um balanço que envolva todas as linhas envolvidas. Iniciar uma discussão irracional que se baseia na percepção subjetiva de qual linha é pior, sem dados, sem ponderação e sem capacidade de reflexão, não produzirá bons resultados. É por isso que costumamos dizer que a pior linha da CPTM é sempre aquela que o passageiro utiliza, a menos que sejam definidos critérios para qualificar a infraestrutura e a partir daí desenvolver alguma coisa aproveitável.
Quando a mesma Linha 8-Diamante ainda circulava com a série 5000 no trecho principal, com longos trens de 12 carros dos anos 1970 que eram verdadeiros fornos elétricos no verão e não eram exatamente um primor em termos de confiabilidade, a Linha 10 seguia firme com a série 2100. O problema de frota da Linha 8 só foi resolvido com a compra da série 8000, que entrou em serviço em 2012.
Quanto às linhas 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí) e 11-Coral (Luz-Estudantes), as duas passaram décadas com frota fragmentada e/ou de baixo padrão de conforto e tecnologia. Até janeiro de 2019, a Linha 11 ainda ostentava entre as estações Guaianazes e Estudantes trens comprados pela Estada de Ferro Central do Brasil, conhecidos como série 4400, com caixa em aço carbono (suscetível a corrosão), assentos extremamente desconfortáveis, elevado nível de ruído, conforto térmico ruim (não possuíam ar condicionado). A série 4400 inviabilizava oferecer serviços mais frequentes entre a capital e o Alto Tietê e funcionava como um divisor de águas, porque a transferência obrigatória em Guaianazes era um verdadeiro túnel do tempo, além disso, ela também rodou na Linha 12, percorrendo a linha de ponta a ponta, vencendo distâncias superiores a 30 km; até o junho de 2019, a Linha 7 ainda possuía trens da série 1700 em circulação, tão rudimentares quanto os trens da série 4400, com a exceção de terem melhores taxas de aceleração e frenagem, bem como assentos menos desconfortáveis e caixa de aço inoxidável austenítico, além disso, apenas em maio de 2018 a Linha 7 finalmente disse adeus à série 1100, cuja origem remonta à Estada de Ferro Santos-Jundiaí e à década de 1950. A série 1100, apesar de menos ruidosa, uma vez que foi modernizada nos anos 1990 após um TAC (Termo de Ajuste de Conduta) entre a CPTM e o Ministério Público, tinha taxa de aceleração ruim, apenas seis carros (as séries mais novas possuem oito carros) e já apresentava danos nas caixas (mesmo remendadas, ocorriam vazamentos e a utilização daqueles trens em dias chuvosos chegava a ser humilhante).
Em suma, enquanto passageiros das quatro linhas precisavam encarar material rodante obsoleto, a Linha 10 já estava padronizada com a série 2100, que mesmo tendo isolamento acústico deficiente, sistema sonoro propenso a falhas, portas gigantes que são frágeis — são dois pares de portas ao invés de quatro pares, porque a estrutura do trem foi pensada para serviços regionais e não serviços metropolitanos — e mais uma série de problemas, foi dotada de assentos de boa ergonomia e ar condicionado, proporcionando um conforto que só foi ser superado de forma substancial em 2010, quando a série 7000 entrou em serviço. Antes da série 7000, os trens das séries 3000 e 2070 ficaram restritos à Linha 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú).
Mais promessas irresponsáveis
Como o governo ainda segue fazendo promessas em relação aos sistemas de sinalização, a despeito da movimentação de trens observada, o mínimo seria que o Executivo garantisse a compra de mais trens e a capacidade de abrigá-los e mantê-los em funcionamento, porque sinalização e material rodante caminham juntos. A Assembleia Legislativa, que poderia muito bem cobrar e até mesmo tentar uma denúncia no Ministério Público, segue inerte.
Precisamos de um cronograma que sistematize as ações previstas pelo atual governo no tempo e no espaço. Promessas se acumulam em posturas confusas e que transparecem até mesmo um certo amadorismo, sendo a recente visita ao Reino Unido um excelente exemplo: o governo foi buscar investidores em Londres, porém, ele acabou de criar um mal estar no ambiente de negócios envolvendo a Linha 18-Bronze, além de ter ido a um dos países mais atrasados da Europa quando o assunto é transporte sobre trilhos — fora das linhas estatais de algumas concessões mais discretas, como a do Overground, as ferrovias britânicas amargam desinvestimento, estagnação e insatisfação, para não falar nas críticas aos sistemas de ônibus pouco regulados que só têm contribuído para aumentar a dependência do automóvel em regiões distantes da badalada metrópole inglesa.
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