É um equívoco supervalorizar a noção de “mobilidade como serviço”

Por Caio César | 14/10/2019 | 5 min.

Legenda: Adesivo indicando oferecimento de acesso gratuito à Internet via rede sem fio num ônibus da linha 53 da ETCSBC (Empresa Transporte Coletivo de São Bernardo Campo), operada pela SBCTrans
Buzz em torno de serviços de transporte demandados por aplicativos não pode ofuscar discussão sobre os sistemas que verdadeiramente estruturam a mobilidade nas nossas cidades

Foi surpreendente observar que até o ex-Secretário dos Transportes Metropolitanos Jurandir Fernandes embarcou na ideia de que o futuro é a MaaS (Mobility as a Service, livremente traduzida como Mobilidade como Serviço), como revelou artigo recentemente publicado, no entanto, mesmo numa leitura rápida, fica evidente que serviços sob demanda não substituem os serviços convencionais, muito menos ganham caráter estruturador, ou seja, serviços como Uber e similares não serão capazes de moldar o território como ferrovias e corredores do tipo BRT (Bus Rapid Transit, termo que pode ser livremente traduzido como Transporte Rápido por Ônibus).

Legenda: Uma rápida busca pelas palavras “maas” e “futuro” releva um excesso de otimismo preocupante

Considerando as críticas que fizemos ao serviço Metra Class, que parece ter desaparecido das ruas de São Bernardo do Campo após as ações da prefeitura da capital, algumas ideias que andam permeando a sociedade, principalmente as classes com maior poder aquisitivo, ficaram nítidas e merecem considerações. São elas:

  • A noção de que qualquer plataforma tecnológica está acima do Estado;
  • A noção de que qualquer serviço de transporte deve ser livre para circular;
  • A aposta na migração do automóvel para o transporte público a partir da oferta de serviços mais sofisticados e confortáveis.

Em primeiro lugar, todas as noções são problemáticas e extremamente ingênuas. Como discutido no caso do Metra Class e do UBus, o deslumbramento com uma tecnologia longe de ser inovadora foi especialmente útil para ocultar questões familiares e políticas, colocando o Estado na posição de vilão, quando na verdade existem relações muito mais complexas, envolvendo inclusive captura, lutas ferrenhas por ganhos de monopólio e toda sorte de deseconomia de escala, afetando não só a economia local das cidades e eixos de transporte, mas também outros setores, já que o passageiro perde tempo, saúde e produtividade.

Em segundo lugar, é comum que a defesa de serviços sob demanda negligencie completamente as limitações da infraestrutura existente, como se esta não fosse finita e/ou não possuísse limites óbvios de capacidade. É verdade que a ideia de MaaS como um todo é relativamente recente, sofrendo de problemas terminológicos e conceituais, no entanto, imaturidade e pouco rigor conceitual não têm impedido pesquisas. Existem indícios de que serviços como Uber e similares pioram ainda mais os congestionamentos, sendo que a discussão tem sido feita até mesmo em portais de tecnologia, como o Techtudo. Diferentemente do transporte público, que trabalha com rotas fixas e aloca veículos em corredores com diferentes graus de segregação e exclusividade, serviços sob demanda trabalham com uma noção diferente, oferecendo ociosidade variável, que poderá ou não ser demandada.

A imagem acima é especialmente interessante para compreendermos que a ineficiência do transporte individual motorizado é muito elevada, considerando um cenário relativamente trivial para a Região Metropolitana de São Paulo: movimentar 10 mil pessoas por hora num único sentido. De fato, o transporte individual motorizado é tão ineficiente, que mesmo se os carros fossem convertidos em veículos voadores, o espaço necessário para pousá-los seria grotesco de tão grande. Confira uma tradução da imagem abaixo:

  • Uma calçada de 3,6-4,5 metros de largura;
  • Uma ciclovia segregada de 3,6-4,5 metros de largura;
  • Duas faixas exclusivas de ônibus totalizando 7 metros de largura com 80 ônibus por faixa numa hora;
  • Treze faixas numa via arterial convencional, com 800 veículos viajando em cada faixa numa hora;
  • Uma área de pouso com largura e comprimento equivalente a 38 faixas de uma rodovia, com 42 veículos voadores decolando a cada minuto.

Fica evidente que, a despeito do aumento da participação de serviços de automóveis sob demanda, estes são absolutamente incapazes de figurarem como uma solução de transporte de massa ou mesmo de transporte de média capacidade.

É claro que tais serviços, a exemplo dos táxis convencionais, continuarão existindo no futuro, mas não faz sentido insistir na ideia de que consistem no futuro da mobilidade urbana, porque eles não possuem capacidade para tanto, nem estruturam o tecido. Na verdade, nós do COMMU temos alertado para o perigo de importarmos soluções norte-americanas, concebidas para cidades com zoneamentos que proíbem o uso misto na maior parte do território, repletas de subúrbios de baixíssima densidade. São Paulo não se parece com uma cidade norte-americana e possui densidade suficiente para receber meios de transporte que operam com 15 minutos ou menos de intervalo, mesmo na periferia metropolitana, formada por diversos municípios com população bastante inferior um 1 milhão de habitantes cada (geralmente ela é cerca de 10-20% disso).

Legenda: Exemplo de eixo estruturado pelo transporte público sobre pneus, adaptado da publicação Corredores de alta capacidade (BRT) e desenvolvimento orientado ao transporte (TOD)

Ao invés de retomarmos a noção da orientação voltada a estruturar cidades repletas de tecidos amigáveis para pessoas — noção esta que também é, verdade seja dita, muitas vezes, importada dos Estados Unidos sem os devidos cuidados — , estamos permitindo o completo empobrecimento da discussão, como se estivesse deixando de fazer sentido falar em BRTs, VLTs (Veículos Leves sobre Trilhos) ou sistemas pesados sobre trilhos (como sistemas de metrô, trens regionais confortáveis, trens de alta velocidade percorrendo longas distâncias etc), uma vez que estes não funcionam sob demanda, até porque, não precisam, já que um bom desenho urbano garante a alimentação e utilização dos sistemas de maneira sinérgica e integrada, dois pilares que precisam fazer parte de praticamente qualquer planejamento que olhe para o futuro da Região Metropolitana de São Paulo.

Mais do que nunca, precisamos exigir não só maior participação popular, mas também rigor técnico por parte do poder público, sob pena de estarmos condenando práticas de planejamento em prol de serviços incapazes de modificar a paisagem judiada de nossas cidades. A infraestrutura continua sendo importante! Francamente, acreditamos nas seguintes premissas: (i) todos somos pedestres; (ii) todos precisamos de bons serviços de logística, essenciais para o bom funcionamento do comércio, da indústria e da agricultura; (iii) todos queremos que os deslocamentos massivos inevitáveis, como são aqueles de caráter pendular que fazem parte do cotidiano de milhões de pessoas, que se deslocam em direção a um pequeno número de centralidades concentradoras de empregos, ocorram da melhor maneira; (iv) todos seremos beneficiados por cidades mais amigáveis para bicicletas. Infelizmente, nenhuma das premissas está em jogo ao se colocar plataformas tecnológicas (não raramente com regimes trabalhistas nebulosos) num pedestal, construindo uma espécie de zeitgeist do qual poderemos nos arrepender amargamente dentro das próximas décadas.




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