Por Caio César | 09/11/2019 | 5 min.
Índice
Introdução
A Companhia do Metropolitano de São Paulo (METRÔ, usualmente Metrô), responsável por operação de parte da malha metroferroviária da região metropolitana, lançou recentemente a campanha “#Entrelinhas: Histórias em Movimento” e, assim como aconteceu no caso da campanha “Gente que move São Paulo” da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), o tiro parece ter saído pela culatra. Antes de discutirmos os aspectos problemáticos da campanha, precisamos deixar algumas coisas muito claras na próxima seção, pensando sobre a figura da estatal.
Algumas questões institucionais delicadas
Para além dos canais oficiais e de um contato mais breve, considerando nossa experiência de longa data com a estatal, que remonta à presidência de Sérgio Avelleda, é preciso ter em mente que o Metrô de São Paulo não é uma estatal de fácil diálogo. Seu surgimento dentro de uma lógica municipalista que negava a importância da dinâmica metropolitana, a relação aquém do ideal com a CPTM, a relutância em mudar padrões e a dificuldade de assumir equívocos, infelizmente, são aspectos que influenciam drasticamente as relações do sistema com seus passageiros e com o próprio território.
O Metrô, claro, dialoga, mas não tem conseguido, com base no diálogo, desenvolver propostas e ações complexas. Não existem ações estruturantes e a avaliação das intervenções, quando realizada, não é suficientemente rigorosa e não se dá no tempo (ou seja, considerando curto, médio e longo prazos).
O abandono dos terminais de ônibus por anos a fio, a indiferença com relação aos problemas de organização do fluxo em estações movimentadas como Tatuapé, a lentidão para adotar trens com ar condicionado, a dificuldade de amparar passageiros vítimas de delitos (incluindo mulheres vítimas de assédio), entre outros problemas, nunca foram verdadeiramente encarados de frente, porque o Metrô não consegue utilizar sua gigantesca estrutura interna para fazer estudos de microssimulação, para dialogar amplamente e continuamente com as comunidades envolvidas e para elevar o conforto térmico dos trens (cujos aparelhos de ar condicionado ainda não são capazes de funcionar bem em situações de superlotação, sendo reclamações recorrentes em dias quentes).
Aspectos problemáticos da campanha
O primeiro aspecto problemático da campanha está na forma como ela foi criada. Passageiros têm acusado a Companhia de plágio constantemente e, embora o fotógrafo Augusto Sephaz, autor do projeto Entrelinhas de fotografia, tenha removido as publicações nas quais denunciava a campanha por plágio, o Metrô tem sido incapaz de reverter o mal estar gerado.
Sério q Continuam fazendo plagiando?
— Lucário (@Lucasbomber) November 6, 2019
Talvez se a Companhia não tivesse adotado um nome praticamente idêntico, o ruído teria sido menor. Outra possibilidade é elevar a noção comunitária e alimentar um banco de dados com projetos culturais que já foram exibidos ou envolveram de alguma maneira o sistema, assim, é possível buscar diálogo antes de desenvolver ações que apresentem algum tipo de semelhança. O gigantismo da empresa não pode ficar restrito aos números de passageiros transportados ou ao número de funcionários.
Para agravar a situação, a exemplo da CPTM, o Metrô está buscando situações ideais para retratar o cotidiano do passageiro. Os depoimentos criam uma visão que parece soar tão romântica, que exacerba a insatisfação de passageiros com o sistema. Denúncias de assédio, mau atendimento, superlotação, lentidão nas obras, entre outras, acabam surgindo como resposta.
No primeiro vídeo da campanha, que apresenta o relato da passageira Livia La Gatto, uma série de símbolos importantes distanciam a realidade dela daquela vivida por parcelas, acreditamos nós, expressivas de usuários. Confira:
- Um MacBook de grandes dimensões, computador portátil extremamente caro fabricado pela Apple, aparece logo no início do vídeo, demarcando o pertencimento a uma classe social específica;
- A construção de uma ideia de viagem prazerosa, “instagramável”, que colide com problemas frequentes de superlotação;
- O transparecimento de uma rotina suficientemente flexível, que permite múltiplas viagens e viagens curtas, em oposição a rotinas rígidas, atreladas a deslocamentos longos, baseados numa lógica centro-periferia;
- A utilização da Linha 2-Verde (Vila Madalena-Vila Prudente) no trecho da Avenida Paulista;
- Adoção de um discurso que minora aspectos polêmicos do sistema, como o corredor de integração entre as estações Paulista e Consolação, cuja esteira foi chamada de “esteira dos Jetsons” pela protagonista.
Problemas similares foram observados durante a campanha da CPTM e, na época, quando o COMMU nem sequer existia, conversamos com o Departamento de Marketing e Relacionamento, nos sendo garantido que todos as histórias envolviam pessoas reais, mas que, de fato, eram passageiros do horário de vale e não do horário de pico. Surge então um outro problema, que talvez não seja tão grave, mas pode levantar suspeitas quanto à veracidade e espontaneidade do relato, principalmente quando a credibilidade da campanha já está perto de zero em meio a acusações de plágio: Livia La Gatto é uma atriz e, mesmo que não seja extremamente famosa, já apareceu na blogosfera do portal UOL.
O Metrô de São Paulo precisa compreender que o controle completo de uma narrativa não acontece sem custos. Se as narrativas controladas pela estatal continuarem tratando de realidades que não traduzem adequadamente os territórios atendidos, o Metrô vai pagar com a própria imagem. Não teria sido melhor ter conversado com usuários antes? Não dava pra ter feito uma pesquisa de opinião primeiro? Considerando que a estatal conhece muito bem seu público, critérios como renda, origem e destino, tempo de deslocamento, entre outros, não foram considerados? Finalmente, a campanha realmente é necessária e/ou está sendo feita no melhor momento possível?
Conclusão
Não é a primeira vez que o Metrô desenvolve uma campanha sem os devidos cuidados. A campanha “Você não está sozinha”, que visava combater o assédio sexual e estimular denúncias, apesar da boa aprovação (79% de aprovação, conforme apontado por Nana Soares na blogosfera do Estadão), apresentou uma peça publicitária com seguranças a paisana que não foi bem recebida — e a empresa tinha sido alertada sobre os riscos, mas preferiu ignorá-los (e isso significou, basicamente, ignorar quem sugeriu a campanha em primeiro lugar).
Esperamos que o Metrô de São Paulo repense os próximos capítulos, que só farão sentido se as acusações de plágio cessarem.
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