Planejar rotas envolvendo Uber e transporte público não é mais novidade

Por Caio César | 20/11/2019 | 8 min.

Legenda: Centro de Itapevi, uma das cidades utilizadas por nós durante a simulação das rotas
Coletiva de imprensa do governo estadual faz alarde sobre recurso da Uber que já existe em outros aplicativos e expõe visão apequenada do desafio da mobilidade metropolitana

Índice


Contextualização

A despeito da coletiva envolvendo Claudia Woods, diretora geral da Uber no Brasil e o atual secretário dos transportes metropolitanos, Alexandre Baldy (Progressistas), a verdade é que combinar rotas de transporte público com serviços como Uber e 99 já era possível.

Legenda: Vídeo da coletiva de imprensa realizada em 14/11/2019, no canal oficial do Governo do Estado de São Paulo no YouTube

Considerando que a Uber ainda está fazendo o rollout da funcionalidade, denominada Uber Transit, e que nem todos os clientes possuem acesso ao planejador que combina rotas do transporte público com os serviços da empresa, decidimos fazer algumas considerações. A seguir, você confere o que nós pensamos sobre o anúncio feito pelo governo e também pode conhecer alguns aplicativos consagrados para planejamento de rotas que já possuem a funcionalidade hoje mesmo, sem a necessidade de depender da Uber.


O governo acertou?

Em primeiro lugar, é essencial que o governo entenda que transporte e uso do solo caminham juntos, sem isso, corremos o risco de comprarmos um discurso que foi feito para cidades estadunidenses e, com ele, um “pacote de soluções tecnológicas” que não está adequado à realidade da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).

Dentro do Coletivo, nós temos duas correntes: uma corrente considera que o governo está atirando no próprio pé, estimulando o fortalecimento de um serviço concorrente, quando deveria estar fortalecendo o papel da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos, responsável pelos ônibus intermunicipais das regiões metropolitanas do estado); de outro lado, uma corrente considera que o Uber não é um concorrente direto, pois é um serviço muito caro, ainda que, o discurso essencialmente favoreça uma plataforma concorrente, porque dá a ideia de que carro dirigido por um subempregado é um meio de transporte superior e uma solução válida, quando este não passa de um transporte de nicho.

Seja como for, o Coletivo externa sua preocupação com a possibilidade de que a Uber contribuía para provocar uma erosão no transporte público, que não ocorreria de forma generalizada, mas nos casos em o uso do solo é pior, agravando os problemas de mobilidade, ao reforçar a dicotomia entre uma cidade acessível por carro e uma cidade acessível por transporte público e modos ativos (a pé e bicicleta).

Com a coletiva de imprensa, João Doria (PSDB), parece ter reforçado a narrativa de que é uma figura adepta do liberalismo econômico. Considerando os ataques que o governador já vem sofrendo por parte de partidários da extrema-direita, notadamente seguidores de Jair Bolsonaro (em processo de desfiliação do PSL), qualquer declaração contrária à iniciativa da Uber seria de grande alento e municiaria os opositores dentro do espectro da direita. A coletiva só reforça a ideia de que Doria está cimentando seu próximo salto na carreira política, mirando o Palácio do Planalto, assim, caso a coletiva não fosse feita, o atual governador perderia uma oportunidade de fortalecer sua imagem.

O atual secretário foi assertivo quando disse que temos desafios ligados ao crescimento urbano e econômico, contudo, na visão do COMMU, tais desafios não passam pelo enaltecimento de negócios como aqueles prestados pela Uber.

Outro aspecto nevrálgico é que não houve uma parceria de fato. A Uber está utilizando dados públicos de forma indireta, uma vez que já se sabia da parceria entre ela e a startup israelense Moovit desde setembro. O governo surfou na onda, apenas. Todo o ecossistema de dados públicos que alimenta a plataforma do Moovit e contribui para reforçar as comunidades que dão feedbacks e ajudam no aprimoramento coletivo e voluntário dos dados, foi, na verdade, o que possibilitou o Uber Transit, ou seja, o governo tem méritos por apresentar um determinado grau de transparência, mas não só ele não tem aprimorado suas ferramentas de transparência voltadas ao transporte, como a disponibilização de dados GTFS (padrão aberto adotado pelo Google) mais completos. Não existe nenhuma exclusividade na solução, ao contrário do que foi implicado durante a coletiva.

A Uber vai ganhar mais dinheiro às custas do histórico abandono da EMTU, que embora não tenha sido fomentado pela empresa de tecnologia, com certeza foi muito bem aproveitado. Soma-se à postura absurda do governo o escandaloso serviço seletivo da Metra, baseado na plataforma UBus, ligada aos mesmos oligarcas que controlam a Metra e outras empresas de transporte na região do Grande ABC.

A ideia de escolha, reiterada durante as falas da representante da Uber e do secretário, não passa de uma ilusão: quanto pior a infraestrutura e a desigualdade, menos escolhas. E, ainda que Claudia Woods fale no aprimoramento de deslocamentos entre o ponto A e o ponto B, a realidade é muito mais complexa, porque o deslocamento direto entre dois pontos só seria possível via teletransporte. De forma muito simples, podemos esquematizar um deslocamento direto (utópico) da seguinte maneira:

A >------------------------------------------------------------> B

Numa região metropolitana que se expandiu desordenadamente, impulsionada por loteamentos clandestinos e irregulares, a tendência é outra, com viagens menos diretas e muitos gargalos. Quanto pior a situação (e, possivelmente, as desigualdades socioespaciais), mais problemáticos os pontos intermediários. Uma esquematização mais realistas dos deslocamentos entre o ponto A e B poderia se dar da seguinte maneira:

A >---------- A¹ ------- A² ---------- B³ ---- B² ------ B¹ ---> B

Finalmente, para encerrar esta seção, cabe ainda apontar que o exemplo dado pela diretora da Uber foi de Denver, uma cidade estadunidense muito diferente de São Paulo. Podemos, claro, caminhar para algum tipo de integração tarifária entre a plataforma e os serviços de transporte do estado, mas considerando o abandono da EMTU, que não tem conseguido implantar a infraestrutura necessária, bem como a fragmentação e profusão de sistemas municipais que raramente prezam pela boa qualidade técnica no desenho de suas redes e especificações veiculares, fica nítida a necessidade de que o Governo do Estado olhe menos para a Uber e mais para o transporte público.


O amanhã, hoje

Se você utiliza um concorrente da Uber, como a 99, não quer esperar pelo rollout da Uber ou então simplesmente deseja possuir mais opções na palma da mão, esta seção apresenta dois aplicativos que já podem ser utilizados para planejar rotas: Citymapper e Moovit.

O primeiro aplicativo que merece ser destacado é o Citymapper. Seus pontos positivos são a interface, muito intuitiva e agradável, mas que infelizmente ainda apresenta alguns elementos em inglês. Provavelmente o detalhe mais legal do Citymapper é poder controlar o comportamento das sugestões envolvendo sistemas de compartilhamento:

Legenda: “Pro” ou “Lite”: Citymapper permite customizar sugestões envolvendo carros e bicicletas compartilhadas (ícone da engrenagem na tela com a origem e o destino da viagem)

Para obter um resultado análogo ao Uber Transit, basta utilizar a opção “Pro”. Em nossos testes, identificamos que o carro por aplicativo podia aparecer uma ou duas vezes na viagem, assim, em situações nas quais as estações de embarque e desembarque estavam mal alimentadas pelo serviço de ônibus, o aplicativo recomendava a chamada de um carro. No exemplo abaixo, envolvendo um deslocamento entre a Praça Dr. Sampaio Vidal e o ParkShoppingSãoCaetano, a má alimentação da Estação Oratório da Linha 15-Prata (atualmente Vila Prudente-Jardim Planalto, com obras até São Mateus em andamento) produziu uma sugestão com viagens de Uber na primeiro e último trechos:

Legenda: Simulação entre centro da Vila Formosa e shopping em São Caetano

A simulação de uma viagem entre a Estação Itapevi e o Shopping Tamboré, tratado no exemplo como um possível ponto de interesse, resultou na sugestão da Linha 8-Diamante (Julio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) combinada com algum carro da Uber na Estação Carapicuíba. Considerando uma média de R$ 10 para o UberX, o custo por km ficou em R$ 1,33 ante R$ 0,32 da CPTM (13,56 km separam as estações Itapevi e Carapicuíba).

Legenda: Sugestão combinando transporte público e uma viagem de Uber simulada via Citymapper

Cabe salientar que o Citymapper, diferentemente do Moovit, não possui a maior parte dos sistemas de ônibus da Região Metropolitana de São Paulo, além disso, visualizar quais sistemas além do paulistano estão disponíveis não é trivial. Identificamos que o Citymapper possui linhas de ônibus dos municípios de Mogi das Cruzes e São Caetano do Sul, além das linhas da SPTrans (São Paulo Transporte) e da EMTU.

No caso do Moovit, é possível filtrar quais meios de transporte serão considerados pelo planejador, sendo exibidas opções como “Pedale”, “Patinetes elétricos” e “Carro”, que podem ser ligadas ou desligadas conforme a necessidade do momento. Dois aspectos chamaram a atenção: (i) habilitar carros significa também exibir carros por aluguel, como os veículos da Zazcar (cobrança por km, combustível e seguro já incluídos) e; (ii) o planejador agrupa também as rotas sugeridas com base nos dois sistemas de pagamento mais abrangentes: BOM, aceito nos ônibus intermunicipais da EMTU e no sistema de trilhos, e Bilhete Único, aceito nos ônibus municipais da SPTrans e no sistema de trilhos.

Atualização (22/11/2019): viagens do serviço Waze Carpool também podem ser listadas pelo Moovit.

Atualização (31/01/2020): conforme notícias (exemplo de uma). os serviços da Zazcar foram encerrados.

Legenda: Filtros do Moovit (esq.) e opção de carro por aluguel no planejador de rotas (dir.)

A simulação entre o ParkShoppingSãoCaetano e a Praça Dr. Sampaio Vidal também foi realizada com sucesso, sendo sugeridas duas opções envolvendo Uber: trajeto completo e mesclando com o transporte público. A presença dos ônibus municipais de São Caetano do Sul também ficou evidente, com a sugestão de uma das linhas circulares da cidade aparecendo na lista para múltiplas rotas, incluindo aquela combinada com os serviços da Uber.

Legenda: Simulação de rota e visualização do trajeto sugerido

O Moovit não possui uma interface tão refinada quanto a do Citymapper, mas possui um roteador coerente e capaz de calcular a tarifa considerando as integrações e dois dos principais cartões utilizados na região metropolitana. Para rotas mesclando Uber e transporte público, a estimativa de custo é exibida dentro da ficha com os detalhes do trajeto. O aplicativo já é um velho conhecido do Coletivo, tendo aparecido no artigo “O smartphone pode ajudar quem usa transporte coletivo?”, publicado em 2015 (!).


Colaborações: Rafael Calabria, que fomentou a discussão sobre a coletiva de imprensa



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