Por Caio César | 11/01/2020 | 6 min.
João Doria insiste na narrativa de um estado minimizado, incapaz de realizar investimentos de vulto e direcionar de maneira qualificada e estruturante o crescimento e manutenção dos tecidos urbanos da Região Metropolitana de São Paulo. O governador pode agradar a uma parcela do eleitorado ao defender a lobotomia do aparato estatal, mas, na prática, as reações do eleitorado nem sempre são compatíveis com sua adesão ao discurso. É fácil vociferar contra o estado munido de argumentos frágeis, mas é muito mais difícil combater o produto destes argumentos: desamparo social, deseconomias em escala, perda de eficiência na burocracia e redução da capacidade de gestão e planejamento. A defesa da ideia de um estado mínimo é recorrente na política do estado de São Paulo. O Diário de Mogi, jornal sediado em Mogi das Cruzes, recentemente cedeu espaço para que Dirceu Cardoso Gonçalves da Aspomil (Associação de Assistência Social dos Policiais Militares) defendesse uma noção deturpada da Constituição Federal de 1988. Segundo ele, o estado deveria ser responsável apenas por segurança pública, educação e saúde, pois a Constituição assim exige. Nada mais falso, já que temas como habitação e salário dignos, por exemplo, também estão amparados pela Constituição e leis complementares que já estavam previstas desde 1988 e foram sendo promulgadas nas décadas seguintes.
A Constituição ainda prevê a função social da propriedade, que não costuma ser cumprida pelo Poder Judiciário em suas decisões, que recorrentemente a ignoram, supervalorizando a propriedade privada e o reforço às assimetrias de poder, renda e patrimônio. Ao defender essa noção inocente e distante da realidade, a Associação contribui para fomentar um país mais desigual, o que consequentemente não tornará a vida de seus associados policiais mais fácil ou melhor.
Ironicamente, o mesmo jornal tem sido protagonista na veiculação de notícias detalhando as articulações da classe média e da burguesia da região, que têm buscado combater a proposta da Artesp, uma agência reguladora que recorrentemente se dobra aos interesses privados, de instalar mais um pedágio como parte de uma estratégia de concessão e busca por investimentos privados na rodovia Mogi-Bertioga, única ligação sem pedágios entre a Região Metropolitana de São Paulo e a Região Metropolitana da Baixada Santista. Resumidamente, a possibilidade de instalação de um pedágio na Mogi-Dutra como parte da concessão não foi bem recebido pelo Alto Tietê.
Ora, o eleitorado precisa se decidir. O atual governador deixou claro que reduziria o tamanho do estado. O atual governador, após uma série de trapalhadas na prefeitura da capital, também deu sinais muito claros de que buscaria proximidade com a iniciativa privada para vender a ideia de uma atmosfera positiva para negócios. Ficou evidente que as ações concretas não se dariam no âmbito do planejamento e da justiça social (que poderia envolver uma reforma tributária que, a despeito do senso comum, poderia fomentar o consumo e reduzir o caráter regressivo dos impostos, além da permissividade com relação aos setores mais abastados da sociedade brasileira). O pedágio é apenas a ponta do icebergue. Também ironicamente, o mesmo jornal navega por mares traiçoeiros quando distorce o papel da Linha 11-Coral (Luz-Estudantes) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). Como já discutimos no passado, O Diário Mogi, em mais de uma oportunidade, superestimou o papel de Mogi das Cruzes a partir de uma visão bairrista e provinciana, exigindo investimentos bilionários, sem qualquer preocupação sobre a origem dos recursos e sobre o irreversível fenômeno da metropolização. O jornal precisa se decidir: abre espaço para a defesa de um estado preocupado apenas com saúde, educação e segurança pública, mas rejeita um pedágio na região e deseja uma linha de trens comutadores que atenda Mogi das Cruzes com trens confortáveis e, de preferência, com o mínimo contato com as periferias pobres situadas entre o município e a capital paulista, valendo-se para tanto da romantização do passado. O eleitorado paulista, principalmente a parcela que vive nas cidades pequenas e médias (que parecem se orgulhar de suas posições retrógradas e reacionárias), precisa reavaliar suas posições político-ideológicas. Não faz sentido defender um determinado modelo de estado, valendo-se de premissas equivocadas e depois reclamar sobre seus efeitos perversos. O passado não nos deixa mentir, pois o eleitorado em questão…
- …defendeu o BNH em detrimento de uma política habitacional que abrangesse trabalhadores precários e informais;
- Defendeu a privatização da RFFSA em detrimento de uma política de infraestrutura ferroviária nacional e de um planejamento que incluísse as inúmeras cidades que ficaram pelo caminho, carentes de transporte e políticas de desenvolvimento socioeconômico — muitas das estações e linhas terminaram em ruínas;
- Defendeu pedágios em rodovias tecnologicamente modernas, como o sistema Anchieta-Imigrantes e o sistema Anhanguera-Bandeirantes, sempre escondendo este fato nos anos seguintes;
- Foi e é conivente conivente com a poluição dos rios e córregos em troca de um pretenso progresso, ao mesmo tempo que aceitou a política de saneamento básico da Sabesp, que privilegia acionistas em detrimento do povo paulista.
Por tudo isso, é inequívoco que o maior impulsionador do desmonte das ferrovias e do surgimento de favelas e loteamentos irregulares ou clandestinos foi essa noção obtusa do papel do estado. A mesma que não raramente é inocentada a partir da atribuição de culpa aos mesmos grupos vulneráveis que se encontram nas franjas: pobres, negros e nordestinos, que são chamados de vagabundos, preguiçosos, sujos e outros adjetivos terríveis. De nada adianta reclamar de um possível novo pedágio quando todas as ligações entre metrópoles já são reféns de pedágios e não contam com sistemas de transporte adequados para as escalas regional/macrometropolitana e metropolitana.
Se tem algo que a ampliação de um estado mínimo, tanto na esfera federal, quanto na esfera estadual, tem mostrado, é que ele é mínimo apenas para quem dele realmente necessita. Se esperarmos a iniciativa privada planejar e construir toda a infraestrutura necessária, vamos amargar ou agravar os mesmos problemas de sempre. Vale a pena? Faz sentido? Já não temos provas suficientes de que a redução da máquina vai apenas quebrá-la, em vez de aperfeiçoá-la?
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