Por Caio César | 12/07/2020 | 11 min.
Índice
Justificativa
Considerando as últimas discussões que realizamos internamente a respeito do transporte sob demanda, uma das possibilidades levantadas é a de que o modelo do fretamento (quando pessoas ou grupos de pessoas contratam um ônibus para se deslocarem entre pelo menos dois pontos, a partir de necessidades em comum) possui o espaço e a força que conhecemos, sendo onipresente na capital paulista, devido à situação da malha de transporte sobre trilhos.
Francamente, estaríamos mentindo se disséssemos que a ideia de contratar um ônibus para viajar entre o litoral ou o interior do estado durante os dias úteis é novidade. Não é, pelo contrário, é relativamente fácil encontrar pessoas e empresas relacionadas ao tema. Fretados entre Campinas e São Paulo, por exemplo, são comuns. Há ainda serviços de fretamento que atendem públicos universitários, como alunos do campus Mogi das Cruzes da UMC que residem nas cidades litorâneas — em 2016, um acidente na Mogi-Bertioga vitimou 18 estudantes que voltavam de Mogi para São Sebastião.
Se considerarmos a pressão exercida nas escalas metropolitana (caso de Alphaville) e regional ou macrometropolitana (caso envolvamos as regiões metropolitanas da Baixada Santista, Campinas, Vale do Paraíba e Litoral Norte, Sorocaba e aglomerações urbanas como a de Jundiaí), a regulamentação do transporte sob demanda na capital pode não ser a melhor maneira de atacar o problema.
Uma de nossas hipóteses é que a solução continue passando pelo famigerado trio uso e ocupação do solo, planejamento e infraestrutura. Se considerarmos Alphaville ou a região compreendida entre Campinas e Jundiaí, será que o atual formato de operação das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí) não contribui para a exacerbação do problema?
Em outras palavras, por mais que possamos discutir os equívocos urbanísticos e legais em torno de uma verdadeira “cidade de contorno” (tradução direta do termo norte-americano edge city, cunhado por Joel Garreau) como é o caso de Alphaville, nos parece nítida a existência de uma dinâmica que está dada (i.e. que não pode ser negada) e um conjunto relativamente complexo de relações entre o tecido produtivo, o mercado de trabalho e os moradores de altíssimo poder aquisitivo (estes últimos habitando residências unifamiliares em comunidades de acesso controlado, chamadas na literatura em inglês de gated communities, que não possuem características adequadas para atendimento por sistemas regulares de transporte público).
O aparecimento de condomínios e loteamentos fechados em São Paulo faz parte de um processo mais amplo, descrito por Caldeira (2001:211–340), que caracteriza um novo padrão de segregação espacial e desigualdade social nesta cidade, que pode-se tomar como representativo de outras localidades onde estas modalidades habitacionais aparecem. Este novo modelo de segregação substitui, aos poucos, o padrão dicotómico centro-rico/periferia-pobre, muito comum no contexto urbano latino-americano de modo geral.
Discutindo a infraestrutura
Infraestrutura ferroviária
Infelizmente, temos um quadro que, se não é de completa estagnação, produz efeitos suficientemente perversos para que se assemelhe ao imobilismo completo. Com isto, queremos dizer que as melhorias realizadas na Linha 8-Diamante ao longo das últimas décadas não foram suficientes para fazer frente aos desafios urbanos e suburbanos que foram se constituindo.
Se, por um lado, há falta de capacidade para fornecer um serviço de metrô em condições menos humilhantes, evidencia-se a completa ausência, por outro lado, de um serviço de caráter regional-suburbano capaz de atender as diferentes faixas de renda que compõem as nossas classes médias, além de deslocamentos turísticos/recreativos de um público mais difuso.
O mesmo poderia ser dito sobre a Linha 7-Rubi, com o agravante de que a situação naquela região é muito mais complexa, uma vez que envolve duas modernas rodovias que operam como um único sistema, na forma da concessão AutoBAn da CCR (o nome alude a Anhanguera e Bandeirantes, as duas rodovias que fazem parte da concessão), um hiato de atendimento sobre trilhos em toda a Região Metropolitana de Campinas, que deixou de ser atendida por trens de longo e médio percurso, além de ter perdido um incipiente sistema de metrô leve (o fracassado VLT de Campinas, implantado de maneira controversa durante o mandato de Orestes Quércia, na década de 1980) e diferenças significativas em relação ao meio físico, que impõe restrições para ocupação devido ao relevo, afetando principalmente as parcelas mais pobres.
Em suma, podemos dizer que a ausência de trens regionais que orbitem em torno das metrópoles de Campinas e Sorocaba com direção à capital paulista está produzindo efeitos negativos, tais como:
- Proliferação de sistemas de transporte pouco regulados (como são as operações de fretamento);
- Manutenção de ligações rodoviárias sobre pneus inflexíveis e operadas pela iniciativa privada sem grande interferência da Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), como são as linhas de ônibus rodoviários que partem das rodoviárias da Barra Funda e do Tietê;
- Estímulo excessivo ao uso do automóvel; e
- Redução do nível de serviço de rodovias estratégicas (redução gradativa das velocidades máximas, com as rodovias se comportando como avenidas devido aos congestionamentos frequentes).
Temos um cenário em que as linhas 7 e 8 não sofrem melhorias, em que trens regionais (também chamados de trens intercidades) se transformam em promessas não cumpridas e em que não existem opções seletivas de transporte que não se resumam em “mofar no trânsito com conforto”.
Há saídas, entretanto.
Se o governo realmente não possui capacidade de implantar ligações regionais de alta performance, com velocidades médias competitivas em comparação com o automóvel, só resta a alternativa de maximizar os esforços na requalificação da infraestrutura ferroviária existente, otimizando o uso de cada m² disponível.
Voltamos, mais uma vez, ao desagradável cenário da solução conciliadora, que já foi esboçada em artigos sobre as linhas 7-Rubi e 12-Safira (Brás-Calmon Viana): manter a premissa de uma operação com frequência, capacidade, conectividade e prioridade típicas de um sistema de metrô e, simultaneamente, manter a premissa de uma operação com conforto e amenidades típicas de um trem regional.
Considerando que, exceto pelo Expresso Leste da Linha 11-Coral (Luz-Estudantes) e pela novíssima Linha 13-Jade (Eng. Goulart-Aeroporto·Guarulhos), as linhas da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) operam em superfície, a adaptação, modernização e reconstrução de estações existentes está longe de ser tão desafiadora quanto implantar uma malha de trens regionais que precisa não ter apenas capilaridade similar, mas também desempenho muito superior.
Na CPTM, perseguindo a razoabilidade, é completamente racional defender a extensão das plataformas e do número de carros dos trens. No caso da Linha 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú), que possui diversas estações baseadas num mesmo projeto-tipo, por exemplo, a CPTM precisou estender as plataformas para que pudessem acomodar os trens-unidade mais novos, como as séries 7000 (construída entre 2009 e 2011) e posteriores.
A partir de estudos de demanda com dados pré-existentes, como são os dados da Pesquisa Origem Destino de 2017, seria possível agrupar as estações em diferentes níveis de prioridade, racionalizando os investimentos no tempo e no espaço.
A readequação do material rodante pode preservar boa parte dos trens metropolitanos existentes e nem mesmo precisaria envolver toda a frota, não só pelas particularidades das linhas 11 e 13, que fogem do escopo deste artigo, mas pela possibilidade da demanda de passageiros, até mesmo em virtude da performance mais baixa, condicionada aos limites da infraestrutura do Trem Metropolitano, ser menor do que a esperada para uma rede de trens regionais independentes.
Considerando que as linhas 11 e 13 correspondem a aproximadamente 63 km de trilhos da rede de 272 km da CPTM, restariam ainda cerca de 209 km de malha para a exploração de serviços de caráter dual, metropolitano-macrometropolitano, com mais de 40 estações. Não é pouca coisa e, com a economia oriunda da utilização de uma faixa de domínio já operacional, seria possível focar na recuperação dos atendimentos estratégicos que existiam antes de a RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima) ser extinta e inventariada, especialmente Campinas e Sorocaba.
Se o governo do estado tivesse uma postura um pouco mais visionária, poderia parar de colocar a CPTM em segundo plano e, assim, minorar dois problemas com uma única solução, talvez até três, considerando a disposição do atual presidente da CPTM, Pedro Moro, de flexibilizar a operação das linhas. Será que a Linha 9-Esmeralda não poderia ter os atendimentos duais operando em Y, com alguns trens tendo Júlio Prestes como destino (o que permite o cômodo acesso à Barra Funda) e outros operando entre a Sub-região Oeste e a Zona Oeste da capital, com atendimentos como Barueri-Pinheiros e Barueri-Morumbi, por exemplo?
O nome do atendimento de caráter regional/macrometropolitano, mais confortável, nós até já temos: macrô.
Infraestrutura rodoviária
Adicionalmente, sempre há a opção de intervenções nas rodovias. Tanto o sistema Anhanguera-Bandeirantes quanto a rodovia ditador Castello Branco possuem características favoráveis para a priorização dos ônibus. Faixas exclusivas e estações de embarque, desembarque e transferência já deveriam estar em discussão, pelo menos, desde 2014, quando Thierry Besse, então assessor de infraestrutura da Secretaria da Casa Civil admitiu que a saturação das rodovias pode atingir o nível F já em 2030, o que significaria que se tornariam um “estacionamento a céu aberto”.
Passados seis anos, nenhum trem regional saiu do papel e o Rodoanel também não ficou pronto ainda. A promessa de entrega da obra em 2019, como é praxe, não foi cumprida.
Considerando o quadro, um sistema mais bem organizado de transporte regional não seria nenhum exagero e poderia contemplar diferentes serviços. A retomada da operação de linhas como a 524, que conectava a rodoviária da Barra Funda com as áreas mais dinâmicas da porção barueriense de Alphaville, poderia ser feita com grandes vantagens, uma vez que a priorização viária reduziria o tempo de viagem, o estresse associado aos congestionamentos e elevaria a confiabilidade.
Conclusão
Assim como nas discussões anteriores, este artigo não se propõe a esgotar as possibilidades, até porque, os gargalos existentes são consideráveis e, de antemão, elencamos alguns dos principais:
- Necessidade de máxima utilização da faixa de domínio, com implantação de novas vias, reposteamento e reinstalação de sistemas de telecomunicações e sinalização;
- Necessidade de redução dos circuitos de via, para garantir intervalos
melhores, de forma a não prejudicar o horizonte de expansão da oferta
de lugares do Trem Metropolitano;
- Este gargalo também se relaciona com os sucessivos atrasos na implantação de novos sistemas de sinalização (veja aqui, aqui e aqui), como o CBTC (Communications-Based Train Control, ou Controle de Trens Baseado em Comunicação, em tradução livre para o português), previsto para as linhas 8-Diamante, 11-Coral e 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra);
- Necessidade de ampliação ou reconstrução de terminais, considerando, por exemplo, que o terminal central de Barueri não possui espaço ocioso ou que a Estação Antonio João não possui terminal de qualquer tipo;
- Necessidade de construção de novas estações, muito latente mesmo em atendimentos do Metropolitano já existentes hoje, como é o caso de Jundiaí, para não falarmos das estações atuais do Trem Metropolitano que ainda não foram reconstruídas.
É preciso comprar trens, construir estações e terminais, garantir uma operação harmoniosa em relação aos contratos já celebrados, além de buscar a exploração de empreendimentos associados desde o princípio, seja para redução dos custos de implantação e operação, seja para dinamização dos locais de conexão, com oferta de comércio, serviços e moradia. A construção de edificações de uso misto, além de proporcionar receita acessória contínua, pode ser benéfica para o trânsito, uma vez que também evita viagens e reduz a pressão sobre o sistema de transporte, consequentemente reduzindo a pressão por aumento da capacidade/hora.
A reflexão proposta por nós ao longo do artigo consistiu na ideia de que, feitas as intervenções sugeridas e, considerando o público de condomínios de baixa densidade, além da classe média disposta a buscar alternativas aos ônibus fretados, seria muito mais palatável discutir sistemas sob demanda voltados a atender os hubs de transporte existentes, com linhas curtas, bolsões de estacionamento estratégicos e lógica de funcionamento fortemente atrelada à oferta de lugares das novas ligações regionais sobre trilhos e sobre pneus. Os serviços poderiam, inclusive, terem autorização para entrada nos condomínios.
É preciso amadurecer e equilibrar a discussão. Se não o fizermos, tememos que possamos, nós, o conjunto da sociedade, corrermos o risco de assistirmos a implantação de operações deficientes de ônibus sob demanda, que poderão ofuscar os problemas existentes e provocar graves erosões nos sistemas tradicionais em funcionamento.
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