Por Caio César | 14/07/2020 | 6 min.
Admitimos que somos um coletivo de indivíduos muito menor e, sem falsa modéstia, menos relevante do que o Instituto de Engenharia (fundado em 1916), ainda assim, como coletivo de indivíduos, o COMMU faz parte da sociedade civil organizada. Temos convicção que as discussões envolvendo temas caros à mobilidade e às cidades precisam ser mais inclusivas, contemplando a diversidade étnica-racial e de gênero tão presente no tecido social. Finalmente, acreditamos que o Instituto de Engenharia, por sua trajetória, não encontrará entraves para incluir mais mulheres em futuros debates e seminários. O evento do Instituto de Engenharia foi transmitido pelo YouTube.
Recomendamos ainda que você assista o vídeo compartilhado no Instagram pela Dra. Jéssica Lima.
Nota de repúdio ao encontro do Instituto de Engenharia
No início de dezembro de 2016, mais de 100 mulheres, entre especialistas e atuantes nas discussões sobre a cidade, se reuniram no seminário “Mobilidade urbana e a perspectiva das mulheres” para debater os principais desafios de mobilidade a partir da perspectiva de gênero. O evento foi, inicialmente, idealizado em resposta a um encontro de mobilidade organizado pela Câmara de Vereadores de São Paulo, que aconteceria sem a presença de mulheres no debate. Desde então, apesar dos esforços e das várias manifestações, em diversos setores da sociedade, que apontam o quanto é inadmissível negligenciar a paridade de gênero, em todos os âmbitos, nos deparamos com situações, como o evento do Instituto de Engenharia, a ser realizado em 15 de julho de 2020, com a presença de 12 homens brancos à mesa, para debater o transporte público.
A necessidade da paridade de gênero nas discussões acerca da mobilidade vai muito além de uma questão de representatividade, como alguns podem tentar argumentar a princípio. Mobilidade não é simplesmente a engenharia de trânsito aplicada às cidades. Mobilidade refere-se primordialmente à forma como as pessoas e coisas se deslocam na malha urbana, seus fluxos e os desafios que resultam destes deslocamentos que se entrelaçam com a geografia, as condições sociais e a apreensão do espaço pelas pessoas e por aqueles que precisam fazer a gestão desses fluxos. Nesse sentido, é fundamental entender o transporte público para além da relação entre ofertas de serviço e escolhas baseadas em distâncias. As cidades nem sempre são projetadas a partir das necessidades das pessoas, em especial as mulheres, e por esta razão, essas necessidades, que devem ser discutidas com a mesma importância e destaque, acabam sendo ignoradas no planejamento de políticas públicas.
Os debates influenciam a forma com que as cidades são pensadas e projetadas, porém, a organização de eventos como esse não correspondem à diversidade e pluralidade encontrada em nossa sociedade, bem como, não responderão às necessidades de inúmeras mulheres e a pluralidade e diversidade de pensamentos. Pesquisas já apontam que as mulheres têm padrões de mobilidade diária mais complexos do que os homens, e também tendem a fazer, com mais frequência do que os homens, viagens combinadas para propósitos múltiplos dentro de um mesmo deslocamento. Exemplo clássico é o de levar as crianças à escola, no caminho para o local de trabalho, ou parando no mercado, a caminho de casa. São os chamados papéis de cuidado, que ainda são protagonizados pelas mulheres, em nossa sociedade. Alguns dados:
A representatividade das diferenças e particularidades que esta parcela da população apresenta pode ser observada por meio dos dados a seguir:
- Viagens a pé, em São Paulo-SP:
- 32,5% Mulheres
- 28,9% Homens
- Viagens por transporte coletivo em São Paulo-SP:
- 43,5% Mulheres
- 34,7% Homens
- Viagens dirigindo automóvel em São Paulo-SP:
- 12,2% Mulheres
- 23,7% Homens
Esses dados devem ser avaliados em conjunto com as diferentes especificidades nos deslocamentos e, principalmente, na forma como o gênero influencia na interação entre as pessoas e o ambiente. Nesse sentido, estatísticas de infrações de trânsito, de acidentes envolvendo pedestres, situações de assédio em transporte coletivo, entre outras devem ser avaliadas de acordo com a representatividade daqueles que vivenciam estas situações, em relação não só a gênero, mas também à raça e vulnerabilidade social.
As cidades foram construídas à revelia do bem-estar e da necessidade de contemplar a todas as pessoas, apartando mulheres de todas as etnias e classe sociais, mulheres e homens negros, crianças, pessoas com deficiência e pobres, das principais decisões sobre a sua constituição. A visão de mobilidade, infelizmente, acompanhou essa construção e como resultado ainda se observa uma concepção atrasada no planejamento da gestão destes fluxos, especialmente em relação aos transportes públicos e conexões com outros modais.
Uma análise rápida sobre a composição dos gabinetes de infraestrutura e transportes dos governos nacionais e subnacionais é suficiente para constatar o predomínio massivo de homens brancos, de classe média ou mesmo ricos, com educação formal, nesses espaços. Como resultado, as questões apontadas acima não são consideradas.
O fundamento do processo participativo é justamente dar visibilidade à população, de modo que as decisões de gestão sejam reflexo de uma representatividade efetiva. Por esta razão, não faz sentido parcelas significativas serem excluídas nesse processo de planejamento de políticas públicas. Esse modelo tecnicista, puramente focado na engenharia de tráfego, não alcança as reais necessidades enfrentadas diariamente, exatamente porque não considera de forma diferenciada as necessidades da população. Por esta razão, é inconcebível aceitarmos que a exclusão e a desigualdade sejam as marcas dos processos de construção da cidade. Queremos uma cidade para todas as pessoas que habitam. O mesmo se aplica às discussões e à produção de políticas públicas relacionadas à mobilidade urbana. Não há como evoluir na direção de cidades mais humanas, justas e seguras, enquanto as decisões estiverem centradas apenas na tecnocracia e forem tomadas, apenas, por homens brancos. A infraestrutura e os serviços de transporte devem ser projetados para atender às necessidades de cidadãs e cidadãos de forma equitativa, acessível e responsiva, a todos grupos. Para atingir esses objetivos, o planejamento, a concepção, a construção, a operação e a manutenção das infraestruturas e dos serviços de transporte devem envolver a participação de todas as partes interessadas.
Assim, é urgente diversificar os espaços de discussão e promover processos participativos, de forma a democratizar a mobilidade. Para isso, faz-se necessário assegurar que as vozes das mulheres sejam de fato ouvidas, nas discussões e planejamento urbano, levando-se em conta todas essas questões, garantindo políticas que promovam espaços públicos sustentáveis e inclusivos, não só para as mulheres, mas, sim, para toda a sociedade. Nós, cidadãs, cidadãos e entidades da sociedade civil, deixamos registrado, por meio desta nota, nosso repúdio em relação à composição da mesa do evento. Solicitamos que sejam tomadas as medidas necessárias para que a equidade de gênero e racial sejam sempre respeitadas, pelo Instituto de Engenharia, neste e nos demais seminários e debates que venha a organizar ou apoiar.
Confiando no comprometimento individual e da organização pela construção de uma sociedade melhor e mais equânime, nos despedimos respeitosamente,
14 de julho de 2020
- aPezito
- Bike Anjas
- CalçadasSP
- Canto Cidadão
- CaminhaRio
- Caraminhola
- Carona a Pé
- Cidade Ativa
- CidadeaPé - Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo
- Ciclocidade
- Comitê Políticas Públicas e Cidadania Grupo Mulheres do Brasil Ribeirão Preto
- COMMU - Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana
- Como Anda
- Desvelocidades
- DVotto - Consultoria para Cidades
- Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento de São Paulo - IAB-SP
- Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil)
- Instituto Corrida Amiga
- Metrópole 1:1
- Milalá - A Liberdade de Ir e Vir
- MobiCicleta Coletivo de Ciclomobilidade de Ribeirão Preto
- Mobicidade Salvador
- NossaBH
- Ocupa Baby
- Pé de Igualdade
- Pedal na Quebrada
- REMS - Rede Esporte pela Mudança Social
- Rede MAS - Mulheres Atuando pela Sustentabilidade
- UCB - União de Ciclistas do Brasil
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