Campanha por ciclovia que retira espaço dos trens continua preocupante

Por Caio César | 25/07/2020 | 9 min.

Legenda: Interior de trem estacionado na Estação Estudantes
Jornal O Diário de Mogi segue perpetuando desinformação. O COMMU rejeita veementemente as comparações realizadas e esclarece que os conflitos entre os trens e o tecido urbano poderiam ter sido evitados se o mesmo jornal não tivesse envenenado a opinião pública em torno da implantação de bondes modernos no lugar dos trens pesados

Em 24 de julho de 2020 a repórter Larissa Rodrigues d’O Diário de Mogi lançou um texto com a seguinte manchete “CPTM cede faixas para ciclovia na capital”, que apesar de não ter saído no site do jornal até a publicação deste artigo, circulou pelas redes sociais, despertando mais uma vez a nossa preocupação. Foi a quarta reportagem em menos de uma semana (as anteriores foram “Secretários apoiam projeto para ciclovia entre César de Souza e Jundiapeba”, publicada no dia 23, e “Secretário aprova sugestão de ciclovia entre Jundiapeba e César de Souza”, publicada no dia 21).

Legenda: Problemática reportagem assinada por Larissa Rodrigues para O Diário de Mogi. Reprodução a partir do Facebook

Conforme texto-resposta publicado recentemente, nós manifestamos nossa solidariedade com relação ao pleito de uma ciclovia que articule deslocamentos entre as porções leste e oeste de Mogi das Cruzes, no entanto, somos veementemente contra a retirada de espaço da faixa de domínio e não podemos normalizar a distorção da realidade. Não é justo com a população que utiliza os trens e também não é justo com as pessoas que militam pela melhoria, expansão e democratização do transporte sobre trilhos no estado de São Paulo.

A reportagem constrói a ideia de que a proposta, elaborada pelo Coletivo MTB - Mogi das Cruzes, Colégio de Arquitetos e pelo arquiteto Paulo Pinhal e apoiada por BiciMogi e Rede Nossa Mogi das Cruzes, não é absurda, pois supostamente intervenções similares já ocorreram ao longo das linhas 3-Vermelha (Corinthians·Itaquera-Palmeiras·Barra Funda) e 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú). A reportagem, no entanto, está incorreta ao omitir a informação de que as ciclovias paralelas e adjacentes às duas linhas possuem natureza muito diferente daquela que está sendo pleiteada em Mogi, afinal, nenhuma delas retirou espaço da faixa de domínio.

Atualização (26/07/2020, 09h59): o jornal publicou um editorial que reforça o mesmo teor de desinformação, afirmando que “o projeto busca repetir em Mogi das Cruzes o que São Paulo está vendo surgir ao longo da linha ferroviária para atender seus habitantes”, no entanto, São Paulo não suprimiu parte da faixa de domínio de linhas centenárias.

No caso da Linha 9, a ciclovia, que foi recentemente concedida, é, na realidade, uma via de serviço da EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia), que é utilizada como ciclovia compartilhada em regime de convênio entre esta e a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. A concessão prevê que a iniciativa privada oferte os serviços que julgar apropriados e cuide da zeladoria; já no caso da Linha 3, a ciclovia foi implantada ao longo do passeio público pela Cia. do Metropolitano e depois teve sua zeladoria cedida à Prefeitura de São Paulo — o caráter compartilhado, baseado na calçada existente ao longo da Radial Leste, tem sido, justamente, a principal objeção de ciclistas e cicloativistas, que lutam há anos para que a prefeitura faça o prolongamento da ciclovia, que hoje termina na Estação Tatuapé, uma vez que a transposição da Av. Salim Farah Maluf, feita pelos trens e veículos motorizados por meio de viadutos, não contempla pedestres e ciclistas na face sul (há calçada no viaduto da face norte).

Legenda: Trecho da MRS imediatamente após a passagem de nível da Estação Estudantes: eletrificação suprimida e subutilização

MRS. Ao omitir os detalhes ligados às duas ciclovias para reforçar a noção de que poderiam servir como “modelo”, a reportagem adquire um caráter panfletário da pior espécie, escamoteando quão absurdo é pleitear a redução da faixa de domínio. Até o momento, O Diário de Mogi evitou tocar no sistema viário, que só foi mencionado em outra reportagem endossando a ciclovia por iniciativa da municipalidade, que está aberta para modificações no âmbito do programa +Mogi EcoTietê. A postura da municipalidade, identificada em outra reportagem d’O Diário, foi particularmente interessante por expor uma visão de “tudo ou nada” em torno da CPTM:

No projeto inicial elaborado pelo grupo, o corredor Leste-Oeste iria desde a Estação Jundiapeba até a estação desativada de César de Souza, sendo todo instalado em uma faixa de cerca de dois metros que pertence à Companhia. Em César, porém, o espaço é da MRS Logística e, por isso, a CPTM não poderia intervir por ali. Sendo assim, a ideia é oferecer como contrapartida a idealização deste trecho por parte da Prefeitura, dentro do que vem sendo elaborado pelo +Mogi EcoTietê.

Não é estranho que o trecho concedido à MRS, justamente o trecho que cruza uma movimentada avenida em nível e atinge o distrito de Cezar de Souza, seja caracterizado como intocável? Francamente, é muito contorcionismo para evitar qualquer conflito com os motoristas, insistindo numa ciclovia que, se construída, ficará isolada entre trens pesados de 8 carros e voltada para fundos de lotes, com pouca ou nenhuma fruição, ao custo da supressão de um espaço que poderia ser utilizado em benefício do transporte sobre trilhos e seus passageiros.

Faz sentido que uma ciclovia tão importante dependa da CPTM, como se a faixa de domínio fosse o único espaço possível?

Permeabilidade. Considerando que a reportagem inclui falas do arquiteto Paulo Pinhal, que concebeu a ideia, aproveitamos o ensejo para salientar que a colocação de gradis não pode ser motivada apenas pela romantização do paisagismo. Em conversa por meio do Facebook do sr. Jair Pedrosa, ligado à Rede Nossa Mogi e ao coletivo BiciMogi, explicamos que a CPTM já precisou recuar ao implantar gradis na região da Lapa, em São Paulo. Na época, moradores reclamaram do aumento do nível de ruído e da invasão de suas casas por ratos e escorpiões.

Dívida. A reportagem retoma a ideia da existência de uma dívida, que também estava presente no manifesto original dos cicloativistas. Concordamos que a CPTM está devendo a modernização (idealmente resultando na reconstrução) de todas as estações do município, mas gostaríamos lembrar o arquiteto Paulo Pinhal e a repórter Larissa Rodrigues de que O Diário de Mogi tem sido uma espécie de artificie do atraso, não só porque rejeitou a conversão do trecho para a operação com VLTs (veículos leves sobre trilhos), que possuiriam convívio e inserção urbana muito superiores, sem prejudicar o atendimento à demanda de passageiros, mas porque parece apreciar a publicação de reportagens que distorcem e disseminam equívocos. Relembre a polêmica em torno do VLT:

  • Um ano sem Tote:
    • Ao elogiar o fundador do jornal, então falecido há um ano, o texto aproveitava para enaltecer o terrorismo informacional perpetuado pela redação contra o VLT. Para o jornal, o fundador iniciou uma correta “rebelião”;
  • O Diário 60 anos: Uma luta pelos trens do subúrbio:
    • Disseminação de noção fantasiosa e ignorante de “trem de subúrbio”, a partir da negligência da metropolização e da complexificação urbana;
    • Desestímulo ao VLT a partir de FUD (sigla em inglês que significa medo, incerteza e dúvida), atacando a tecnologia como proporcionadora de menor segurança, conforto e agilidade;
    • Ideia de ampla legitimidade, sem fornecer provas da existência dela, como se o jornal falasse em uníssono pela população, que na opinião do Coletivo foi envenenada pelo provincianismo e desconhecimento do tabloide mogiano;
  • 60º aniversário de O Diário e um só ideal: servir Mogi e Região:
    • Mais uma vez o jornal enalteceu sua rejeição ao VLT;
  • Arquitetos apresentam sugestões à Rua Doutor Deodato:
    • Deu espaço à ideia de que os trens de carga são intrusos que só deixam congestionamentos, colocada pelo jornal para fortalecer a narrativa contrária ao VLT;
    • Deu espaço à ideia de que o trem deveria circular em elevado até Cezar de Souza, porque seria “mais moderno”, sob a alegação de que a ferrovia não apresentou evolução e eficiência;
    • Deu espaço à ideia de que houve perda de serviços, no entanto, a operação destes se baseava numa lógica classista e segregacionista. O jornal ignorou que trens como o Alvorada contribuíam para retirar as classes com maior poder de barganha dos trens superlotados pela população em geral, que viajava pendurada nas portas e não raramente se deparava com cadáveres de acidentados.
Legenda: Elevado vizinho a edificações consolidadas, claramente com recuos apertados, levantando dúvidas sobre a viabilidade do parque linear e preocupações com nível de ruído proporcionado e o impacto à paisagem e ao tecido urbano vizinho. Créditos: arquiteto Paulo Pinhal

Foi a tão propalada campanha contra o VLT, que legou a cidade a continuar convivendo com trens pesados que todos conhecemos. Estes trens, que foram desenhados com especificações claramente metroviárias, não são compatíveis com uma multitude de passagens de nível. Hoje, o terrorismo informacional d’O Diário estimula uma discussão sem sentido em torno de uma ciclovia que já deveria existir e estar passando por ruas e avenidas, não ao lado dos trilhos de uma ferrovia centenária. Ironicamente, foi possível encontrar opiniões de outras personalidades de Mogi favoráveis ao VLT, presentes nos textos “Pais ilustram a Mogi ideal para os filhos”, “Em debate, o futuro da `Coronel´” e “A Coronel tem solução”, todos publicados anos atrás pelo jornal.

É uma pena que falte bom senso e humildade para reconhecer que o transporte ferroviário não é anacrônico. Ao exigir que a CPTM ceda parte da faixa para uma ciclovia, o potencial de aumento de capacidade ou de versatilidade é reduzido. Considerando a pujança da economia mogiana, os conflitos existentes e a insistência em ligações mais diretas (que pela nossa experiência, não é endossada apenas pelo supracitado jornal, mas também por mogianos), a ideia simplesmente não tem cabimento.

Finalmente, o COMMU entende que apenas uma solução é capaz de melhorar a inserção urbana da ferrovia no município: conversão de metrô originado a partir de serviços suburbanos para metrô leve usando VLTs. De antemão, adiantamos que não é trivial, que é preciso encontrar uma solução que acolha a circulação de trens cargueiros devido à obrigações impostas pelo marco regulatório e que uma obra do tipo é de grande envergadura e ameaça a manutenção dos serviços, caso seja interrompida, judicializada ou malfeita. Na discussão sobre as cidades, precisamos ser firmes e maduros: tecnologias de material rodante e de via permanente não existem para serem fetichizadas, mas para resolverem determinados problemas, além disso, o desenvolvimento econômico é antagônico à pendularidade, assim, não adianta romantizar ligações diretas de décadas atrás, quando a Região Metropolitana de São Paulo estava muito mais polarizada em torno da capital. Cidade-dormitório com sistema de trilhos pesado, pendular e conflituoso ou cidade-polo com sistema de trilhos acolhedor e grande dinamismo: é preciso escolher e ser capaz de encarar as consequências.




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