Por Lucas Chiconi | 17/08/2020 | 14 min.
No dia 13 de agosto de 2020, diversos membros do COMMU foram surpreendidos por um tuíte do editor da Veja São Paulo, que fazia uma estranha comparação entre o entorno do Central Park, em Nova Iorque, e o entorno do parque do Ibirapuera, na Zona Sul da capital paulista. Segundo Raul Juste Lores, 550 mil nova-iorquinos morariam a 10 minutos do parque, ao passo que apenas 6 mil paulistanos morariam nos 80 quarteirões localizados na cercanias do Ibirapuera:
550 mil nova-iorquinos moram a 10 minutos a pé do Central Park. 6 mil paulistanos moram nos 80 quarteirões ao redor do Ibirapuera... pic.twitter.com/UkHgMcvHuo
— Raul Juste Lores (@rauljustelores) August 13, 2020
A comparação, é claro, suscitou discordâncias e havia sido aprofundada dias antes na revista. Pessoas questionaram os números, tanto para a população da capital, como para as dimensões físicas dos parques.
O primeiro aspecto que consideramos foi que o Central Park tem o dobro de área e uma diferença ainda maior quanto ao perímetro e zona de buffer. Além disso, sua gênese, como veremos, é profundamente diferente e parece refletir uma série de diferenças na forma de planejar, construir e pensar a cidade.
Exceto pelo Parque Trianon, São Paulo possui algum parque que foi planejado a partir da sua inserção urbana, e não foi uma sobra de algum terreno? Mesmo o Parque Dom Pedro e o Anhangabaú, que nas últimas décadas sofreram com os efeitos perversos do rodoviarismo, decorreram do aproveitamento de várzeas, inadequados para construção. Depois do Trianon, arriscamos que o Jardim da Luz chegue perto, no entanto, foi originado a partir de uma chácara que virou Jardim Botânico e, posteriormente, foi aproveitada para parque. Não foi um espaço planejado junto com o restante da ocupação, mas um espaço preexistente.
Não temos conhecimento de qualquer projeto de loteamento que tenha incluído um parque no meio, exceto o minúsculo Trianon. Cabe salientar que não estamos afirmando que o Ibirapuera não foi planejado. Obviamente, foi, mas a cidade só chegou nele depois, ou seja, não é um parque que fez parte do plano de ocupação do entorno, previsto no meio do loteamento. Mesmo loteamentos de grandes dimensões, como aqueles realizados pela Alphaville Urbanismo, nomeadamente os empreendimentos localizados na RMSP (Região Metropolitana de São Paulo), nos municípios de Barueri e Santana de Parnaíba, concebidos para abrigar populações das classes mais altas, não incluíram parques comparáveis com o Ibirapuera (uma comparação com o Central Park seria ainda mais infrutífera). Neste sentido, vale refletir sobre práticas encontradas no mercado a partir da tese de Mariana Falcone Guerra (“Vende-se qualidade de vida”, Alphaville Barueri — Implantação e consolidação de uma cidade privada):
A maior praça de Alphaville é a Oiapoque. Como existiam muitas pedras no seu subsolo, não pôde ser convertida em área loteável, o que justificou sua instalação. A ligação com Al. Rio Negro é feita através de um calçadão.
Para loteamentos mais novos, arriscamos dizer que, por pressão da legislação ambiental (e não por consciência ou visão do loteador), atores privados propagandeiam a existência de um “bosque privativo”, “mata preservada”, “vista permanente para área verde” etc, o que não necessariamente envolve a presença de áreas para fruição pública, na forma de parques e praças e, muito menos, envolve um plano para a cidade.
Ao envolver o Central Park numa comparação, acabamos com uma definição muito restrita, pois geralmente não se planeja um loteamento nessa escala, daí a ideia de que os parques costumam ser fruto de terrenos que sobraram, como terrenos entre diferentes loteamentos, por exemplo. O Central Park fez parte do planejamento do seu entorno, e seu traçado foi pensado de modo a lhe proporcionar um bom parque, ao contrário do Ibirapuera, que era somente mais uma gleba no fragmentado e irregular tecido urbano paulistano.-
Não é irônico pensar que o Central Park foi delimitado por um plano que, junto com ele, definiu todo o entorno? Em meio ao venenoso lamaçal do atual ambiente político, comumente enfrentamos discursos macarthistas e uma miríade de técnicas para suavizar o reacionarismo, que incluem, por exemplo, a ideia de que o Estado Brasileiro é excessivamente interventor ou mesmo o delírio de que não há propriedade privada no Brasil, no entanto, deparamo-nos com uma comparação que expõe não só indícios de uma postura interventora muito mais agressiva, mas nos leva a observar que tal postura ocorreu em Nova Iorque, baluarte global do capitalismo.
O artigo contrapõe o suposto zoneamento rígido paulistano a uma suposta liberalidade novaiorquina. Ora, Nova Iorque — inclusive boa parte do entorno do Central Park — está cheia de zonas residenciais com regras rígidas, inclusive algumas categorias de regras que seriam denunciadas como comunismo por aqui, como a proibição de estacionamento na calçada em áreas residenciais.
Nossas práticas de planejamento parecem sempre conduzir a uma atuação residual e fragmentada, mesmo em espaços segregados socialmente para as classes mais abastadas. Enquanto São Paulo foi permissiva e pouco preocupada com a coesão territorial produzida por diferentes loteadores, Nova Iorque definiu o parque como um elemento-chave do projeto de Manhattan, de forma que a cidade não “chegaria” no Central Park em algum momento, com seu crescimento autorregulado pelo mercado, porque o Central Park já fazia parte dela.
É por isto que, ainda que possa se argumentar que os terrenos tinham problemas, como as ocupações que existiriam no reservatório do Central Park (uma delas, impulsionada pela crise de 1929, durou de 1931 a 1933), precisamos reiterar, uma vez mais, que o Ibirapuera nunca fez parte de um plano para a cidade.
O Central Park não foi desenhado em função do terreno, pois o pântano não era retangular. Seu formato é simétrico em relação ao sistema viário vizinho e sua inserção é linear, claramente desenhada. O Ibirapuera nasceu a partir de uma gleba “micada” entre loteamentos, que decidiram torná-la um parque para promover a valorização do entorno (e não a ocupação, embora esta tenha ocorrido e muito).Daí a noção de que talvez seja mais um entre muitos subprodutos do processo fragmentado de planejamento que nós temos, frequentemente muito contaminado pelo mercado, que transfere parte de suas limitações para o poder público, que passa a ter dificuldade de conciliar o bem-estar do conjunto da cidade ao ser cooptado para garantir os interesses microscópicos de algumas famílias.
Por curiosidade, nós ainda olhamos para outros parques metropolitanos municipais significativos em Santo André, na Sub-região Sudeste (também conhecida como Grande ABC ou ABC Paulista). O Parque Celso Daniel, localizado a alguns minutos de caminhada da principal estação da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) da cidade, por exemplo, apesar da localização privilegiada e proximidade do Bairro Jardim, que abriga bares, restaurantes e enclaves residenciais de alta e média-alta renda, nunca foi planejado como parte da cidade ou mesmo dos loteamentos surgidos quando toda aquela região era parte de São Bernardo do Campo, no auge da concessão ferroviária inglesa do que hoje é a Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra). Segundo informações oficiais:
Propriedade de Luiz Monteiro de Carvalho que a havia comprado de Abílio Soares. Em 1943, a área foi vendida para a fábrica General Eletric para a implantação de um clube de recreação para seus funcionários. Foi desapropriada em 1974 para ser transformada em parque, com projeto contratado com a FAU-USP para elaborar um projeto que não foi aceito. Desde então, a Prefeitura tem feito várias algumas intervenções na área, sendo que a última foi em 2000.
De acordo com a mesma fonte oficial, a mesma companhia inglesa também foi proprietária da área que depois deu origem o Parque Central de Santo André, cuja vocação como parque não foi parte de um processo coeso de planejamento da cidade. De fato, podemos ver que alguns dos usos originais passaram muito longe de qualquer ideia de área verde para fruição pública:
Informações Complementares: Área de propriedade da São Paulo Railway Company, que captava água do córrego Carapetuba para funcionamento das locomotivas a carvão. Com o término da concessão, a área passou para a Rede Ferroviária Federal. Na década de 1950, foi arrendada para criadores de animais, viveiros, hortas e para campos de futebol. Foi desapropriada em 1967 para urbanização e sistema viário. Ao longo do tempo, foi perdendo área para a passagem da linha de transmissão de energia elétrica de alta-tensão, para o Hospital Regional de Clínicas Mário Covas, abertura de vias e para implantação de um núcleo habitacional. O local teve inúmeros projetos, inclusive do arquiteto Oscar Niemeyer e paisagismo de Roberto Burle Marx (1972).
Para além do histórico muito diferente, existe um aspecto geográfico que vai além dos aspectos físicos, como área e perímetro: a localização. O Central Park está de fato numa área planejada para ser densamente ocupada, e que eventualmente se transformou num novo centro para Nova York, enquanto a área do Ibirapuera era pensada como afastada e suburbana, até ser atingido pela “cidade”, com a verticalização da Paulista, da Vila Mariana e posteriormente Faria Lima e Itaim Bibi, ao sabor do mercado, poupando somente os Jardins. Parece-nos que o Ibirapuera tenta, apesar da localização desfavorável, ocupar o papel do Parque Dom Pedro original. O Dicionário de Ruas da Prefeitura de São Paulo endossa a ideia de um parque central, recuperando gestões de prefeitos como Pires do Rio, no entanto, os anseios expostos se dissolvem quando pensamos que, se o Ibirapuera até hoje está longe de ser central, o que dizer da São Paulo de 1926?
Em 1890, as terras do Ibirapuera eram consideradas devolutas. No ano de 1916, com o Decreto Estadual n° 2.669, os terrenos que faziam parte do antigo rossio da cidade, conhecido também como Várzea de Santo Amaro ou Várzea do Ibirapuera, passaram a compor o perímetro municipal. Antes da primeira menção de construção do parque, o Prefeito Washington Luís propôs a divisão em lotes de uma área de 993.630 m² na Várzea do Ibirapuera, no intuito de desenvolver os arredores. O loteamento de 1918 dá origem, hoje, ao Bairro Jardim Lusitana. Em 1926, assume a Prefeitura de São Paulo, José Pires do Rio e junto com ele a intenção em construir um parque em "pleno coração da cidade". Em seu relatório anual, descreve com entusiasmo a localização estratégica do novo parque e a sua importância quanto a higiene da população urbana. "Situados na planície que começa no sopé da collina da avenida Paulista, e fica entre o fim da rua Brigadeiro Luiz Antônio, a Estrada de Santo Amaro, o corrego Uberaba, a cuja a margem esquerda fica Indianópolis, limitados pela Vila Clementino e Vila Mariana, esses terrenos da Invernada dos Bombeiros e da Chácara Ibirapuera se prestam, admiravelmente, a cosntrucção de um immenso jardim ou parque, com área igual a do Hyde Park de Londres, igual a metade do Bois de Boulogne, de Paris." Durante todo seu mandato de Prefeito, Pires do Rio desempenhou-se na aquisição de terras e na construção do parque.
Parece uma lorota — para usar uma linguajar da época. Quem compilou as informações do Dicionário de Ruas? Quantos historiadores e outros profissionais assinaram e revisaram o texto em questão?
Finalmente, o pretexto de que é preciso aumentar densidades e democratizar o acesso às melhores infraestruturas da capital paulista, é claro, agrada. Lutar pela revisão do zoneamento nos Jardins é absolutamente razoável, uma vez que suas feições são incompatíveis com sua localização, mas esta luta deve ser feita sob um discurso coerente e balizado por perspectivas técnicas. Também deve ser feita no momento certo, e embora a construção do discurso e do embasamento técnico-teórico seja algo perene, o Plano Diretor Estratégico tem data de revisão prevista para a metade da sua vigência de 16 anos. As inúmeras propostas de revisão extemporâneas (e ilegais!) do PDE se revelam, repetidamente, tentativas de captura e cooptação dos instrumentos de planejamento por um lobby de incorporadoras em detrimento dos interesses da cidade. Distanciamo-nos do debate bizarro, tosco e midiático, que é muito falso em relação à realidade e usa falácias como falar de Paraisópolis ao defender o adensamento dos Jardins. Ora, por mais salutar que esse adensamento seja, se imaginarmos uma multiplicação de 12× — uma densidade similar à do Jardim Paulista acima da Rua Estados Unidos — a unidade que comporta uma família nesse bairro adensado ainda custará coisa próxima de um milhão, um valor que a mantém firmemente nas mãos da classe rica. Ou, ainda, custará um terço de milhão para a produção de micro-habitações que se orgulham das dimensões diminutas, com exemplos de 24 a 12 m², menores do que uma vaga de estacionamento - e ainda fora do alcance das classes populares e de qualquer um com uma família ou que não possa viver à base de serviços contratados por aplicativo. Afirmar que pobres morarão nos Jardins por meio dessa suposta democratização por via da verticalização não soa nada realista. Considerando algumas coisas que têm saído na Veja São Paulo, é nítido que existe uma disputa envolvendo a revisão do zoneamento. É nítido também que as críticas têm justificativas e consequências desalinhadas, com um discurso de justiça e acesso à cidade mas visando um produto de valorização milionária e benesses para construtoras sem viabilização das contrapartidas de infraestrutura e qualificação do espaço público.
A contraposição dos arranha-céus novaiorquinos aos Jardins, como se a diferença fosse questão de verticalização, não se sustenta. O pleito pelo adensamento não pode cair na falácia de interpretar verticalização como equivalente a densidade populacional. Moema é incrivelmente verticalizada e possui densidade pouco acima dos 9.000 hab/km². O distrito da Saúde, seu vizinho, que mantém ainda um perfil de mais casas térreas e sobrados, tem densidade de quase 15.000 hab/km². Com uma taxa de motorização muito mais alta e congestionamentos diários, a verticalização de Moema parece ter atendido mais ao automóvel do que às pessoas. Outros exemplos se repetem na cidade, dissolvendo a falácia. Bairros operários, como a Penha, com alta população, ou como Santana, que se verticalizou fortemente desde a chegada do metrô, repleta de lançamentos de torres de alto padrão, e que vem perdendo população desde os anos 90.
O CityLab fez uma publicação muito interessante sobre os locais de maior densidade populacional na Europa (em inglês). Como se vê, nenhum é caracterizado por arranha-céus novaiorquinos, mas por tipologias de prédios baixos, e com espaços públicos, praças e áreas livres. No extremo oposto, a área conhecida como Downtown Dubai tem uma população de aproximadamente 13.000 pessoas espalhadas por 2 km². Apesar de abrigar o Burj Khalifa, o prédio mais alto do mundo, a densidade demográfica de 6.500 hab/km² é inferior à de Moema ou de Cidade Dutra (6.700 hab/km²).
É pertinente ressaltar que a legislação urbanística é apenas um fragmento na construção de uma cidade, sendo também parte das ideologias e valores socioculturais da população, especialmente em espaços de poder. A segregação socioespacial não se vale sozinha, mas está amparada em fraturas que dividem a cidade de múltiplas formas, notadamente entre áreas privilegiadas e periféricas. Prédios, isoladamente, bem como bairros inteiros não são construídos apenas por legislações, mas também por padrões e facetas vinculadas aos valores sociais, culturais e realidades ambientais. Não é em vão que parte significativa das cidades brasileiras estejam alheias às leis urbanas, com grande parte da população vivendo em condições de vulnerabilidade. É uma situação que confere um projeto de cidade e sociedade e, portanto, cabe mais conhecimento a respeito do território para abordar questões complexas que demandam debates técnicos e realistas para que resultados sejam alcançados.
Ademais, com empreendimentos que contemplam e reforçam a supremacia do carro na cidade, seja pela quantidade de vagas de garagem, seja pela forma nada convidativa ao território preexistente. Recuos foram garantidos por décadas pela legislação, mas seus muros e tantos outros elementos de segregação foram perpetuados mesmo não sendo obrigatórios por essas leis. A verticalização, bem como a densidade demográfica, devem estar atreladas a um projeto de cidade que transforme o modelo de segregação socioespacial que ainda se mantém. Porém, isso vai além de afirmações enganosas que vão contra a realidade das dinâmicas vigentes que ainda exploram as desigualdades. A cidade é feita de muitas camadas materiais e imateriais, sendo os prédios nos seus múltiplos formatos, apenas uma delas.
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