Contra o fenômeno do carrismo, doutorando propõe programa tributário

Por Caio César | 04/09/2020 | 6 min.

Legenda: Acompanhamento de eventos do COMMU: especial AEAMESP 2020
“Vamos chamar esta estrutura que mistura mudanças materiais na cidade e mudanças ideológicas na sociedade de carrismo”

Índice


Série especial

Organizada para ocorrer entre os dias 01/09/2020 e 04/09/2020, a vigésima sexta edição da Semana de Tecnologia Metroferroviária, organizada pela AEAMESP (Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô) em formato gratuito e virtual, revela importantes trabalhos ligados ao transporte de média e alta capacidade, produzidos por diferentes atores. O COMMU mais uma vez compartilha impressões do evento por meio de uma série especial. Clique aqui para conferir todos os artigos da série já publicados até o momento.


O autor

Segundo informações do site oficial do evento, o autor do trabalho, Pedro Dias Geaquinto, é doutorando em Eng. de Transportes (COPPE/UFRJ), mestre em Eng. de Transportes (COPPE/UFRJ), bacharel em Eng. Química (UFF) e membro da equipe Quanta-Lerner (responsável pelo PDUI/RMRJ), além de fundador e coordenador do coletivo QUERO. Sua dissertação de mestrado, intitulada "Efeitos relacionais no planejamento integrado de transportes" recebeu a Cátedra Abertis-USP de Melhor Dissertação de Mestrado.


Justificativa

A partir de dois ensaios fundamentais, Geaquinto se debruça sobre dois problemas: (i) a dificuldade de financiar um programa contínuo de investimentos em infraestrutura de transporte com caráter transformador e (ii) inconveniências associadas ao uso irrestrito do automóvel.


Carros estão entre os modos de transporte que mais emitem gases do efeito estufa [...] apenas a aviação tem uma contribuição ao efeito estufa tão grande quanto os carros.
Pedro Geaquinto
Legenda: Gráfico comparando emissões entre diferentes modos, utilizado por Geaquinto. Original: CHAPMAN, Lee. Transport and climate change: a review. Journal of transport geography, v. 15, n. 5, p. 354-367, 2007

Simplificadamente, a ideia central da palestra consiste na defesa de um programa tributário com o papel de reverter os efeitos nocivos ligados ao automóvel, ou seja, encarecer e desestimular seu uso e, simultaneamente, alimentar um fundo — Fundo Metropolitano de Mobilidade Urbana, propõe Geaquinto —, capaz de converter e/ou prover infraestrutura para que as cidades priorizem definitivamente o transporte coletivo e os modos ativos (como os modos a pé e bicicleta).

Segundo o autor, a Região Metropolitana de São Paulo possui 31% das viagens realizadas por meio do transporte individual motorizado, o que corresponde a 12,9 milhões de viagens. A lógica básica do tributo é que, se cada viagem do carro resultar no pagamento de uma tarifa equivalente à do sistema municipal da capital, a receita anual estimada oriunda do novo tributo seria de R$ 18,2 bilhões, considerando possíveis flutuações em virtude do comportamento da demanda e das escolhas, a receita poderia variar entre R$ 5,8 bi (piso) e R$ 23,3 bi (teto).


Imagine estas arrecadações literalmente bilionárias alimentando um fundo metropolitano de mobilidade urbana: nas cidades mais populosas, isto é capaz de financiar anualmente linhas de metrô. Anualmente. Obviamente, este capital também pode ser aplicado em outros instrumentos igualmente transformadores, mas não onerosos, como a requalificação viária priorizando o transporte coletivo e a infraestrutura cicloviária.
Pedro Geaquinto

O autor explica que a utilização do carro implica custos ou desvantagens para os não usuários, o que se traduz em colisões que afetam pedestres e ciclistas, a poluição atmosférica que afeta todo o conjunto da sociedade e o congestionamento generalizado do sistema viário, prejudicando ônibus e ciclistas, além do aumento da pressão pela transformação do meio urbano. O fenômeno transformador do automóvel tem sido recorrentemente criticado e o surgimento de uma série de organizações (o que inclui o COMMU), é fruto de uma luta que, embora talvez se apresente de maneira difusa e com muitas limitações, busca reverter uma série de efeitos que, não surpreendentemente, foram reconhecidos em, pelo menos, um dos ensaios, tais como:

  • Aumento do número de estacionamentos;
  • Ampliação de vias de trânsito rápido, que adotam velocidades mais letais e baixa transponibilidade;
  • Prioridade no espaço viário para favorecer a circulação do carro;
  • Urbanização difusa ou espraiamento urbano, em oposição à compactação do tecido, inviabilizando ou restringindo pedalar, caminhar e/ou utilizar transportes públicos coletivos;
  • Necessidade de uma série de ajustes arquitetônicos em virtude do papel protagonizado pelo carro.

Geaquinto argumenta que as transformações materiais elencadas anteriormente contribuíram para fomentar transformações nos hábitos e comportamentos sociais, modificando a interação entre diferentes indivíduos e entre indivíduos e espaços de circulação. A associação do automóvel com sucesso, prestígio e mérito, a banalização dos riscos (e, consequentemente, das mortes e sequelas), entre outros aspectos que desumanizaram o urbano, produziram o carrismo.

O carrismo pode ter tanto surgido e se enraizado de forma orgânica, na esteira de transformações paulatinas, como também pode ter sido apresentado por estratégias equivocadas de planejamento urbano e regional. O modernismo do século XX, segundo Geaquinto, é um exemplo válido para pensarmos na atuação do poder público em prol do fortalecimento do carro como forte protagonista dos deslocamentos nas cidades, em outras palavras, o carrismo pode também se somar à carrocracia, que é uma prática política deliberada pensada para favorecer os carros.


Ressalvas

O programa tributário proposto não é uma panaceia, como salienta Geaquinto, apontando que é preciso ir além de estimativas baseadas na inelasticidade da demanda ou na flutuação entre dois extremos: a calibração das alíquotas a partir de uma modelagem que considere o comportamento da geração de viagens é essencial, bem como a inclusão de gatilhos que evitem a conferência de um caráter regressivo ao tributo, prejudicando determinadas ocupações profissionais e/ou parcelas da sociedade.

A existência de barreiras políticas, culturais e jurídicas também não é desprezível, pondera o especialista, que argumenta que o automóvel “estabeleceu uma estrutura que é ideológica, além de material”, ainda que o transporte individual corresponda a uma minoria das viagens nas cidades brasileiras.


Se uma estratégia política com integração metropolitana demonstrar claramente os benefícios deste programa, pode causar uma guinada para a mobilidade sustentável, algo que era impossível de vislumbrar até agora há pouco, mas que beneficia a maior parte da população.
Pedro Geaquinto

Finalmente, o autor reconhece que o automóvel contribuiu para encurtar distâncias e integrou programas de desenvolvimento econômico e industrial. A ideia de um tributo anticarrista não é, necessariamente, sinônimo de travar uma guerra contra o automóvel e os ecossistemas a ele associados, mas sim de promover um reequilíbrio a partir de um programa tributário concreto, que fortalece o erário e o poder público para que a infraestrutura possa ser transformada novamente, tornando as cidades mais sustentáveis e, muito provavelmente, mais dinâmicas e competitivas.


Vídeo

Legenda: Vídeo da palestra de Pedro Geaquinto, publicado no canal oficial da AEAMESP

Colaborações: Pedro Geaquinto, parceiro de longa data do COMMU. O Coletivo fica honrado pela menção nos momentos finais da apresentação



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