Rede de cidades novas especializadas poderia financiar trens regionais de alta performance

Por Caio César | 14/09/2020 | 13 min.

Legenda: Acompanhamento de eventos do COMMU: especial AEAMESP 2020
Apresentação de arquiteto do Metrô de São Paulo abre espaço para mais reflexão e crítica em torno dos planos do Executivo paulista para trens regionais

Índice


Série especial

Organizada para ocorrer entre os dias 01/09/2020 e 04/09/2020, a vigésima sexta edição da Semana de Tecnologia Metroferroviária, organizada pela AEAMESP (Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô) em formato gratuito e virtual, revela importantes trabalhos ligados ao transporte de média e alta capacidade, produzidos por diferentes atores. O COMMU mais uma vez compartilha impressões do evento por meio de uma série especial. Clique aqui para conferir todos os artigos da série já publicados até o momento.


Importantes sinais para o futuro da mobilidade regional

Primeiramente, apesar de não termos dedicado um artigo para as falas do arquiteto e urbanista Luiz Antonio Cortez Ferreira do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo, usualmente grafada como Metrô), estas não foram menos importantes e relevantes para que possamos discutir novas ligações regionais e o desafio de implantá-las diante de um contexto marcado por incerteza, avanço do teletrabalho e estrangulamento orçamentário. Em sua apresentação, intitulada “Desenvolvimento orientado pelo transporte: o que realmente falta?”, Cortez deu uma série de sinais, a saber:

  1. Em tom crítico, lamentou a liquidação da Emplasa ao discutir o avanço da mancha urbana da Região Metropolitana, argumentando que o fenômeno da metropolização precisa ser acompanhado;
  2. Sua apresentação incluiu ainda comentários sobre o avanço da urbanização nas regiões metropolitanas de Campinas e do Litoral Norte e Vale do Paraíba, bem como sobre a Macrometrópole Paulista como um todo, uma vez que esta é o agrupamento de cidades de maior complexidade e concentração populacional do estado de São Paulo;
  3. Cortez alertou para a saturação das principais ligações rodoviárias do estado, explicando que a degradação do nível de serviço para patamares deseconômicos será apenas questão de tempo, ainda que tenha sido atrasada devido ao novo coronavírus;
  4. Pisando no terreno até então disputado pela CPTM dentro da máquina estatal paulista, o arquiteto propôs uma rede de trens intercidades de média velocidade (200 km/h), financiada por uma rede de cidades novas especializadas, com o objetivo de ordenar a ocupação do território em escala regional, interiorizar o desenvolvimento e conter um o espraiamento caótico e distópico;
  5. Admitiu a necessidade de alterações no marco regulatório para permitir uma exploração imobiliária mais agressiva das estações, permitindo a verticalização e o desenvolvimento de empreendimentos em parceria com a iniciativa privada, de forma a angariar um volume de receitas superior ao auferido atualmente com a comercialização de espaços publicitários e locação de áreas para exploração comercial.
Legenda: Slide com a evolução do nível de serviço prevista cerca de dez anos atrás: degradação generalizada a partir de 2025

Todos estes pontos foram surpreendentes, uma vez que estamos falando de uma apresentação da Companhia do Metropolitano, que, vale lembrar, nasceu pelas mãos da prefeitura de São Paulo, a partir de um projeto de uma rede de metrô que negava o fenômeno da metropolização, uma vez que ficava restrita aos limites da capital. A construção das primeiras linhas do Metrô de São Paulo foi chocante, estabeleceu parâmetros, idiossincrasias e constituiu um imaginário em torno da ideia de metrô. O Metrô, pela sua inserção, dotação orçamentária privilegiada e adoção de tecnologias ferroviárias de ponta, permitiu a observação de uma forte assimetria entre seus serviços e outros serviços ferroviários, então existentes e se encontrando em franco declínio — a ponto de submeterem os passageiros das periferias a uma espiral de desumanidades que atravessariam os anos de chumbo da ditadura e as primeiras décadas do Brasil redemocratizado.


Possível disputa?

Talvez coincidentemente, a apresentação de Cortez precedeu aquela que seria feita por Moro em seguida. O presidente da CPTM reconheceria, por meio de estudos que a estatal tem realizado, que há, de fato, a necessidade da ampliação do transporte regional de passageiros sobre trilhos.

Gozando de menor prestígio e tentando costurar as profundas feridas e os grandes retalhos deixados por antigas companhias ferroviárias, a apresentação da CPTM percorria corredores muito mais estreitos e desconfortáveis. As limitações do trem intercidades São Paulo-Campinas eram evidentes e, ainda que Moro não tenha em nenhum momento falado em 200 km/h, nos parece muito improvável que a velocidade seja atingida numa linha centenária e diante de outras restrições constrangedoras, como a operação em via singela com alguns pontos de ultrapassagem. Conforme lembramos no artigo “Concessão da Linha 7-Rubi: sobram dúvidas e incertezas”, os estudos da SISTRAN, que consideravam a construção de uma variante nova para os trens regionais a partir de determinado ponto, adotavam uma diretriz de 160 km/h de velocidade máxima.

A CPTM ensaia penetrar no interior do estado há vários anos: em 2011 a empresa já havia publicado um livreto sobre trens regionais. Dolorosamente, quase dez anos depois, nada saiu da espessa nuvem de intenções, exceto alguns estudos preliminares, que também já acumulam poeira nas prateleiras virtuais do site da Secretaria dos Transportes Metropolitanos. Os desdobramentos da PPP (parceria público-privada) entregando a Linha 7-Rubi (Brás-Francisco Morato-Jundiaí) como parte de um trem regional mambembe para Campinas foram, até hoje, os passos mais concretos já dados pela empresa.

Legenda: Slide ilustrando a ideia de uma rede de trens intercidades que poderia ser financiada por uma rede de cidades novas especializadas

Os trens regionais mencionados por Cortez não se parecem com aqueles que a CPTM tem estudado e tentado viabilizar espremendo ao máximo as faixas de domínio que controla. Pior, o modelo de financiamento citado por Cortez é muito mais arrojado, uma vez que se apoia na exploração de ativos imobiliários atuais e futuros, sendo que os ativos futuros poderiam se traduzir em verdadeiras cidades privadas com população de 40-50 mil pessoas cada, que seriam, parafraseando o arquiteto do Metrô, núcleos especializados, de alta tecnologia, que, ainda que não fossem autônomos, funcionariam como cidades compactas e orientadas ao transporte.

Fica parecendo que a CPTM continuará se arrastando pelo pântano de contradições que inunda a sua malha, enquanto o Metrô vai aproveitar sua posição como estatal ligeiramente superavitária e bem avaliada pela sociedade civil, desenvolvendo novos núcleos urbanos conectados por trens de excelente desempenho. Não é justo. Se há uma disputa entre os dois atores, ainda que muito sutil, ela não faz o menor sentido e só reforça a nocividade de possuir múltiplas estatais, cada qual com diferentes recursos e nível de influência, desempenhando papéis muito similares.

Se há a possibilidade de desenvolver trens regionais de alto desempenho associados a novos núcleos urbanos compactos que interiorizam o desenvolvimento para além de condomínios horizontais monótonos que sobrecarregam os centros mais próximos e a infraestrutura rodoviária com um enxame de automóveis, então é evidente que o trem regional proposto para Campinas está muito mais próximo de sistemas de trens comutadores e sistemas híbridos de metrô regional, notadamente mais próximo de sistemas como a RER (Réseau Express Régional ou Rede Expressa Regional, em tradução livre do francês para o português brasileiro), que conecta Paris e seus subúrbios na Ilha de França, além de servir como o único metrô pesado do core metropolitano (o metrô parisiense se assemelha muito mais a um sistema de metrô leve que opera com bondes com rodas de borracha).


Frentes de atuação

Como já opinamos no passado (vide os dois últimos parágrafos do artigo “Populismo ameaça implantação de trens regionais no Estado de São Paulo”), o estado deveria avaliar a implantação de ferrovias completamente novas ao longo das modernas rodovias construídas nas últimas décadas, estas ferrovias seriam utilizadas por trens regionais de alto desempenho, que poderiam ser alimentados tanto por empreendimentos associados às estações, quanto por sistemas ferroviários de baixo custo operacional e construtivo, como é o caso do Aeromóvel®, além disso, também poderiam contar com estacionamentos para evitar a entrada dos automóveis do interior na Região Metropolitana de São Paulo, permitindo que o restante do deslocamento fosse feito pelo sistema de trilhos.

Já a malha do Trem Metropolitano da CPTM poderia ser agraciada com a implantação de ligações expressas e com uma maior articulação entre estado e municípios, para que, independente do PDUI (Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado), sejam feitos esforços na qualificação e desenvolvimento das cercanias, de forma a criar modelos de corredores em todas as linhas, marcados pelas seguintes características:

  • Boa distribuição de renda, misturando diferentes classes e impedindo a segregação socioespacial;
  • Boa qualidade urbana, com abundância de infraestruturas adequadas para modos ativos (bicicleta e a pé), incluindo mobiliário e sistemas de informação (wayfinding);
  • Multiplicidade de usos, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos e a desertificação em determinados períodos do dia;
  • Estímulo ao empreendedorismo, de forma a incentivar a formação de ecossistemas locais de empresas e profissionais;
  • Estímulo ao desenvolvimento endógeno por meio de instituições públicas de ensino e pesquisa, visando a qualificação da mão de obra local;
  • Existência de arborização, áreas verdes e equipamentos de lazer e fortalecimento dos laços comunitários.

A formação de centralidades lineares ao longo das linhas do Trem Metropolitano é essencial para mitigar os problemas do tecido que já está cristalizado e não vai deixar de existir, a despeito da formação de pequenos núcleos ao longo de linhas inteiramente novas de trens regionais, adicionalmente, o modelo pode ser expandido ao longo de ligações perimetrais de média capacidade, distribuindo e conectando o desenvolvimento entre diferentes linhas.

Precisamos compreender que, apesar dos problemas geométricos e da pressão habitacional, a inserção do Trem Metropolitano é privilegiada, estratégica e já conta com centralidades de diferentes intensidades, que devem ser fortalecidas. Nossos artigos recorrentes sobre Mogi das Cruzes ou o Grande ABC, por exemplo, evidenciam que não faz sentido reduzir todos os municípios atendidos pela CPTM a meras cidades-dormitório.


A solução de conciliação

Nossa solução conciliadora não é nenhuma novidade, mas talvez pareça menos indigesta quando somada à possibilidade de empreendimentos imobiliários associados e à implantação de ligações ferroviárias completamente novas. Consideramos que os dois elementos são inevitáveis e que sua discussão precisa ser feita com mais frequência e afinco, de forma a evitar surpresas desagradáveis com concessões e programas de desestatizações.

Na nossa página no Facebook, identificamos, por exemplo, que a maior preocupação em torno da concessão da Linha 7-Rubi parece girar em torno da supressão do acesso direto às estações Brás e Luz, enquanto todo o desenho da concessão fica em segundo plano. Prazos, contrapartidas e possíveis ameaças à evolução dos serviços hoje existentes na Linha 7-Rubi foram, aparentemente, colocados de lado. Em que pese a maior comodidade de um acesso direto, a discussão sobre conexões deve sempre levar em conta o funcionamento das linhas como parte de uma rede, não como ligações sem integração física e tarifária. Reduzir uma concessão a apenas um aspecto é uma postura que dificulta qualquer discussão aprofundada.

O fato é que, apesar das dificuldades, o COMMU vinha discutindo a solução conciliadora com o uso de infográficos conceituais muito simples (um deles pode ser conferido na hiperligação do primeiro parágrafo desta seção), porém, na segunda metade do mês julho, anunciamos que pagaríamos por uma ilustração de um trem conceitual e fizemos a divulgação por meio de nossos canais, selecionando Kassio Massa como ilustrador nas semanas seguintes, até que, em 17 de agosto, recebemos as versões finais. A seguir, gostaríamos de apresentá-la em toda a sua glória:

Legenda: Conceito de trem macrometropolitano partindo de uma estação (Kassio Massa)

Tendo a RER como inspiração, propomos uma solução de baixo custo para atender deslocamentos regionais (que chamamos de trens macrometropolitanos ou macrôs, por avançarem dentro da macrometrópole para além dos limites de uma única região metropolitana) com o máximo de aproveitamento da infraestrutura do Trem Metropolitano. Nossas premissas foram:

  • Manutenção e expansão da eletrificação em detrimento de soluções a diesel ou biodiesel;
  • Máxima proteção aos interesses dos passageiros e passageiras do Trem Metropolitano, reduzindo a possibilidade de canibalização por serviços de caráter completamente executivo;
  • Facilidade para estabelecer um programa faseado de requalificação da infraestrutura, de forma a elevar o grau de segregação e atratividade ao longo do tempo;
  • Possibilidade de adaptação do material rodante existente, substituindo e/ou adaptando os carros das extremidades dotados de cabine de comando;
  • Possibilidade de operar nas estações existentes, a partir do prolongamento das extremidades das plataformas e implantação de duas linhas de bloqueio adicionais;
  • Maior equidade ao permitir, desde o princípio, viagens expressas pelos passageiros do Trem Metropolitano, uma vez que as composições seriam basicamente as mesmas;
  • Respeito ao gabarito, de forma a permitir a circulação nos túneis existentes e passagens inferiores existentes.

Diante do atual contexto, no qual a CPTM está se dispondo a entregar uma linha de aproximadamente 60 km para a iniciativa privada em troca de um trem regional que vai operar em via singela com ultrapassagens, enquanto o Metrô começa a acenar para a importância de ligações regionais de alta performance, não parece tão má ideia inverter algumas prioridades, até porque, numa adaptação das etapas divulgadas recentemente pelo atual presidente da CPTM, as alterações nem parecem tão grandes assim:

Legenda: Tabela com as etapas propostas pela CPTM e uma versão alterada por nós

Acrescentando alguns números à ilustração, podemos nos debruçar mais detidamente sobre os elementos conceituais.

Legenda: Conceito de trem macrometropolitano partindo de uma estação (adaptado do original de Kassio Massa)
  1. Linha de bloqueios complementar: linha de bloqueios adicional, que permitiria o pagamento da diferença entre a tarifa do serviço metropolitano regular (atualmente R$ 4,40) e a tarifa do serviço regional (a definir, mas possivelmente próxima daquela praticada pelas empresas rodoviárias). A linha de bloqueios também seria um marco importante, uma vez que sua existência dependeria do prolongamento das plataformas;
  2. Bancos para espera mais confortável e outros elementos de comunicação visual tradicionalmente empregados, como placas de destino e de identificação dos lados da plataforma, neste caso, dispostos harmoniosamente ao redor do pilar;
  3. Quiosque conceitual, contendo um mapa da rede de transporte e outras informações pertinentes. Sua exploração comercial poderia estar associada à política tarifária e ao comportamento da demanda, contribuindo para a fidelizar passageiros e passageiras;
  4. Carro-tipo do serviço regional ou macrometropolitano, com duas portas, escadas para acesso aos níveis superior e inferior (este último parcialmente localizado abaixo do nível da plataforma) e espaço para cadeira de rodas;
  5. Carro do serviço metropolitano, sem distinção nas características do salão em relação aos trens que já conhecemos;
  6. Trem metropolitano-tipo para fins de escala e assimilação, demonstrando a convivência entre dois tipos possíveis de material rodante, sendo um deles preexistente.

O arranjo acima descrito seria replicado na extremidade oposta da plataforma, ou seja, seriam quatro carros adicionais (dois em cada ponta do trem), que poderiam ser acessados por meio de duas linhas de bloqueio independentes.

A adoção de dois pisos, apesar de prejudicar um pouco a área útil do salão devido ao conjunto de escadas, bem como pelo remanejamento de equipamentos, que passam a ser instalados verticalmente ao invés de horizontalmente abaixo do piso, nos pareceu uma solução melhor do que os trens para 368 passageiros sentados (distribuídos ao longo de 6 carros), sugeridos pela SISTRAN para o trecho Jundiaí-Campinas, ou trens para 563 passageiros, SISTRAN para o trecho São Paulo-Jundiaí (distribuição não informada). De fato, como a RER foi a nossa principal inspiração, nós buscamos detalhes sobre a série de trens MI 09 e identificamos que uma composição de 5 carros, com 110 metros de comprimento (22 metros por carro de dois andares, logo), totaliza 948 assentos, sendo assim, estimamos pelo menos 758 assentos em nosso arranjo proposto para a CPTM, assumindo 25% de perda com a instalação de sanitários e adoção de poltronas mais confortáveis, teríamos um total de 568 assentos. Nada mau, não é mesmo?

Considerando que a RER opera como metrô nos principais núcleos da metrópole parisiense, acreditamos que o arranjo não deve afetar significativamente os tempos de abertura e fechamento de portas nas estações.

Legenda: Vídeo que exibe duas composições da série MI 09 operando no ramal A2, Estação Champigny (canal BillyFlorian)

Admitimos que conciliar os serviços constrange o aumento da oferta, uma vez que o aumento da oferta de lugares no regional acaba forçando o aumento da oferta no metropolitano, por outro lado, acreditamos que ao permitir viagens expressas no metropolitano, para além da justiça socioespacial promovida, há um reequilíbrio da demanda, estressando menos a capacidade dos carros voltados ao transporte regional.

Finalmente, cabe salientar ainda que o regime de intervalos atual não deve ser considerado para toda a extensão da linha. É razoável imaginar uma maior oferta de viagens com o objetivo de atender os trechos de maior carregamento, com dinâmica eminentemente metropolitana, impulsionada pelos novos serviços metropolitanos expressos. O arranjo final seria composto por uma linha com múltiplos serviços ramificados, com diferentes regimes de intervalos, de forma a estabelecer a melhor relação entre oferta, demanda e infraestrutura disponível.




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