Por Caio César | 23/09/2020 | 6 min.
Recentemente a Revista Ferroviária publicou uma reportagem intitulada "SP retoma leilões com projetos de R$ 7,3 bi", apontando uma série de sinais que, pelo menos para nós, são bastante preocupantes e não foram repercutidos muito fortemente na pequena bolha que forma a mídia especializada do setor.
Resumidamente, os sinais são os seguintes:
- Investimentos que totalizam R$ 7,3 bilhões e estão distribuídos em seis projetos;
- Declaração do vice-governador Rodrigo Garcia (DEM) apontando que o setor privado continua interessado apesar da crise;
- Previsão de publicação de todos os editais até o final do ano;
- Expectativa de disputas na B3 em torno dos certames no primeiro trimestre de 2021;
- Grande expectativa do mercado em torno da concessão das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú, em expansão para Varginha) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos);
- Os investimentos exigidos para a concessão do par 8 e 9 serão R$ 2,6 bilhões;
- Busca de aumento do garantismo para tranquilizar o setor privado, tratado pela Revista como “uma das principais novidades”;
- Otimismo com relação à desvalorização do Real, supostamente tornando mais atrativa a entrada de capital estrangeiro.
Como já deve ser óbvio, os dois últimos sinais são os que mais motivaram a publicação deste artigo. Ora, é alarmante identificarmos que o governo pretende ampliar ainda mais as garantias que protegem as concessionárias da volatilidade da demanda de passageiros. Ao passo que extinguiu a Emplasa (Empresa Metropolitana de Planejamento, responsável pelo planejamento regional de toda a Macrometrópole) e ameaça extinguir a EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos, responsável pelos ônibus municipais nas regiões metropolitanas paulistas), o governo ainda está disposto a celebrar contratos com duração mínima de 30 anos, mesmo que precise gastar mais para reduzir os riscos do privado.
O que se estuda agora é “ampliar substancialmente” essa proteção, sobretudo no período inicial da concessão. Ainda não estão claros os efeitos da pandemia sobre a mobilidade das pessoas, com o uso crescente do teletrabalho, nem mesmo se a economia terá uma recuperação mais ou menos veloz. Sem falar na possibilidade de atraso da vacina e de novas ondas de contaminação.
Por isso, a equipe responsável pela estruturação das concessões no governo Doria acredita que é hora de compartilhar, de o Estado assumir uma parte maior dos riscos, de modo a não afastar nenhum investidor nem diminuir as chances de sucesso dos leilões.
Perguntamo-nos: o que seria “ampliar substancialmente” a proteção? O período inicial de uma concessão tão longa compreende quantos meses ou anos? Se os efeitos não estão claros, como contratualizar as incertezas sem ferir o Estado e a população? Como funcionará o custeio dos gatilhos de garantia por faixas ou bandas de demanda, há risco de que provoquem a corrosão de outorgas ou contrapartidas privadas auferidas com o programa de desestatização? Nada disso está claro.
Com relação à contrapartida, ela não é impressionante, como já havíamos alertado no passado. R$ 2,6 bilhões de reais se traduzem num investimento médio de 86,6 milhões por ano. Sabemos por fonte oficial que uma estação grande e complexa como Suzano custou ao menos R$ 80 milhões (desconsiderando correções devido à inflação). Não por acaso o projeto da Estação Lapa foi empobrecido e a modernização do mezanino da Estação Palmeiras·Barra Funda dependerá de outra concessão. A conta simplesmente não fecha, ainda mais se consideramos que a concessionária precisará adquirir 30 novos trens, devolver parte do material rodante em perfeitas condições e garantir que os trens remanescentes serão modernizados a partir de um determinado momento do contrato.
Na prática, a concessão transfere o potencial de exploração de duas linhas para o privado sob patrocínio do erário estadual, ou seja, sob patrocínio de todos os contribuintes. A iniciativa privada precisará fazer o mínimo do mínimo para manter a operação viável e terá a demanda de passageiros garantida, pois o governo cobrirá a diferença, se necessário. Não é maravilhoso?
Sem entrar na problemática ligada à drogadição, vale lembrar que, enquanto a concessão estava sendo debatida, a CPTM tentou implantar um novo acesso na Estação Júlio Prestes a partir de um chamamento para doação dos serviços, equipamentos e materiais necessários. Considerando a concessão, não dava para incluir o acesso e algo mais sofisticado numa das maiores, mais belas e mais subutilizadas estações da malha da estatal?
Sabendo que a Companhia do Metropolitano de São Paulo (METRÔ, usualmente grafada como Metrô), em franca posição concorrencial em relação à CPTM, já permite declarações que indicam claramente que concessões robustas e agregadoras de valor exigem empreendimentos imobiliários sofisticados, temos dúvidas se realmente faz sentido entregar linhas que:
- Atendem o calçadão de Osasco, que é basicamente a “segunda 25 de Março” da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP);
- São o único transporte de massa mais perto das áreas comerciais de Alphaville no município de Barueri, que abriga população fixa e flutuante relevante;
- São o principal transporte de massa que atende as novas centralidades surgidas ao longo da Marginal Pinheiros, como a Berrini, a região da Vila Olímpia e o entorno do MorumbiShopping;
- Possuem um pátio gigantesco na divisa de São Paulo e Osasco, em Presidente Altino, que poderia ensejar uma ação de desenvolvimento urbano e socioeconômico sem precedentes, que seria beneficiada pela presença do Estado.
Se o governo realmente quer avançar com a concessão, gostaríamos de vermos sanadas não só as dúvidas anteriores, mas também por qual motivo o componente imobiliário não parece fazer parte da equação. Se existem entraves legais e o mercado está tão interessado — e costurando cláusulas garantistas nos bastidores, aparentemente —, que tal se movimentar para resolver o problema no marco regulatório?
Os rumos colocados para as linhas Diamante e Esmeralda parecem muito tímidos. O COMMU alerta desde 2016 para os impactos negativos da possível concessão. Precisamos exigir um aumento do escopo e mudanças nas premissas, que busquem o desenvolvimento socioeconômico, a resolução de problemas históricos ligados à habitação e à vulnerabilidade social ao longo da faixa de domínio e um aumento substancial da conectividade e dos serviços oferecidos. O conteúdo mínimo da concessão deveria prever, para além do que já está sendo aventado:
- A possibilidade de levar a Linha 9-Esmeralda até a Estação Lapa, na forma de uma “operação em Y” ou como uma mudança definitiva, como parte do Expresso Oeste-Sul;
- A necessidade de desenvolver planos locais em conjunto com os municípios, principalmente para regiões vulneráveis, como são aquelas atendidas pela extensão operacional da Linha 8;
- A construção de moradias populares em empreendimentos de uso misto e com diversidade de perfis de renda, de forma a não “guetificar a pobreza” e produzir conjuntos arquitetônicos que terminam estigmatizados e se transformam em bolsões de trabalhadores de baixa remuneração, facilmente descartáveis;
- Soluções definitivas para uma série de favelas, especialmente a do Moinho, a Porto de Areia e a Santa Terezinha;
- Implantação de um ou mais serviços expressos, seja recuperando o Expresso Oeste-Sul, seja modelando outras possibilidades;
- Estímulo ao turismo em São Roque, como forma de repolarizar as relações de trabalho, lazer e renda no extremo oeste metropolitano;
- Melhorias substanciais para a transposição entre as margens do Pinheiros, incluindo construção de novos acessos para as estações da Linha 9.
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