Por Caio César | 09/10/2020 | 10 min.
Mais do que nunca, estamos cada vez mais entrincheirados em meio à troca de tiros entre partidos e candidatos. A cada minuto, são disparadas inúmeras informações sobre os mais diversos assuntos, por diferentes canais. Muitas das informações, no entanto, enveredam por uma disputa ideológica praticamente religiosa, que não busca ou omite determinadas informações. Cansados do fogo cruzado e das metralhadoras de desinformação, decidimos recuperar algumas considerações sobre a regulação de sistemas de transporte público coletivo. Ideologias podem, é claro, nortear princípios, mas não faz sentido defender uma ideia sem buscar formas de sustentá-la.
Este artigo foi motivado por uma publicação do Livres, divulgando um comentário de Juan Savedra (Novo), candidato ao cargo de vereador na câmara do município de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Obviamente, vamos nos ater ao elemento central do argumento: o sistema de ônibus seletivo deve concorrer com o sistema de ônibus regular, de forma que a política tarifária não deve adotar mecanismos de vinculação entre tarifas ou de prevenção à canibalização.
O transporte é um dos maiores problemas das capitais brasileiras. A solução é com mais liberdade, replicação de boas ideias e desburocratização. Veja o comentário de @JuanSavedra30.
— LIVRES (@EuSouLivres) October 9, 2020
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Em suma, Savedra propõe a selvageria. As deseconomias de escala decorrentes do processo, obviamente, não são parte do argumento destacado pelo Livres. Se o sistema viário é finito e disputado por múltiplos atores que não precisam adotar posturas solidárias, uma vez que estas podem reduzir seus lucros e modificar o comportamento das barreiras de entrada para criação de oligopólios ou monopólios, por que o poder público deveria reduzir seu papel regulador?
As lotações de Porto Alegre são basicamente micro-ônibus, cuja capacidade é intrinsecamente baixa. A tarifa custa R$ 6,60. Questionamos: por que as lotações que miram no público que deseja um transporte de padrão executivo deveriam competir com os ônibus, que adotam uma lógica de funcionamento que inclui diferentes tipos de serviços com foco na regularidade e capacidade, não no conforto? Por que veículos de baixa capacidade devem ser estimulados a ocupar o espaço viário que já não prioriza adequadamente os veículos de maior capacidade?
Não somos contra transportes seletivos. Entendemos que estes podem ser um aliado para fornecer alternativas às classes com maior poder aquisitivo, no entanto, sua adoção precisa estar atrelada a políticas de encarecimento e restrição à circulação de automóveis. A alternativa sozinha, pouco ou nada significa. A priorização do sistema viário em torno do transporte público também é essencial. Ônibus confortáveis são bons, mas são melhores ainda quando não ficam presos em engarrafamentos.
Qualquer solução, como deveria ser óbvio, passa pelo sistema viário, uma infraestrutura pública, controlada e construída a partir do poder público. A escassez do viário não é mitigada promovendo a competição irracional e a canibalização, ignorando as externalidades decorrentes, tanto para os competidores, quanto para os passageiros, que jamais podem ser reduzidos à figura de clientes. Não estamos falando de um bazar ou uma feira livre, não estamos falando de atividades de baixa complexidade. Estamos falando de sistemas de circulação que estão intimamente ligados com a vida e economia de uma cidade.
A discussão em torno de sistemas que prezam por maior conforto não é surpreendente. Temos observado a pressão pela implantação de sistemas pouco ou nada regulados, cuja mediação entre consumidor e operador se daria por plataformas tecnológicas com princípios nebulosos de governança. Estes sistemas se encaixam no difuso termo MaaS (Mobility as a Service, ou Mobilidade como um Serviço, em tradução livre para o português brasileiro). Preocupados com o avanço do lobby, temos publicado artigos criticando a postura de oligarcas, jornalistas e parlamentares. Também acreditamos que soluções mais caras, baseadas no transporte sobre trilhos, deveriam ser avaliadas.
Infelizmente, a proposta de Savedra é um convite à erosão do sistema de ônibus, processo este que não é nenhuma novidade na América Latina. O município de São Vicente, no litoral sul paulista, ficou muitos anos sem um sistema de ônibus adequado, ficando refém de lotações que só receberam melhorias de acessibilidade após a chegada do VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos). As exigências da EMTU condicionavam a integração com o sistema de metrô leve à adoção de veículos acessíveis, como sublinhavam Diário do Transporte e A Tribuna em maio de 2016:
Seriam necessários veículos de maior porte com duas portas e que tenham acessibilidade, exigências do Contran e da EMTU para a integração.
Além disso, o sistema de bilhetagem atual é arcaico. Hoje não existe o chamado travamento de catracas. O cálculo dos bilhetes é feito por amostragem, o que impede o uso de um cartão único de forma integrada já que o sistema não permite uma definição exata sobre o valor da tarifa.
Ou seja, em São Vicente, até muito recentemente, ônibus era sinônimo de ônibus intermunicipal. Enquanto a vizinha Santos ostentava uma frota municipal em melhor estado de conservação e com ar-condicionado, além de alguns poucos trólebus, São Vicente amargava uma profusão de micro-ônibus, que paulatinamente foram substituindo as vans. A baixa regulação levou ao arcaísmo dos operadores, que formaram um monopólio. Capitalismo típico e auto-explicativo. Pior, a substituição dos veículos, segundo investigações, foi engatilhada pela captura do legislativo, num esquema conhecido como “Máfia das Lotações”:
De acordo com as investigações, o vereador atuava como um lobista dentro da Câmara Municipal, enquanto o secretário Sinval Braz teria sido o responsável por alterar as regras para os profissionais do transporte alternativo. Entre as mudanças realizadas por Braz, está a obrigatoriedade da troca dos veículos por modelos mais caros, o que obrigou muitos cooperados que não faziam parte do esquema a venderem seus alvarás para integrantes da quadrilha.
Um arcabouço regulatório e licitatório minimamente adequado considera a modelagem dos riscos da empreitada. Tanto a população quanto a municipalidade não têm a obrigação de serem clientelistas, ou seja, não é do interesse público facilitar a vida de operadores que não demonstram capacidade para operar frotas com as tipologias tecnicamente desejáveis. Para minimizar o surgimento de esquemas, a concorrência deve ser definida no âmbito do certame, não num mercado cinza.
Bogotá, uma das cidades mais importantes de nosso continente, enfrentou protestos violentos para conseguir implantar um sistema integrado de transportes. A construção do TransMilenio envolveu protestos de operadores e até hoje não foi capaz de romper com o marketshare do sistema de baixa capacidade, que ainda transporta a maioria da população. Apesar das canaletas de alto impacto, que contam até mesmo com viadutos em meio a rodovias urbanas agressivas, a maior parte dos bogotanos continua se apinhando em veículos de baixa capacidade e padrões duvidosos de segurança, que têm sido paulatinamente incorporados a um sistema integrado que se parece mais com o século XXI. Datas importantes, compiladas a partir de reportagem do El Tiempo e da Wikipédia anglófona:
- Maio de 2006: Luis Eduardo Garzón, então líder do Executivo bogotano, afirmou que não cederia à greve contra mudanças no rodízio veicular para retirar ônibus com mais de 10 anos das ruas, compensação financeira para incentivar a aposentadoria de ônibus com idade superior a 10 anos, entre outras medidas;
- Maio de 2003: paralisação contra a suposta intransigência do governo em relação às linhas operadas por mais de 2 mil veículos;
- Agosto de 2001: paralisação de três de taxistas devido à implantação do esquema “Pico y Placa” (rodízio veicular)
- Janeiro de 1999: operadores legalizados entraram em greve contra o prazo de transição de 180 dias para operadores ilegais.
De acordo com o CPI (Centre for Public Impact), 25% da taxa sobre combustíveis recolhida por Bogotá é aplicada na expansão do TransMilenio, considerado financialmente e tecnicamente viável por meio de estudos exaustivos. A composição do custeio claramente demonstra que um projeto de tamanha envergadura jamais seria possível a partir de medidas desregulamentadoras e pelo estímulo à concorrência selvagem. O CPI destaca ainda o papel regulamentador estatal, com a contratualização da remuneração considerando a quilometragem e não o volume transportado, eliminando uma “guerra por centavos”. Críticos, como Anthony Ling em seu site Caos Planejado, entretanto, sustentam que a viabilidade do sistema depende de um alto índice de ocupação e que o TransMilenio erra ao restringir forçadamente seus concorrentes.
Por outro lado, como salienta a ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos), não faz sentido adotar a lógica de um mercado de concorrência perfeita. Se o excesso de centralização pode levar a problemas, o excesso de descentralização também pode:
A mesma ANTP também adverte que sistemas desregulados vão na contramão na busca por sistemas de boa qualidade e com alto nível de organização e integração. As externalidades, mais uma vez, possuem papel-chave.
Sem pretender esgotar o tema, concluímos este artigo alertando que não existe um formato único e perfeito. Um sistema de transporte público não é um produto de prateleira, que pode ser adquirido e colocado em funcionamento sem adaptação. O COMMU acredita que o poder público tem um papel muito importante a desempenhar e que sistemas desregulados possuem pouco espaço para enfrentar desafios complexos. A operação de subsistemas com menor complexidade, pode, é claro, ser viável, mas a lógica a ser adotada e orquestrada pelo poder público deve ser a da complementaridade, jamais a da competição com pouca ou nenhuma regulação.
Não solucionaremos o transporte de nenhuma cidade com selvageria. É preciso complementaridade, busca por evidências, rigor técnico, participação popular e fortalecimento do poder público para que não seja facilmente capturável. Entender que a cidade é um organismo que não pode ser tutelado não é sinônimo de dizer que a cidade funciona melhor sem nenhuma tutela.
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