Tatuapé: por uma ciclovia na Itapura (parte 1)

Por Caio César | 02/11/2020 | 6 min.

Legenda: Fotocolagem utilizando diferentes elementos associados à infraestrutura cicloviária, como placas de sinalização, extraídas de diferentes pontos da Av. Ver. Abel Ferreira. O elemento-chave é a placa do cruzamento das ruas Itapura e Tijuco Preto. A bicicleta de fundo estava estacionada na Rua Tuiuti
Discussão acalorada assunto evidencia os desafios da participação popular e da mediação de conflitos, além de reforçar que mais estratégias de comunicação são necessárias para viabilizar a construção de uma São Paulo melhor

Série especial

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Contextualização

Dias atrás, uma acalorada discussão em torno de uma ciclovia na famosa Itapura, uma das principais ruas da parcela mais boêmia e gastronômica do Tatuapé, na Zona Leste de São Paulo, alertou, mais uma vez, que boas práticas de planejamento e de desenho urbano estão bem longe de serem um lugar-comum numa das maiores e mais importantes cidades do planeta.


Nos anos 2000 tomou força o comércio ligado aos ramos de restaurantes, bares e eventos, atraídos pela dinamização econômica da região. Os arredores da Rua Itapura e as proximidades com a Praça Sílvio Romero, ambos no alto Tatuapé, tornaram-se locais marcados por bares e também por lojas cujos donos enriqueceram na região, dividindo espaço também com marcas que migraram para o bairro com a valorização.

Legenda: Vista da Rua Emília Marengo (acima), que dá acesso à Itapura (primeira à esquerda, não visível na fotografia); tráfego na Itapura numa tarde (inferior esquerda); e parklet na frente de uma sorveteria (inferior direita)

A Itapura é uma rua de mão única com quatro faixas, das quais duas são ocupadas por parklets e veículos estacionados e duas são utilizadas para tráfego misto. A via é uma importante ligação entre a parte alta do Tatuapé e a rua Emília Marengo, que funciona cada vez mais como uma extensão da Itapura, concentrando mais bares e restaurantes, e a Radial Leste, na parte baixa, exercendo papel crucial no percurso da Linha 3729-10 da SPTrans (Shopping Aricanduva-Metrô Carrão). Em 2019, a Linha 3729-10 esteve entre as dez linhas municipais de maior demanda que cruzam o distrito do Tatuapé, conforme levantamento feito pelo COMMU a partir de planilhas publicamente disponíveis.

Legenda: Gráfico comparativo (2020 × 2019) das dez linhas mais demandadas que cruzam o distrito do Tatuapé, classificado em ordem decrescente a partir do volume acumulado de passageiros transportados em 2019. Fonte: SPTrans

A discussão, evidentemente, não surgiu a esmo. Uma ou mais pessoas custearam a produção e instalação de uma faixa repudiando a instalação de uma ciclovia, o que chamou a atenção de coletivos de ciclistas, como o Bike Zona Leste, que propôs uma bicicletada de última hora para remoção do artefato. A fotografia da faixa, no entanto, apareceu primeiro na página Viva Tatuapé, que promove o bairro e veicula anúncios de estabelecimentos locais, atraindo centenas e centenas de comentários — pelo menos 1 mil comentários, desde que este artigo foi escrito. Foi ali, naquela publicação e seus comentários acalorados, que encontramos material para produzir este artigo.

Combatendo a desinformação

Sem pretender esgotar o tema, gostaríamos de destacar uma série de aspectos a partir de argumentos ou opiniões (muitas delas sem qualquer embasamento) registradas naquela publicação. A seguir, você confere as principais ideias que decidimos rebater. Optamos por não reproduzir os comentários na íntegra, parafraseando os argumentos. Salientamos que o COMMU não endossa ou promove qualquer tipo de “caça às bruxas”.

Dimensões supostamente proibitivas do viário

Consideramos que uma das preocupações mais frequentes está relacionada à ideia de que a rua é simplesmente muito estreita para comportar novos usos. Consideramos o argumento contraditório, pois, em situações de escassez, devemos buscar otimizar recursos. Do nosso ponto de vista, o potencial da rua está subutilizado.

Sabemos que isto vai soar como um absurdo para alguns dos moradores, frequentadores e comerciantes, mas aquela rua não é estreita, é mal utilizada. Como dissemos, ela tem quatro faixas de circulação, sendo que duas estão sequestradas por estacionamentos na maior parte do tempo, o que significa que a capacidade teórica de aproximadamente 1 mil pessoas/hora por faixa, que totalizaria cerca de 4 mil pessoas/hora no total, foi reduzida para cerca de 2 mil pessoas/hora. E estamos sendo especialmente otimistas com o patamar de 2 mil pessoas/hora, pois a rua é servida por linhas de ônibus com boa frequência.

Para nós é óbvio que colocar uma ciclofaixa decente, melhorar calçadas e priorizar quem precisa circular (ou seja, transporte público coletivo e veículos de logística) garante melhor fluidez, pois privilegia modos de maior capacidade.

A máxima em torno do discurso das dimensões do viário é invencível, porque se baseia na ideia de que, se está congestionado, é porque falta capacidade, não porque os veículos que circulam utilizam mal o potencial de capacidade. Lamentamos, mas numa cidade como São Paulo, reduzir congestionamentos significa enxugar o sistema viário, não ampliá-lo. Se os cursos de planejamento territorial e urbanismo fossem orientados por algumas das opiniões, seria preciso desapropriar metade do Tatuapé para implantar largas avenidas e grandes estacionamentos, o que, no entanto, transformaria o Tatuapé num bairro sem atrativos e ainda mais congestionado.

Por que o poder público deveria desapropriar uma das ruas mais interessantes do bairro — e, talvez, de toda a Zona Leste —, encarando os preços de um dos m² mais valorizados da cidade? Seria uma empreitada que descaracterizaria todo um tecido empresarial consolidado, que atraiu a atenção até mesmo de personalidades, como Paola Carosella, que escolheu a rua Itapura para receber uma unidade do La Guapa Empanadas.

Baixa utilização das ciclovias

A ideia de que ciclovias estão sempre vazias deve ser um dos mitos mais alardeados (e não é difícil encontrar textos rebatendo). O uso da bicicleta como principal meio de transporte cresceu 24% em São Paulo desde 2007.

De forma exagerada, poderíamos dizer que as ciclovias de hoje são as ruas e avenidas para o carro amanhã. São Paulo tem uma malha muito pequena e muito mal estruturada, apesar de ter dimensões de fazer inveja para um país europeu. A ideia de que as ciclovias são subutilizadas e, logo, inúteis, é ingênua ou mau-caráter: se o automóvel pode circular da forma que circula em São Paulo, é porque recebeu muita infraestrutura e incentivos (diretos ou indiretos). São Paulo não nasceu congestionada, mas sim, foi paulatinamente adaptada, retalhada, deformada e acachada, abrindo mais e mais espaço para os automóveis, induzindo demanda.

Sendo assim, é claro que ciclovias nem sempre são movimentadas. E não, não é um problema. A receita é continuar ampliando a malha cicloviária e aumentando o número de equipamentos e políticas de apoio, como a construção de para-ciclos, bicicletários e a permissão para utilização de ônibus com *rack *frontal para até duas bicicletas, por exemplo. Assim como aconteceu com os carros ao longo de mais de um século, a ideia é que, ao longo de uma ou duas décadas, mais e mais pessoas pedalarão. Demanda propositalmente induzida.

Legenda: Ciclovia junto ao meio-fio do canteiro central da Av. Ver. Abel Ferreira: conectividade prejudicada devido à ausência de ciclovias em direção ao sistema metroferroviário e em ruas como Itapura, Apucarana, Coelho Lisboa e Monte Serrat

Houve quem citasse, por exemplo, as poucas ciclovias implantadas no Jardim Anália Franco, acusando-as de serem pouco ou nada utilizadas, sem, porém, considerar que sua conectividade permanece insatisfatória. Apesar da proximidade em relação às estações Belém, Tatuapé e Carrão, estas ainda não apresentam boa acessibilidade por meio da bicicleta, além de não contarem com bicicletários (apenas a Estação Carrão possui um, pequeno e com horário de funcionamento restrito ao período compreendido entre 7h00 e 20h00, como é praxe por parte da visão tacanha da Companhia do Metrô). Reverter a situação exige, por exemplo, implantar uma ciclovias em ruas como a Itapura e Monte Serrat, enfrentando o reacionarismo do Tatuapé.




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