Mobilidade regional: mídia especializada não pode se limitar a entregar recados

Por Caio César | 04/11/2020 | 8 min.

Legenda: Ônibus rodoviário da Viação Cometa passa na frente das baias do Terminal Rodoviário Tude Bastos, Praia Grande, Região Metropolitana da Baixada Santista
Papel de “garoto de recados” da mídia especializada não contribui para esclarecer consumidores e população em geral. Fogo cruzado não passa de uma disputa mercadológica, que não tem comprometimento com um olhar holístico para as cidades dependentes dos serviços

Nos últimos dias, temos assistido a um verdadeiro tiroteio silencioso na arena da comunicação, no qual dois players tentam vencer, pelo disparo recorrente de releases de imprensa, a opinião pública e a disputa por espaço em blogues, jornais e outros veículos.

De um lado, uma plataforma tecnológica e empresas de fretamento, do outro, o Estado e empresas tradicionais do transporte rodoviário de passageiros. Houve até uma manifestação envolvendo os primeiros, ocorrida na última quarta-feira, 28, com a circulação de ônibus rodoviários em importantes avenidas da capital. Dando nome aos bois, temos, de um lado, a Buser e as empresas de fretamento que operam mediadas por seus sistemas, do outro, a Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Ministério Público do Estado de São Paulo e as empresas representadas pelo SETPESP (Sindicato Empresas Transportes Passageiros do Estado São Paulo). Em disputa, o direito de participar do mercado de viagens rodoviárias por ônibus, dentro e fora de São Paulo.

Acompanhamos tudo de camarote, recebendo e-mails das assessorias de imprensa, que em questão de poucas horas, eram reverberados por outros veículos sem qualquer perspectiva crítica. As notificações só mudavam de lugar, o conteúdo era basicamente o mesmo. O COMMU, como um coletivo de pessoas engajadas com a qualificação do debate e a melhoria das condições de mobilidade e desenvolvimento das cidades das regiões metropolitanas paulistas, evidentemente, adotou uma postura cautelosa.

Legenda: Exemplos de e-mails recebidos nos últimos dias. Clique para ampliar

Nos textos aos quais tivemos acesso, percebemos que conceitos como monopólio, oligopólio e papel regulador do poder público eram estressados sem pudor. Quem perde com isso tudo? Você, caro leitor ou cara leitora, que fica refém de experimentos tecnológicos sob o pretexto de economizar e desfrutar de inovações tecnológicas, quando, na verdade, provavelmente está atuando ativamente em prol da erosão de um sistema comprovadamente funcional de mobilidade regional.

Salientamos que não estamos dizendo que é preciso tolher a inovação tecnológica e, menos ainda, estamos dizendo que viajar de ônibus a partir das rodoviárias espalhadas pelo estado é uma panaceia. Não é. Há muitos problemas e não existe uma lógica de rede, com um sistema robusto de planejamento e monitoração de rotas. Apesar de os atuais serviços se sustentarem como modelo de negócio, claramente possuem falhas e não são nenhum exemplo de inovação tecnológica.

Ainda assim, é preciso que a sociedade tenha um olhar crítico mais apurado antes de, literalmente, embarcar no próximo aplicativo do momento. A Buser se coloca como uma espécie de “Uber do ônibus”, o que é sintomático, uma vez que a Uber, que media uma operação idêntica àquela dos táxis convencionais, possui um modelo de negócios que depende de capital de risco, captura de dados, desenvolvimento de tecnologias de veículos autônomos e desidratação do transporte público para se manter viável — leia-se, dar prejuízo, mas não quebrar —, não é transparente e jamais assume as externalidades que provoca. Nos Estados Unidos, Uber e Lyft contribuíram para reduzir o uso do transporte público (algumas cidades até reduziram os serviços) e produzir terríveis efeitos, beneficiando os ricos em detrimentos dos pobres e idosos e, mesmo em São Paulo, a maioria dos usuários da modalidade Uber Juntos veio do transporte público. A pesquisa “Viver em São Paulo: Mobilidade Urbana”, realizada pela Rede Nossa São Paulo, não revelou resultados muito animadores.

Legenda: Edição 2020 da pesquisa de mobilidade urbana da Rede Nossa São Paulo mostra a forte utilização de aplicativos de táxi e transporte particular em nas regiões que abrigam os principais centros da capital (Novo/Av. Paulista, Velho/Sé, Av. Berrini, Av. Faria Lima etc), as mesmas que, a despeito da maior oferta de transporte público, possuem menor predisposição em abandonar o automóvel (slides 22 e 41, respectivamente)

Com as nossas mais sinceras desculpas aos fãs de aplicativos, afirmamos firmemente que a disputa em torno da ideia de que um monopólio está sendo quebrado é patética. Sistemas de transporte coletivo nada mais são do que um monopólio natural. Quando a Buser diz que está quebrando um monopólio, ela está mentindo. A Buser concorre com um oligopólio, é verdade, mas é um oligopólio formado não só a partir de práticas liberalizantes do passado, mas legitimado a partir de um arcabouço jurídico que regula um complexo sistema de permissões (que pode e deveria evoluir para uma operação concessionada mais fortemente regulada), em outras palavras, o governo é o mediador, ele garante padrões de concorrência (quando do fornecimento de permissões ou realização de concessões), que estão atrelados a determinadas lógicas de funcionamento. É muito mais complicado do que pode parecer inicialmente.

A Buser, na verdade, funciona como uma atravessadora tecnológica entre empresas que ficaram de fora do circuito e o consumidor que busca preço baixo acima de qualquer coisa. A plataforma disputa um mercado regulado, sem, porém, aderir formalmente a ele. Isso implica numa assimetria óbvia de custos e obrigações, que vai, é claro, provocar uma erosão em algum momento.

Foi surpreendente observar que até o ex-Secretário dos Transportes Metropolitanos Jurandir Fernandes embarcou na ideia de que o futuro é a MaaS (Mobility as a Service, livremente traduzida como Mobilidade como Serviço), como revelou artigo recentemente publicado, no entanto, mesmo numa leitura rápida, fica evidente que serviços sob demanda não substituem os serviços convencionais, muito menos ganham caráter estruturador, ou seja, serviços como Uber e similares não serão capazes de moldar o território como ferrovias e corredores do tipo BRT (Bus Rapid Transit, termo que pode ser livremente traduzido como Transporte Rápido por Ônibus).

Com a analogia da erosão (ou desidratação), queremos dizer que o mercado regulado vai começar a ruir. Há quem se divirta com isso, imaginando que a vingança àquela empresa que prestou um mal serviço em determinado momento finalmente chegou. Ledo engano.

Se o mercado quebra, a mobilidade regional quebra. O sistema regulado oferece universalidade e regularidade essenciais para a manutenção de economias regionais, que, por sua vez, envolvem múltiplas economias locais, em diferentes níveis. Do ponto de vista de uma modelagem mais rigorosa, poder-se-ia argumentar que o sistema é ineficiente e pouco otimizado. E, sim, é verdade.

Ônibus partem vazios em diversos momento do dia, mas a solução dos atravessadores é reduzir a oferta e anular qualquer princípio de universalidade. Pronto, temos aí a otimização de lugares, viagens e preços: você viaja quando o pacote estiver fechado. Não há pacote fechado? Então, você não viaja. Como plano B, você pode recorrer ao tal “monopólio” que, hoje, (in)felizmente, não deu para quebrar, porque ele é obrigado a manter as cidades articuladas e, muito provavelmente, vai ter ônibus partindo a cada 30 ou 60 minutos de uma rodoviária bem localizada e bem conectada ao transporte público.

Se nós estivéssemos falando de um fretamento esporádico, não haveria grandes problemas, mas o sistema explora a lógica do fretamento para competir com as rotas rodoviárias fixas. Como parte do corte de custos e contorcionismo jurídico, estruturas como o Terminal Rodoviário do Tietê são deixadas de lado. O passageiro pode embarcar num terreno ao lado, que efetivamente faz o papel de rodoviária, mas sem o comprometimento com o padrão de terminal desenhado pelo estado décadas atrás, ou seja, sem a mesma garantia de segurança, oferta de comércio e serviços, proteção a intempéries e outras características. O desembarque no destino vai seguir uma lógica similar ou, na melhor das hipóteses, ocorrer num posto de gasolina com restaurante.

Lamentamos, mas não faz sentido. Estamos “jogando o bebê fora com a água do banho”. Hoje, normalizamos o embarque no terreno cheio de pedriscos e, tudo bem, achamos que só nossos sapatos é que ficam sujos, enquanto nossa consciência está limpa. Amanhã, se a rodoviária e aquelas operações perderem a viabilidade, entrarem em decadência e gerarem prejuízos que ultrapassarem o capital da Buser, quem pagará a conta? Quem recuperará os setores afetados nas inúmeras cidades atendidas pelas rotas fixas?

Este artigo foi adaptado a partir de uma série de tuítes publicados em 15/04/2020. Seu objetivo é estimular a reflexão, apontando uma série de questões que precisamos ter em mente antes de ceder a qualquer tipo de lobby em torno das ofertas de mobilidade como serviço sob demanda. Como de costume, as noções de que serviços de transporte não são produtos de prateleira e de que é um equívoco supervalorizar a mobilidade demandada via aplicativos, são dois pilares fundamentais da argumentação.

Às empresas tradicionais do ramo, é melhor que compreendam que, enquanto estiverem acomodadas devido à condição de oligopólio com frouxidão regulatória, como parte do processo de evolução tecnológica e da “commoditização” que vêm a reboque, estarão sujeitas a ameaças do tipo. Estas empresas, muitas vezes ligadas a oligarquias familiares com capital político e social, deveriam, antes que seja tarde, buscar a adoção de tecnologias e a flexibilização de parte do modelo de negócios. A ideia de rotas flexíveis a menor preço, mediadas por um aplicativo, não é ruim, tanto que a Buser a explora, o desafio é encaixá-la dentro da manutenção do sistema regular, que continua a ser essencial e tem papel social indiscutível, principalmente num contexto de eliminação do transporte ferroviário de longa e média distâncias.

Ao governo do estado, é urgente a revisão do marco regulatório e uma maior interlocução com os atores envolvidos, além da retomada do transporte ferroviário, com prioridade à Macrometrópole Paulista. A intensificação da retomada do transporte ferroviário, como já acenou a Cia. do Metrô de São Paulo na última Semana de Tecnologia Metroferroviária, depende de um arcabouço legal capaz de permitir a exploração de empreendimentos imobiliários sofisticados. Finalmente, como medida aceleradora adicional, acreditamos ainda que a faixa de domínio das rodovias deveria abrigar linhas ferroviárias e sistemas alimentadores estratégicos de baixo custo e elevada automação, que poderiam ou não envolver um arranjo com as atuais concessionárias, a depender da modelagem desejada.




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