Tatuapé: por uma ciclovia na Itapura (parte 3)

Por Caio César | 09/11/2020 | 5 min.

Legenda: Fotocolagem utilizando diferentes elementos associados à infraestrutura cicloviária, como placas de sinalização, extraídas de diferentes pontos da Av. Ver. Abel Ferreira. O elemento-chave é a placa do cruzamento das ruas Itapura e Tijuco Preto. A bicicleta de fundo estava estacionada na Rua Tuiuti
Não é engraçado dizer que falta planejamento para coibir a implantação de uma pequena faixa destinada ao tráfego de bicicletas, mas se calar diante dos equívocos do rodoviarismo?

Série especial

Você está lendo uma série especial de artigos a respeito do Tatuapé e da Rua Itapura. Para visualizar os artigos já publicados, clique aqui. A primeira parte apresenta uma contextualização para a discussão apresentada.

Combatendo a desinformação

Nesta segunda parte, daremos continuidade à contra-argumentação. Desta vez, rebataremos dois lugares-comuns: (i) ciclovias devem ficar em ruas ermas; e (ii) falta ou não há planejamento.

Ciclovias não deveriam ser implantadas em ruas movimentadas

Sem entrar no mérito do que é ou não ser movimentado, o discurso é simplesmente contraditório, porque, mais uma vez, vai na contramão de qualquer noção minimamente racional de otimização. Ora, se a movimentação é grande, então que se priorize as formas mais eficientes de locomoção.

Outro problema é que, além de impor critérios subjetivos, que desrespeitam a conectividade viária necessária e desejável, priva o ciclista de acessar as vias principais com a bicicleta, premiando, novamente, o automóvel, que é menos eficiente. Não faz sentido.

O automóvel pode circular pelas ruas ermas e deixar as ruas movimentadas para os veículos que realmente importam. O condutor pode, então, desembarcar do veículo e ir a pé, transbordando civilidade. O cenário atual é, com o perdão de franqueza, barbárie.

A mesma ideia já havia aparecido numa audiência pública realizada em 2019, sendo veementemente rebatida pelos ciclistas presentes. A audiência pública, que também foi marcada por tensão e pelo mesmo repertório ignorante de argumentos, foi abordada num artigo do COMMU.

Supostos falta de planejamento e crescimento urbano desordenado

Planejar é legislar. O Tatuapé é um dos mais tradicionais de São Paulo e passou pela transição de uma paisagem predominantemente rural para uma completamente urbana. Nos dias atuais, do passado rural, praticamente nada resta, exceto talvez a homenagem à família Marengo, que cultivava uvas numa chácara localizada nas imediações da Sexta Parada, umas das estações originais da EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), que deu origem às atuais linhas 11-Coral (Luz-Estudantes) e 12-Safira (Brás-Calmon Viana) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), como revela o Dicionário de Ruas em pesquisa à Rua Francisco Marengo.


Assim, o processo de urbanização da zona leste coincide com o segundo momento de sua evolução quando desenvolvem-se, no início do século XX, os bairros próximos ao centro da cidade e ligados ao movimento de industrialização - como Pari, Catumbi, Mooca, Belém, Belenzinho e Brás. O terceiro momento de ocupação da área se processaria com a apropriação do espaço por bairros de população de baixa renda, compreendendo áreas como Itaim Paulista, Itaquera, Vila Formosa, Vila Prudente e Ermelino Matarazzo, e talvez se possa falar em um quarto momento, o mais recente, marcado pela implantação de conjuntos habitacionais na periferia da zona leste. [...]

Apesar de parecer óbvio, é importante situar no tempo a urbanização do Tatuapé, que, acompanhado de seus vizinhos, remonta às primeiras décadas de 1900. O bairro é um exemplo clássico de bairro da chamada cidade formal, que contrasta com a periferia autoconstruída, localizada a vários quilômetros de distância e que avança no tecido de municípios como Ferraz de Vasconcelos, Poá e Itaquaquecetuba.

Com base na mesma obra (p. 105), organizamos uma tabela com as fases de ocupação do bairro:

E, ainda que se discuta este processo de ocupação que não tem como destaque uma ocupação extremamente veloz e realizada por um proletariado que se vê obrigado a construir a própria moradia aos finais de semana, adquirindo lotes com pouca ou nenhuma infraestrutura, a subprefeitura da Mooca, responsável pelo bairro, assim como todas as outras subprefeituras, foi objeto da elaboração de um plano regional na gestão Fernando Haddad (PT), que antecedeu a atual gestão Bruno Covas (PSDB).

Para além do plano regional, o zoneamento da cidade tem surtido efeito de facto. O Tatuapé é um bairro com zoneamento permissivo (misto, com poucas variações), que dialoga com a vocação de comércio, serviços e consolidação como centro regional, que poderá evoluir para um centro metropolitano (se é que já não tenha se tornado um). Utilizando um software como o QGIS e os arquivos fornecidos pela prefeitura, é possível investigar cuidadosamente o zoneamento.

Legenda: Arquivos do zoneamento carregados e devidamente configurados no QGIS, com cores e padrões próximos daqueles utilizados pela municipalidade. Podemos evidenciar que a maior parte do tecido permite uso misto, com destaque para eixos estruturantes com papel local ou metropolitano. Clique para ampliar

O sistema viário do bairro também não é caótico. Ele apresenta um plano ortogonal bastante previsível, estando bem longe de um emaranhado de vielas abertas organicamente, ao ritmo das novas edificações. Trocando em miúdos: o Tatuapé não é uma favela. A cartada da falta de planejamento não condiz com a morfologia urbana e com o padrão dos empreendimentos imobiliários, que incluem uma tentativa fortemente orientada pelo mercado de construção de um eixo rival à Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini (a iniciativa também é alvo de polêmicas).

Legenda: Exemplo de empreendimento no chamado “Eixo Platina”

Em suma: o crescimento urbano é ordenado, os lotes possuem regras quanto ao que pode ou não ser construído, estabelecimentos seguem legislações específicas, o transporte coletivo opera dentro de uma lógica de forte regulação. Mesmo as torres luxuosas que estão sendo erguidas, do ponto de vista do adensamento populacional, são pouco preocupantes, porque são grandes metragens para poucos moradores (apartamentos de mais de 300 m², com uma ou duas unidades por andar). Faz muito mais sentido reforçar o que está planejado e/ou incentivado pela legislação: uso misto e prioridade aos modos ativos e coletivos.




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