Por Caio César | 21/12/2020 | 10 min.
Desde sua criação, em 2014, o COMMU discute o transporte público e as cidades da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Com o passar do tempo, temos percebido que nossas discussões, na verdade, representam um conjunto de visões para o futuro das cidades nas quais vivemos e depositamos nosso sangue, suor e sonhos. Algumas das visões são mais palatáveis do que outras, mas todas nos parecem necessárias.
Nossas visões para o futuro envolvem desde coisas simples, como boas calçadas, mais ciclovias e prioridade para os ônibus no sistema viário, até coisas mais delicadas e complexas, como aumento das ligações de transporte sobre trilhos, desmonte de rodovias urbanas e reorganização do transporte regional de passageiros em todo o estado.
Independente da visão que compartilhamos em nossos textos, a discussão da mobilidade urbana numa metrópole tão heterogênea e complexa não é tarefa simples. Nossa opção por rejeitar anúncios e por não transformar o site num “balcão de releases” tem seu preço: prejuízos financeiros, pouco ou nenhum conteúdo isca para geração de tráfego e, consequentemente, difícil alcance. De forma geral, sentimos que a sociedade não está preparada para o debate que precisa ser feito. Sentimos que estamos remando contra a corrente.
Não se trata de arrogância, mas de uma constatação que permeia nossas discussões internas constantemente. Num universo de 20 milhões de habitantes, poucas são as pessoas que procuram elaborar uma discussão de alto nível, conscientes de sua responsabilidade e da necessidade de romper com informações que, se não passam de propaganda velada de ações públicas ou privadas, contribuem muito pouco para o pensamento crítico. Uma massa acrítica de pessoas jamais vai ser capaz de mudar os rumos das cidades latino-americanas, tão desiguais e violentas.
São muitos os exemplos de situações que soam alarmantes, absurdas ou inexplicáveis, indo desde a inexistência de dados abertos de boa qualidade, passando pela ausência de transformações mais substanciais nos sistemas viários, até chegar no financiamento dos transportes públicos. Quando observamos o comportamento na página do Coletivo no Facebook, temos a impressão de que há uma polarização em torno de dois tipos de conteúdo: o primeiro consiste em notícias que destacam ações governamentais que resultem em grandes obras, como expansões de linhas e aquisição de trens, por exemplo, já o segundo consiste em notícias que constroem um cenário de calamidade e desesperança profundas.
O resultado é que temos uma completa desresponsabilização. Cria-se um ambiente indiscutível de desgraças, promessas e incertezas, que torna muito cômodo dar risada do governo ou fazer críticas óbvias, sem que o debate avance. Ninguém deveria depender de uma notícia para ser capaz de apontar os problemas da cidade, discutir soluções e traçar uma estratégia de pressão. A gente já entendeu que o governo é patético quando você deixa um “Haha” ou “Grr” na nossa página do Facebook, mas queremos saber o quanto você está disposto a lutar contra isso e nos ajudar.
Nós do COMMU não podemos esperar que um jornal ou blogue se baseie em algum release do Palácio dos Bandeirantes para, a partir daí, falar sobre problemas ou questões ligadas à realidade de quem depende do transporte público numa das maiores aglomerações urbanas do planeta Terra. Similarmente, não podemos esperar que a imprensa produza reportagens, algumas delas de qualidade duvidosa, para finalmente decidirmos abrir nossas bocas ou esboçar alguma reação. Nós não podemos e você também não pode.
Sendo mais direto, a apatia generalizada é parte do problema. Internamente, já chegamos à conclusão que, a menos que algo muito inesperado ocorra, só conseguiremos produzir mais conteúdo ou desenvolver uma melhor articulação com os mandatos do Legislativo quando tivermos a capacidade de remunerar uma ou mais pessoas. Considerando que a arrecadação hoje mal consegue pagar os custos da hospedagem do site ou de serviços necessários para manter um fluxo constante de publicações de terceiros na nossa página (necessário para não desaparecermos completamente diante dos algoritmos tóxicos), vai ser bastante difícil imaginar que nós, sozinhos, seremos capazes de pressionar os mandatos que você, leitor ou leitora, provavelmente ajudou a eleger e depois se esqueceu de fiscalizar.
O caso do Parque Cecap foi emblemático: mais de 270 mil m² de terrenos sendo vendidos à iniciativa privada pelo Governo do Estado de São Paulo, sem que nenhum deputado ou deputada estadual desse um pio (nós tentamos contato com vários deles). Enquanto alguns mandatos da Assembleia Legislativa arriscam ingerência até mesmo em assuntos municipais e federais, quando se trata dos descalabros do Executivo paulista, o qual deveriam fiscalizar, ficam calados.
Ficam calados pois são movidos pelos mesmos algoritmos tóxicos e mídias de baixa profundidade. Quem é o Cecap perto de um ginásio de esportes no Ibirapuera? Um bairro operário, surgido pelas mãos do estado (pela predecessora da CDHU, Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, cuja extinção já está legalmente prevista), na periferia de Guarulhos. Não é ofensivo que a moradia da classe trabalhadora receba menos atenção do que um equipamento esportivo localizado num bairro nobre? Qual posicionamento gera mais reações no Facebook, Instagram e Twitter, ampliando a visibilidade do mandato?
Com isso, não estamos dizendo que a questão envolvendo o arranjo desestatizante para o ginásio não mereça seus holofotes, só estamos dizendo que há uma parcela de responsabilidade social na maneira como temas urbanos são tratados.
A CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) é outro excelente exemplo: sua malha dentro da capital é maior do que a do Metrô — aqui, falamos da companhia, não do tipo de transporte ferroviário —, entretanto, sua marginalização é, em que pese o programa de modernização empreendido nas últimas décadas, evidente. Os serviços da CPTM possuem pouco protagonismo quando a mobilidade urbana é discutida, o que resulta no apagamento de cerca de 3 milhões de vidas. Além das áreas da capital atendidas, são jogadas no limbo todas as cercanias espalhadas pelos outros 22 municípios servidos pelo Trem Metropolitano — aqui, falamos do nome oficial do serviço prestado pela companhia, não da discussão em torno da ambiguidade dos termos ligados a metrôs urbanos. O que acontece na CPTM não recebe a devida atenção.
Após denunciarmos as limitações do projeto do trecho inicial da Linha 13-Jade (atualmente Eng. Goulart-Aeroporto·Guarulhos) ao longo dos anos, escrevendo uma crítica ainda em 2015 (!), nos deparamos com uma grita por parte da imprensa e até mesmo pessoas e organizações multilaterais de caráter progressista. O motivo: a linha finalmente havia sido inaugurada e sua inserção tinha, entre outras controvérsias, uma considerada imperdoável: não levar ninguém diretamente ao aeroporto internacional, nem mesmo ao terminal usado pelos voos domésticos de baixo custo. As risadinhas e desinteresse de outrora se transformaram em insatisfação despolitizada. Era como se dissessem: “nossa, mas ninguém nos avisou!”, quando deveriam dizer: “nossa, como deixei isso passar?”. Mais uma vez, um episódio de transferência de culpa. E não só: transferência de culpa recheada de declarações erráticas e rasas, uma vez que, inaugurada, as limitações da linha causavam espanto e demandavam posicionamentos, que eram feitos por quem não tinha feito a “lição de casa” nos anos anteriores. Até os dias atuais, um de nossos artigos mais acessados é um que tenta explicar por quais motivos a Linha 13 não está presente nos terminais mais movimentados do aeroporto internacional.
Ficamos indignados, é claro, porque somos usuários e usuárias da CPTM também. Mesmo com nossas formações, geralmente em universidades públicas de excelente qualidade, não faz diferença. Mesmo abordando os problemas sem deixar arestas, não faz diferença. Não faz diferença porque insistimos em falar sobre a vida do pobre e, mesmo o pobre, não discute a própria vida nas redes sociais. Não de uma forma que poderia fazer a diferença.
Hoje, para não variar, estamos sentados na antessala de mais um episódio parecido: a concessão das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Grajaú, em expansão até a nova Estação Varginha). Pensando que talvez tenhamos sido muito brandos com a Linha 13, buscamos mandatos na Assembleia Legislativa, escrevemos mais textos e tentamos dar alguma visibilidade para posicionamentos pertinentes do sindicato que representa os funcionários das linhas envolvidas. Em vão. O debate não engrena. Francamente, o COMMU não tem recursos para se debruçar em torno de editais, visitar cada uma das Câmaras das cidades afetadas, publicizar uma campanha nas redes sociais, desenvolver contrapropostas, entre outras ações. Quem tem ou deveria ter os recursos são mandatos que, de novo, você provavelmente ajudou a eleger e depois se esqueceu de fiscalizar.
O teatro da alegria e da tristeza continua com as cortinas levantadas e com as mesmas notícias entrando e saindo de cena. A indignação nas redes sociais é e sempre será passageira. Se você se importa com algo, precisa garantir uma discussão duradoura e qualificada, o que demanda recursos. Desde que começamos a discutir a possibilidade de concessão das linhas 8 e 9, não percebemos tanto engajamento nas redes sociais, tanto nossas, quanto de outros veículos, como quando o site Metrô CPTM noticiou que a gratuidade da extensão operacional seria perdida. Ora, alguém achava mesmo que a concessão preservaria uma operação em regime de tarifa zero num trecho repleto de contradições?
A situação não vai mudar se não mudarmos. 2021 vai ser muito ruim para a mobilidade se a postura não ir além da rolagem descompromissada de feeds. Não precisamos de truques, não precisamos de sensacionalismo, não precisamos te enganar. Você sabe o que está ruim. Você sabe em quem votou. Você sabe quais tipos de coisas lê ou deixa de ler. Você também deve saber ou ter alguma noção sobre o que gostaria de ler.
É urgente que se crie uma cultura de acompanhamento. Nossos artigos possuem muitos links, que permitem facilidades existentes desde os primórdios da Internet, tais como: ajudar você a acessar as fontes, garantindo que você possa verificar as informações por conta própria, não precisando confiar cegamente no que dissemos; permitir que você conheça mais conteúdos relacionados ao tema, por meio de categorias, tags ou indicações diretas de conteúdos complementares; e ajudar você a acessar as tabelas ou outros dados utilizados para a elaboração do texto. Enriquecemos os textos, mas sabemos que a maioria das pessoas não clica num único link. Pior: a maioria não tenta acessar nenhuma outra página depois. O debate está ruim e, se continuar assim, vai continuar ruim.
Mais uma vez, você precisa fazer a diferença! O problema não é apenas o algoritmo do Facebook que cria uma ou mais bolhas ou o site noticioso que entrega mais publicidade e conteúdo marqueteiro do que informação. Você realmente está satisfeito com aquilo que lhe é entregue? Você realmente está satisfeito com o trabalho dos vereadores, das vereadoras, dos deputados e das deputadas? Você realmente acha que sua cidade está sendo discutida da forma que gostaria? Você acredita que a cidade que você vive, que provavelmente não é aquela dos prédios espelhados, dos flats e dos patinetes elétricos, está bem representada e apresentada?
Se realmente o conteúdo entregue é tão bom, o trabalho dos políticos é tão satisfatório e a cidade da maioria é tão bem discutida e aparente, então por que normalizamos o transporte público lotado, os longos deslocamentos, as habitações precárias e tantos outros problemas? E, se está tudo tão ruim e/ou cheio de problemas, por que você não reage?
Não sabe como reagir? Pergunte. Tentou e não deu em nada? Relate. Ninguém está falando sobre um problema? Seja o primeiro a falar. Não sabe como falar? Procure quem parece saber. É contigo agora, leitor ou leitora.
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