Por Caio César | 14/08/2021 | 12 min.
Recentemente, um ilustre professor da Universidade de São Paulo (USP), João Sette Whitaker Ferreira, publicou o artigo “Por que os Planos Diretores estão sob ataque” no Outras Palavras, um veículo progressista de mídia alternativa. Gostaria de propor uma reflexão em torno de alguns pontos do texto.
Em primeiro lugar, é importante dizer que, embora tenhamos um histórico de concordância com o Plano Diretor Estratégico de São Paulo, aprovado na gestão Fernando Haddad (PT), na qual Whitaker ocupou o cargo de Secretário de Habitação (ele substituiu um malufista), o que tem parecido é que as disputas narrativas estão claramente acima da técnica. E, com isso, começam a surgir malabarismos retóricos que, eu, como idealizador deste coletivo, que desde 2014 busca qualificar o debate sobre a mobilidade na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), não posso aceitar calado. Ao contrário de Whitaker, meu trabalho assalariado não me permite auferir uma renda comparável à de um professor da USP ou secretário do Executivo paulistano, além disso, minha condição socioeconômica torna a utilização do transporte público e da caminhada algo muito mais próximo da obrigatoriedade, e não de uma escolha completamente livre e descompromissada, além disso, meus deslocamentos diários geralmente ficam na casa das dezenas de quilômetros.
Posto isto, com as atuais disputas em torno do marco regulatório urbanístico da capital paulista, o Plano Diretor Estratégico (PDE) da gestão Fernando Haddad tem soado uma deliciosa contradição: uma parte considerável da esquerda, que parecia aprová-lo e celebrá-lo enquanto Haddad, agora se mostra contrária a diretrizes-chave do mesmo diploma. Similarmente, houve vista grossa para o projeto do Vale do Anhangabaú, que foi jogado no colo de Bruno Covas (PSDB), embora fosse uma herança da gestão petista, tendo sido inclusive defendido pelo ex-prefeito em 2020. Parte da esquerda precisa se decidir: ou valida pela técnica e coerência ou por algum tipo de fidelidade partidária, mas sem compromisso com a técnica e a coerência.
Ora, é lamentável o professor defendendo adensamento em corredor de ônibus que não existe, porque uma parcela do campo progressista não tem coragem e vergonha na cara para defender o adensamento das cercanias das linhas da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e da Companhia do Metropolitano de São Paulo (METRÔ), algo previsto pelo PDE. Esquivam-se por não ser eleitoralmente conveniente em virtude da disrupção provocada, além de envolver infraestruturas construídas por opositores históricos do Partido dos Trabalhadores: os tucanos.
No caso do novo plano de 2014, sem que tenha sido sequer implementado em seus aspectos mais estruturais (como por exemplo a construção maciça de corredores de ônibus estruturais, ao longo dos quais se permitiria um adensamento construtivo e populacional vinculado ao transporte público), aumenta a pressão do mercado para ele seja “revisado”, e a Prefeitura, mais uma vez, mostra-se alinhada com esse setor que tão generosamente financiou sua campanha.
Não parece exagero defender a hipótese de que o adensamento utilizando a infraestrutura preexistente contribui para dinamitar a noção de “miolo de bairro”, que artificialmente congela morfologias de baixa densidade (poucas pessoas por m²) e baixo gabarito (ou seja, edificações com poucos pavimentos), mesmo que estas produzam distorções mercadológicas que resultam em deseconomias de escala para o benefício de um pequeno número de proprietários de imóveis, que ganham com a escassez em detrimento do restante da população, que passa a alimentar a periferização.
Há ainda outra parte do texto que beira a desonestidade, generalizando o que é construído. Considerando as discussões internas do COMMU, a maioria delas com fotografias de empreendimentos, com indícios de diversidade de atores mercadológicos, mostra que Whitaker constrói uma narrativa que não dialoga com o que tem sido cristalizado em diferentes parcelas do tecido. Francamente, a ideia de que tudo é de luxo não passa de uma mentira.
O mercado quer construir e adensar com empreendimentos para a alta renda, que é o que dá lucro. São prédios com apartamentos enormes e pouca gente morando, gerando pouca densidade habitacional e, na prática, apenas destruindo sobrados tradicionais de classe média para colocar no lugar condomínios murados de luxo.
Mente-se porque parte da esquerda decidiu, a partir de uma estratégia política duvidosa, construir um unicórnio participativo em torno de tabelas. Trata-se de uma disputa de parâmetros que está sendo assombrada por uma participação popular idealizada, com uma dose muito grande de hipocrisia. Pela minha experiência participando (a duras penas) de processos consultivos, além da minha experiência acadêmica e profissional, a interdição da revisão do Plano Diretor Estratégico vai fracassar e, quando “a boiada passar”, quem poderia ter capitaneado o debate, simplesmente preferiu preteri-lo. Mais uma vez, marcar posição nas redes sociais, mesmo que escondendo incoerências, parece pesar mais.
Atualização (14/08/2021, 22h21): o perfil São Paulo YIMBY do Twitter sugeriu o Anuário do Mercado Imobiliário 2020 como uma fonte adicional de dados para contrariar as falas de Whitaker. Como podemos evidenciar, “os imóveis econômicos, enquadrados no programa Casa Verde e Amarela (CVA), antigo programa Minha Casa Minha Vida, foram responsáveis por 49% das unidades residenciais lançadas na cidade de São Paulo em 2020” (p. 31):
Para quem não sabe, as faixas do CVA são as seguintes, de acordo com a construtora e incorporadora Direcional: 1,5: renda até R$ 2.000,00 e subsídio de até R$ 47.500,00, com variação dependendo da renda e região do imóvel; 2: renda até R$ 4.000,00 e subsídio de até R$ 29.000,00, com variação dependendo da renda e região do imóvel; 3: renda até R$ 7.000,00.
O mesmo relatório também indica que a narrativa de imóvel de luxo não se sustenta perante o número de dormitórios, pois “das 60,0 mil unidades lançadas na capital paulista, 33,3 mil unidades eram de 2 dormitórios — 55,5% do total lançado em 2020”, bem como porque “a segunda maior participação foi dos imóveis de 1 dormitório, com 19,8 mil unidades lançadas (33% do total)” (p. 36).
A maioria dos imóveis de 1 dormitório parece ter se situado no Centro Expandido, com as unidades de 2 dormitório predominando. O relatório espacializa os lançamentos, então isso dificulta uma narrativa em torno de uma produção extremamente concentrada nas áreas mais ricas ou com melhor infraestrutura.
Além disso, a área útil predominante nos lançamentos foi de 46 m² a 85 m², o que também não favorece a narrativa de uma produção estritamente de luxo (p. 40).
Para concluir as observações em torno do relatório do Secovi, complementando o mapa da página 37, temos outros um pouco mais detalhados na página 46, que incluem a infraestrutura do transporte, evidenciando que o mercado está dando prioridade pelo desenvolvimento imobiliário das cercanias do Metrô e da CPTM. Infelizmente, as linhas da CPTM aparecem como “Linha de Trem”, sem distinção e talvez compreensão de que seu papel não só contempla um atendimento tipicamente metroviário, mas como é o único verdadeiramente metropolitano, ao extrapolar os limites da capital paulista, avançando ao longo de mais 22 municípios.
Há consideráveis “vazios de lançamentos”, o que reforça que São Paulo continua abrigando muitas moradias unifamiliares. De fato, as produções passadas de padrões médio e alto permitiram que São Paulo, pela primeira vez em toda sua história, passasse a ter mais residências em prédios do que casas, como revelou estudo da Fapesp em 2021.
Meu receio é de que o mercado vai flexibilizar aquilo que eu muitos progressistas afirmam desejar que não seja flexibilizado, tais como vagas de garagem. É ainda possível que se flexibilize a outorga onerosa e, neste sentido, tudo que envolve precificação deveria passar obrigatoriamente por uma série de simulações.
E, para desespero de uma parte da esquerda, lamento: cenarização não exige sala lotada. Exige transparência e gente capacitada modelando. Por que eu estou dizendo isso? Porque para além dessa tentativa do Whitaker, há mais descolamentos na narrativa hegemônica da esquerda paulistana. Em outras palavras, não adianta achar que o PDE sozinho vai combater posturas especulativas quando não existem mecanismos tributários em voga, por exemplo, sem o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, como figura de linguagem didática, eu diria que metade do PDE já vai pro ralo.
Outra coisa: a esquerda pode vencer, graças ao alinhamento com setores reacionários de bairros-jardins e assemelhados, a disputa em prol da manutenção de gabaritos restritivos nos “miolos de bairros”, mas será uma vitória temporária. Os grandes atores do mercado imobiliário são poucos e vão precificar a disputa.
Na prática, é previsível que os grandes atores sigam comprando e fazendo estoque, talvez até dando pistas em alguns casos, com a abertura de estacionamentos, criação de sociedades de propósito específico (SPEs) etc. Quando o prefeito for substituído, em outro momento, os mesmos atores, já devidamente preparados em termos de financiamento de campanha e lobby corporativo, viram o jogo. É uma disputa perfeitamente precificável. Não dá pra ser ingênuo.
E, falando em ingenuidade, não teria sido a unicórnica “participação popular” que ajudou a derrubar uma porrada de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), acabando com qualquer restrição legal para tentar forçar a produção de moradia de mercado popular ou de interesse social? Enquanto este texto é produzido, guardo memórias frescas sobre o higienismo mooquense, que tenta proteger uma horta para evitar que pessoas de menor poder aquisitivo consigam morar num antigo bairro operário, a despeito da pretensa ideia de nobreza de seus atuais habitantes.
Mas voltemos à questão dos edifícios de alto padrão: de partida, pensando bem friamente mesmo, se colocando como especulador, realmente faz sentido? Não é arriscado não diversificar? Além disso: o mercado de luxo não é sabidamente menor? Outra coisa: a sociedade não é brutalmente classista, impondo várias fronteiras invisíveis e segregações?
E mais: a tese do “produto único” [moradia de alto padrão] pressupõe atores muito homogêneos, como se todos fossem uma empreiteira típica construindo um edifício espelhado na Marginal Pinheiros. Justamente por isso, sinto que rejeita, por exemplo, diferentes tipos de verticalização que podem ser encontrados em diversos bairros paulistanos.
Instituições com mais recursos técnicos e financeiros deveriam testar suas hipóteses, porque, do jeito que está, a narrativa parece ser somente isso: uma narrativa e, se colar, colou. Considerando o tipo de dado público existente, é possível que fatores como estoque, concentração, entre outros, poderiam ser simulados.
Para abrandar a crítica, Whitaker, pelo menos, foi honesto na defesa da maldita instituição do sobradão, com a passagem “destruindo sobrados tradicionais de classe média”. Como produtor de conteúdo, profissional de planejamento e acadêmico da área de políticas públicas e do planejamento do território, não partirá de mim nenhuma defesa de sobradão em áreas bem localizadas. É por isso que eu escrevi aquilo que escrevi quando o Figueiras Alto do Tatuapé foi, mais uma vez, motivo de polêmica naquela ervilha social chamada de Twitter.
E mais outra coisa sobre os argumentos do Whitaker para criticar o mercado do qual ele mesmo faz parte: se o mercado está produzindo condomínio murado, não é por ter havido uma derrota no marco regulatório, ou mesmo, não é por existirem brechas para facilitam o preterimento das fachadas ativas (fachadas com permeabilidade visual e diferentes tipos de comércios e serviços)? E mais ainda: se o mercado está disputando esse ponto, quais são as alegações, exatamente?
Ah, e minhas indagações permanecem: não seria ingenuidade (ou mau-caráter) achar que condomínio murado é só de luxo? Francamente, devemos fingir que nossos conjuntos habitacionais (aqueles da Cohab estatal, ligada à Prefeitura de São Paulo) não são o que são? — e aqui fala um ex-morador do Conjunto Habitacional Teotônio Vilela, que está bem longe de ser um paraíso na Terra.
Vamos fingir, aliás, que vários dos “sobrados tradicionais de classe média” não são terríveis em urbanidade? Claro, só fingir mesmo, porque até parece que não reclamamos de calçadas que, na prática, não passam de rampas para carros, de portões que invadem a mesma calçada que não passa de um acesso para o carro, de fachadas extremamente introspectivas e que hostilizam o espaço público da rua etc. Como disse nosso membro Thiago de Thuin, o bairro de sobrado de baixa densidade é uma extensão enorme de muro, que só não é pior porque grade é mais barato do que porta de ferro.
Para resumir:
- Chega de idealizar participação popular, seria muito mais digno admitir seus limites e fortalecer organizações sociais, mandatos e partidos, estes, sim, capazes de um diálogo mais perene e com uma dívida histórica de trabalho de base e capacitação técnica;
- Chega de usar a periferia e os mais vulneráveis como tokens para escamotear que a participação popular dos mais endinheirados sempre tem mais peso;
- Chega de ocultar relações espúrias entre esquerdistas e reacionários que querem a manutenção dos bairros-jardim e Zonas Exclusivamente Residenciais (ZERs);
- Chega de distorcer a pauta da infraestrutura de transporte para engessar o crescimento da cidade, ignorando infraestruturas centenárias, como são algumas das linhas da CPTM, ou criando polígonos para especulação por escassez, como muitas vezes são os “miolos de bairro”;
- Chega de tratar morador de sobrado com uma espécie de ator neutro, ignorando que ele também é parte do mercado e pode ter comportamento especulativo;
- Chega de achatar tipologias e produtos do mercado para escamotear a discussão: se os produtos são ruins, que se discuta como torná-los melhores, não que se engesse a cidade enquanto moradia social e/ou de mercado popular continua sendo construída sem urbanidade nas franjas;
- Chega de ignorar outros trabalhos escrutináveis que estão dendo desenvolvidos durante o atual período, considerando toda a extensão da RMSP, o que inclui desde novas linhas metroferroviárias (vide audiência do Trem Intercidades São Paulo-Campinas marcada para 16/08/2021), como mudanças no transporte coletivo (via planos de mobilidade ou planos específicos), outras cidades revisando ou regulando aspectos previstos em planos diretores (como Arujá ou como Suzano), plataformas participativas sendo lançadas ou recebendo processos para votação (como o novo Participa Mogi ou orçamento participativo da capital) etc.
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