Por Caio César | 24/10/2021 | 6 min.
A ideia de zonas exclusivamente residenciais é uma espécie de praga urbana, que, como um câncer metastático, se espalha por inúmeros bairros de diferentes municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Não raramente, os conflitos mais visíveis são aqueles envolvendo bairros que concentram populações de renda elevada. A Vila Oliveira, em Mogi das Cruzes, último município atendido pela Linha 11-Coral (Luz-Estudantes) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), é um destes casos.
No início, a Vila Oliveira não passava de um subúrbio de endinheirados que moravam perto do Clube de Campo, quando “tudo era mato” na região atualmente conhecida como Centro Cívico, nos dias atuais, por outro lado, a Vila Oliveira é vizinha de um dos bairros mais interessantes e dinâmicos não só de Mogi, mas de todo o leste metropolitano: o Parque Monte Líbano.
De forma simplificada, é possível dizer que o desenvolvimento do comércio e dos serviços do Parque Monte Líbano começou a ficar asfixiado pela escassez de terrenos e, estando a Vila Oliveira do lado, com casas imensas, muitas vezes ociosas e disponíveis para locação ou compra, alguns empresários decidiram iniciar seus negócios mesmo com um zoneamento anacrônico e restritivo.
Ao contrário do que a associação de moradores parece pensar, não existe um limite físico claramente definido. O tecido está conurbado há muitos anos e, ao contrário das limitações artificiais produzidas pelos instrumentos que regulam o uso e a ocupação do solo, o desenvolvimento endógeno é nítido e pode ser observado a olho nu, sem exigir intimidade com o Direito Urbanístico.
Com a publicação da reportagem Associação denuncia irregularidades no zoneamento da Vila Oliveira, em Mogi, publicada pel’O Diário de Mogi em 22/10/2021, achamos que seria interessante a publicação de alguns comentários a respeito em nosso site, daí este artigo que você está lendo. Considerando a reportagem citada, de imediato, percebemos a irrelevância dos estabelecimentos ofensores, do ponto de vista de possíveis impactos:
Os cinco pontos citados têm placas sinalizadoras nos imóveis. Um deles atua na área de energia solar, tem uma casa de longa permanência para idosos, comércio de bicicletas e dois escritórios de advocacia. Paulo Bergamo, que também é advogado, alega que a única quadra da Frederico Straube que permite este tipo de atividade é a primeira, onde está o Instituto do Tórax, logo após o cruzamento com a avenida Capitão Manuel Rudge.
Ora, deveria ser intuitivo que escritórios de advocacia, bicicletarias e asilos estão bem longe de promoverem forte impacto, principalmente quando instalados em grandes imóveis originalmente residenciais e unifamiliares.
As discussões envolvendo a mudança do zoneamento da Vila Oliveira aparecem anualmente, foi o caso em 2018 (G1), 2019 (O Diário de Mogi) e 2020 (A Semana). Os argumentos podem ser resumidos da seguinte forma:
- Falsa preocupação com o meio ambiente;
- Preocupação excessiva com o trânsito (leia-se: manutenção das condições de trafegabilidade para automóveis);
- Preocupação excessiva com a segurança (leia-se: defesa da segregação socioespacial e desejo de exclusão de não-moradores ou não-proprietários);
- Avaliação enviesada da participação popular (leia-se: só vale a participação que está de acordo com os objetivos das associações pró-estagnação);
- Exigência de inúmeros estudos (leia-se: burocratização excessiva), sempre do lado do Executivo, nunca do lado das associações pró-estagnação.
Todas essas táticas são bastante conhecidas e também são adotadas na capital paulista. Doa a quem doer, mas não passam de um misto de desonestidade intelectual e malabarismo retórico, além de uma negação cínica e preconceituosa à cidade, que fica refém de um punhado de pessoas, que tentam converter bairros públicos em condomínios fechados, transferindo o ônus para o restante dos munícipes, sobretudo aqueles mais pobres e com menor capacidade de lobby.
Na reportagem publicada por A Semana em 2020 (vide hiperligação acima), as entrelinhas da seguinte fala transbordam individualismo e foco no automóvel (grifo nosso):
Já o presidente da Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Mogi das Cruzes, Nelson Batalha, informou aos membros da CEI que, por questões técnicas, a entidade se posicionou contra a mudança de zoneamento no bairro. Batalha justificou que a infraestrutura não comporta uma mudança como a proposta.
Por que não? Há excesso de estacionamento nas ruas. A maioria delas são bidirecionais e ainda contam com estacionamento em, pelo menos, um dos lados (quando não dos dois lados). Parece existir espaço de sobra para, não apenas trocar os usos, mas também tornar o bairro mais denso. É uma das áreas ociosas mais próximas da Estação Estudantes e dos bares e restaurantes do Parque Monte Líbano.
E mais: é uma das melhores áreas para verticalização, porque, diferentemente da face norte da Linha 11-Coral, sua posição significa que edificações de maior gabarito produzem menor impacto na paisagem em relação à visibilidade do relevo da Serra do Itapeti. Caso a verticalização se consolide na face norte, que já abriga os mais novos edifícios de escritórios, a paisagem que a população sectária da Vila Oliveira diz proteger terá desaparecido, num processo praticamente irreversível.
O mapa a seguir, que também pode ser descarregado como imagem em formato PNG ou documento em formato PDF, permite observar não só as dimensões consideráveis da Vila Oliveira, mas como boa parte de seus limites estão dentro da área de influência de 2 km da Linha 11-Coral. Mais uma vez, não fizemos nada além de utilizarmos dados abertos, incluindo aqueles do Plano Diretor de 2019.
Usando ainda os dados fornecidos pela municipalidade, realizamos outro exercício simples: calculamos a área em km² utilizando o QGIS, exportamos para o KNIME e ranqueamos apenas os bairros do distrito Sede. Sem nenhuma surpresa, a Vila Oliveira ficou em sexto lugar — e teria ficado em quinto, não fosse o bairro Serra do Itapeti um outlier que cravou o primeiro lugar com folga. Os dados estão na tabela abaixo, que também pode ser descarregada em formato CSV.
Se, de fato, há preocupação ambiental, existem formas de parametrizar uma ocupação com mais verde e que alargue calçadas, há ainda a possibilidade de estimular o uso de veículos elétricos, incluindo ônibus e bicicletas elétricas como parte do SIM (Sistema Integrado Mogiano), que hoje tem sua frota composta, sobretudo, por ônibus de motorização dianteira e sem capacidade de ajoelhamento, o que se traduz, na prática, que boa parte da frota é feita para rodar em terrenos ruins (como ruas sem pavimentação), reduzindo a qualidade de vida de condutores e passageiros.
O debate atual, da forma que ocorre, é um desfavor. Mogi das Cruzes, aliás, deverá receber dois grandes empreendimentos imobiliários no futuro (ambos na face norte da Estação Estudantes, sendo que um deles fica ao pé da serra), sobre os quais ainda pretendemos escrever, e a postura de parte da população da Vila Oliveira não contribui para fomentar uma ocupação mais racional da cidade, que já demonstra ter se expandido de forma muito difusa e está repleta de condomínios fechados. Se os moradores querem viver isolados e carrodependentes, é melhor que se mudem para o complexo Aruã ou algo do tipo. Barrar um uso mais dinâmico a cerca de 1 a 2 km da Estação Estudantes é, com o perdão pela franqueza, burrice e egoísmo em estado brutos.
Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.
comments powered by Disqus