Por Caio César | 19/03/2022 | 6 min.
Noticiada pela mídia especializada e pelos grandes veículos de imprensa, a demissão do maquinista responsável pela condução da composição da Linha 8-Esmeralda (Júlio Preste-Itapevi-Amador Bueno) que se chocou contra uma barreira de contenção na Estação Júlio Prestes, não oferece nenhuma garantia para as pessoas que dependem dos serviços da ViaMobilidade, empreitada que envolve os grupos CCR e RuasInvest.
De fato, o que tem sido noticiado é que existe uma abissal disparidade salarial, além de diferenças nas escalas e suspeitas de que não houve tempo suficiente para treinar as equipes. Não faz diferença alguma se a ViaMobilidade alega que cumpriu o contrato e não faz diferença alguma se o governo estadual alegar que o contrato não apresenta irregularidades.
Também acreditamos que, a despeito dos comentários recentes do Sindicato da Sorocabana, a presença de um trem da série 7000 não deveria ser um fator determinante, considerando seu histórico nas linhas da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), bem como o histórico de trens mais antigos que continuam em circulação, como as séries 2000, 2070 e 2100 (esta última restrita ao expresso capenga entre as estações Tamanduateí e Santo André).
O maquinista não deveria ser tomado como um responsável direto pela tragédia, pois na melhor das hipóteses, deveria ser tomado como um responsável indireto, produto de um arranjo contratual e regulatório que despreza vidas humanas em favor de uma aposta puramente ideológica. A aposta da pretensa superioridade privada nos legou um contrato de três décadas com uma empresa que tem encampado de rodovias a aeroportos sem qualquer objeção, tornando-se uma gigante sem precedentes na história recente do Brasil.
Estamos reféns de um arranjo que, a despeito do discurso promotor da desestatização de João Doria (PSDB) e seus simpatizantes, carece da sofisticação necessária. Não existe um sistema público de auditoria de indicadores. Não existe compatibilidade de indicadores. Não existe agência regulatória com participação de representantes da sociedade civil e mecanismos de transparência e auditoria fiscalizados por uma empresa sem conflito de interesses. Não existe sequer uma hierarquização dos serviços sobre trilhos e os papéis esperados.
O que existe é uma sanha privatista que experimenta sem entregar respostas conclusivas. Somos cobaias não só da ViaMobilidade e seus trabalhadores precarizados, mas também de um conjunto de práticas do governo estadual que se desenrolam há décadas e tiveram pelo menos dois marcos importantes, continuamente desprezados por uma oposição de baixa qualidade técnica e política: (i) concessão de rodovias e; (ii) a concessão patrocinada da Linha 4-Amarela (Luz-Vila Sônia).
Considerando que a Companhia do Metropolitano de São Paulo (geralmente abreviada com a grafia METRÔ) possui até mesmo uma universidade e executa uma pesquisa origem-destino que, provavelmente, é uma das mais sofisticadas e tradicionais da América Latina, seria possível estabelecer uma comparação entre os custos e eficiência da operação estatal em relação à operação privada?
Insatisfação nas redes O Twitter e o Facebook se tornaram verdadeiros repositórios de insatisfação, acumulando resmungos e reclamações quando o assunto são os sistemas de transporte coletivo que atendem a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), incluindo a capital, enfim, aquilo que popularmente chamamos apenas de “transporte público”. A questão central é que muitas das manifestações de insatisfação que foram deixadas nas redes sociais, infelizmente, não parecem conectadas com um desejo verdadeiro de transformação da realidade.
A desestatização promovida pelos tucanos em São Paulo comete os mesmos erros que flagelam a população dos subúrbios fluminenses e que condenaram praticamente todo o Brasil a uma vida alijada da convivência com trens de passageiros, deixando de construir alicerces sólidos para permitir o estabelecimento de bons contratos e de um bom arranjo institucional e regulatório, ao passo que não demonstra comprometimento com o futuro, ignorando que mais do que operar e aportar uma quantia irrisória de dinheiro, a concessionária precisa fazer parte de um arranjo público-privado que visa o desenvolvimento socioeconômico e a redução das desigualdades.
O papel da ViaMobilidade não consiste em operar as linhas 8 e 9 seguindo algumas cláusulas contratuais, especialmente quando deixa transparecer que está protegida e tem capacidade para iniciar uma operação a toque de caixa, prejudicando as pessoas que emprega, bem como prejudicando quem passou a ser — não por vontade própria, que fique bem claro — cliente. A operação é um detalhe menor. A ViaMobilidade agora tem um compromisso conjunto com o governo estadual em relação ao desenvolvimento de toda a sub-região oeste da Região Metropolitana de São Paulo, bem como parte das zonas oeste, sul e central da capital paulista.
O fato de o contrato ser frágil, permitindo que um maquinista arrebente um trem em pleno Centro de São Paulo enquanto a concessionária redige uma resposta desavergonhada à luz das cláusulas que regem o negócio, não desobriga que as duas partes, governo e concessionária, olhem para o futuro. O assunto dos trens regionais não acabou. O assunto do Expresso Oeste-Sul, serviço adicional que aproveitaria simultaneamente a infraestrutura das linhas 8 e 9, não acabou. A necessidade de estabelecer melhor conectividade com Alphaville não acabou. A problemática da ausência de integração física e tarifária não acabou. O mau uso e ocupação do solo, induzidos e/ou potencializados pelo mau aproveitamento da infraestrutura de transporte sobre trilhos, não acabou.
Não é a primeira vez que este Coletivo critica a decisão de conceder o par de linhas da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) que avança em direção ao sul e oeste metropolitanos. Já alertamos que a quantidade de intervenções necessárias para dar continuidade ao programa de modernização, por exemplo, impõe pressões significativas sobre o valor total de investimentos contratualmente exigidos, uma vez que a média anual é baixa. Legenda: Inserção das linhas afetadas na Região Metropolitana de São Paulo É preciso entender a verdadeira dimensão do equívoco: em poucas palavras, o governo cederá à iniciativa privada um eixo de alta capacidade que passa por centros de negócios dos mais sofisticados do continente.
No mínimo do mínimo, não só esperamos que a ViaMobilidade busque eliminar as assimetrias salariais e de treinamento entre pares que são parte de uma mesma rede, mas que busque oferecer uma resposta contundente para todo o conjunto da sociedade. A resposta da concessionária à imprensa, além de evasiva, surfa na ideia de que a infraestrutura tem problemas e que investimentos transformadores serão realizados, ou seja, que estamos diante de um pequeno preço a pagar diante de um futuro promissor.
Os problemas da infraestrutura são irrelevantes sob a ótica de que o serviço não pode ser inferior ao que a CPTM vinha oferecendo. Se a CPTM conseguia fazer, a ViaMobilidade precisa conseguir, de preferência sem destruir um patrimônio que tem a classe trabalhadora como razão de existir. Estamos diante de um absurdo e não seremos ludibriados pela demissão de um coitado, que pouco ou nada tem a ver com a enrascada na qual milhões de pessoas foram colocadas.
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