O seccionamento de linhas como a 574J-10 está atrasado e precisa ser defendido

Por Caio César | 24/04/2022 | 8 min.

Legenda: Ônibus da 574J-10 avariado na Vila Formosa em 23/04/2022
A pretexto de manter a satisfação de “muita gente”, São Paulo amarga um sistema muito aquém do ideal, cujo resultado não poderia ser outro: redução da qualidade de vida da população como um todo, que paga o preço por ter sido transformada num token valioso, cujas principais funções são a interdição de debates e a promoção de políticas populistas, nas quais a técnica simplesmente não tem vez

O município de São Paulo possui um dos maiores sistemas de ônibus do continente americano, no entanto, a promessa de uma reforma, dando continuidade ao choque de racionalização ocorrido durante a gestão da Marta Suplicy, então no Partido dos Trabalhadores (PT), jamais foi cumprida.

Legenda: As duas tipologias de sistemas de ônibus comumemente adotadas (Guia TPC, p. 17)

Seja pela ligação afetiva de alguns operadores com linhas com as quais sentem terem contribuído por um ou mais motivos, seja pelo populismo de políticos eleitos, seja pela ausência de infraestrutura ou resistência para melhor utilização da infraestrutura existente, São Paulo tem patinado na construção de uma rede de ônibus, que substitua o atual sistema, caótico, incoerente e com sérios problemas de velocidade média, oferta de lugares e articulação local e regional.

Muitas das linhas criadas ou assumidas por essas famílias há décadas ainda existem até hoje. Os clãs têm um vínculo de propriedade, e também de afeto, com as linhas.

Tatto afirma que, quando tentou negociar a implantação de um novo desenho de linhas, um empresário implorou para ficar com uma linha porque havia sido primeira que assumiu em São Paulo após vir de Portugal.

(Artur Rodrigues e Fabrício Lobel, Time de futebol, linha de metrô e autopeças fazem parte do império dos donos de ônibus em SP, Folha de S.Paulo, caderno Cotidiano, 02/08/2019)

Supostamente, o sistema de ônibus de São Paulo “consegue” fazer de tudo: articula escalas locais e ligações entre bairros, possibilita a conexão regional entre pontos distantes e, ainda, estabelece ligações troncais numa lógica bairro-centro (ou centro-periferia) típica de seu sistema viário radial-concêntrico pesadamente influenciado pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia (que remonta à década de 1930). E, “consegue” (com aspas, ressalte-se), porque, de fato faz de tudo, mas muito mal. Muito mal mesmo.

Em discussões recentes sobre a linha 574J-10 (Terminal Vila Carrão-Metrô Conceição), percebemos a repetição de um discurso empoeirado, mas muito palatável: o de que ela supostamente “atende muita gente” e “desempenha importante papel articulador”. Estas duas variáveis, atiradas numa narrativa que questiona esforços de racionalização como os que defendemos há três anos (e que continuam atuais e necessários), estabelece papéis fantasiosos para serviços que são incapazes de exercê-los adequadamente.

Devido à escala e morfologia da Região Metropolitana de São Paulo, na qual o município homônimo e sede é um colosso que abriga 12 milhões de habitantes, apresentando dimensões que são consideravelmente maiores do que as de diversos municípios vizinhos somados, apenas o sistema metroferroviário tem capacidade, capilaridade e regularidade para proporcionar uma articulação regional profícua, sobretudo com padrões de uso e ocupação do solo ainda muito influenciados pela noção de engenheiros de tráfego pró-espalhamento urbano.

É exagero afirmar que uma linha com demanda na casa das 15 mil pessoas por dia (considerando a média para os dias úteis do ano de 2019) exerce um papel articulador tão grande, que discutir seu seccionamento seria “ideia de jerico” ou algo que partiria de alguém que “não parece” utilizá-la, vomitando um número descolado de qualquer contexto como escudo. É apenas uma versão transporteira do “pense nas nossas crianças”.

Por que 15 mil pessoas se tornam representativas de um suposto papel integrador? E, se o papel integrador é, de fato, indiscutível pelo comportamento da demanda, como este justifica a imutabilidade do traçado?

Ora, seccionar uma linha não necessariamente impõe alterações significativas nos itinerários, geralmente, o que ocorre é uma reconfiguração do atendimento, que passa a ser exercido em uma ou mais linhas, com um ou mais pontos de conexão.

No caso da 574J-10, a articulação entre a porção leste e sul depende fundamentalmente da Linha 2 (Vila Prudente-Vila Madalena) com a Linha 5 (Chácara Klabin-Capão Redondo) ou da Linha 2 com a Linha 1 (Jabaquara-Tucuruvi). E a dinâmica de desembarques não só favorece uma noção como esta, mas também a própria inserção e tempo de viagem nas referidas linhas metroferroviárias.

As estações Vila Prudente e Sacomã são polarizadoras dos deslocamentos na 574J-10. Basta embarcar e observar o comportamento da demanda, principalmente nos picos a partir do Terminal Vila Carrão, que só se tornaram mais razoáveis com a queda no volume de passageiros associada à crise sanitária e econômica que nosso país atravessa.

Na configuração atual, é absolutamente razoável duvidar se a linha sobreviveria a um esforço de modelagem, nos quais há o emprego de um ou mais simuladores de redes com auxílio de computadores. Considerando o gigantismo da rede de ônibus de São Paulo, que numa captura aos dados GTFS em 21/04/2022, apresentou quase 2 mil linhas, não parece factível que a SPTrans (São Paulo Transporte), ao iniciar o processo licitatório ainda durante a gestão de Fernando Haddad (coincidentemente, outro político do Partido dos Trabalhadores), redesenhou à rede na base do “olhômetro” e do “chutômetro”. Parece humanamente impossível (e, francamente, bastante estúpido e improdutivo).

A 574J-10 não poderia ser diferente do próprio sistema de ônibus a que pertence: é ruim em todos os papéis que se propõe a desempenhar. Ela, assim como o próprio sistema, tem seus altos e baixos, mas numa perspectiva geral, oferece um serviço ruim. Trata-se de um problema bem conhecido, típico desses linhões do século passado, que demandam muita frota e percorrem bairros em zigue-zague, num itinerário que, por si só, revela uma lógica pouco hierarquizada de atendimento.

Linhas assim são ruins na escala local, porque demoram a passar e, consequentemente, ficam cheias mesmo em locais de baixo dinamismo. Linhas assim são ruins na escala estrutural, porque a viagem também demora demais e o carrossel fica esburacado, reforçando a longa espera nos pontos que já vitimava os passageiros na escala local. Finalmente, a linha também é ruim na integração regional, porque trata a exceção como regra para penalizar a maioria sem desistir de atender a minoria, resultando em percursos pouco otimizados para viagens longas e que desestimulam fortemente sua utilização.

Legenda: Ônibus da 574J-10 avariado a poucos metros da Av. Sapopemba em 07/03/2022

Por que deveríamos manter intacta uma linha que não atende ninguém direito, bradando um papel integrador que, simplesmente, não existe na prática?

O passageiro excepcional, que pretende fazer o trajeto completo ou boa parte dele, deveria utilizar uma ligação mais direta, que aproveitaria as vias expressas do município, deixando de circular em zigue-zague por um sem número de bairros.

Feitas as ligações de maior demanda entre instalações que desempenham papel de concentração e transbordo, como são terminais de ônibus da SPTrans e terminais de ônibus urbanos de estações do sistema metroferroviário, dentro de uma bacia minimamente coerente contendo uma ou mais unidades menores de regionalização (como unidades de atendimento menores aos distritos, uma vez que São Paulo não delimita oficialmente nenhum bairro), uma ligação estrutural, possivelmente preservando parte do traçado original da linha, seria mantida.

Linhas alimentadoras que consolidaram sua operação com a chegada da Linha 3-Vermelha, associadas ao restante do sistema que amadureceu melhor, funcionam assim há décadas. Vale a reflexão: se, na Zona Leste, transformássemos todas as linhas alimentadoras do sistema metroferroviário em linhões de passagem com destino às zonas Oeste, Sul e Central, simplesmente voltaríamos ao caos de antes.

Na fase que antecede a racionalização ocorrida na gestão Marta Suplicy, e que envolve diferentes etapas de desestatização, podemos resumir a situação caótica em dois principais elementos: (i) um empresariado acomodado e ruindo pela própria ignorância, operando ligações afetivas no limite da capacidade financeira e/ou física; e (ii) uma estatal em processo de desmoronamento, que colapsaria para reforçar o domínio do mesmo empresariado incompetente.

Estes dois elementos, somados à demanda latente por transportes e a um contingente de ex-motoristas da CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos, extinta em 1995 por Paulo Maluf), impulsionou o incipiente transporte clandestino, que, não por acaso, mirou na demanda em escala local, conectando bairros a shopping centers ou duas ou mais centralidades de bairros próximos na periferia, aproveitando um processo racionalizador aparentemente muito malconduzido.

É neste momento, por uma decisão do poder municipal de transformar a organização dos transportes na cidade via privatização, que a explosão dos perueiros se tornou uma realidade em São Paulo. A redução da oferta de ônibus provocou uma carência que abriu espaço para um sistema “auxiliar” informal. Os perueiros assumiram a cobertura de um serviço público fragilizado, que há muito era precário. O transporte clandestino já existia na cidade de São Paulo, mas foi no decorrer de 1995 e no período subsequente à desmontagem da CMTC, concomitante à criação da SPTrans, que os perueiros começaram a se multiplicar pelas ruas em um crescimento acelerado.

(Daniel Veloso Hirata, Produção da desordem e gestão da ordem: Notas para uma história recente do transporte, Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 4, no. 3, julho/agosto/setembro de 2011, pp. 441-465)

O abismo entre clandestinos operando nas lacunas de um sistema de ônibus que privilegiava imensos itinerários, foi rompida na gestão Marta Suplicy sem, no entanto, ter desaparecido completamente do desenho dos itinerários e da própria hierarquização destes, ainda resumida em dois subsistemas: Local e Estrutural. Linhas anacrônicas como a 574J-10 nada mais são do que fantasmas do passado, que continuam assombrando pessoas e bairros.

Nossa proposta para linhas locais foi bem recebida em 2021. É nítido que lacunas continuam existindo e que proteger linhas ruins do passado não contribuirá para que a sociedade possa, em conjunto com o poder público e outros atores relevantes, construir uma verdadeira rede de linhas de ônibus.

Finalmente, o debate não pode continuar se pautando em “muitas gentes” que nunca são quantificadas e em papéis que nunca são devidamente criticados sob o pretexto de proteger o interesse de “muitas pessoas”. Lamentavelmente, em outros espaços de discussão, o passageiro pode ser utilizado como token para interditar qualquer tentativa de diálogo crítico, cultura esta que não florescerá no COMMU.




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