Com voos mais caros e ausência de trens, ônibus de luxo ganham mercado

Por Caio César | 29/12/2022 | 11 min.

Legenda: Ônibus rodoviário da Viação Cometa passa na frente das baias do Terminal Rodoviário Tude Bastos, Praia Grande, Região Metropolitana da Baixada Santista
Neste artigo, proponho um exercício a partir de uma reportagem do Estadão. E se tentássemos reativar um trem entre São Paulo e Rio de Janeiro? Você já parou para pensar a respeito?

Índice


Contextualização

Em novembro, O Estado de S. Paulo publicou reportagem intitulada “Viagens de ônibus ganham luxos de 1ª classe, com sala vip, poltrona massageadora e TV; conheça”, que ao ser levada por mim para apreciação no grupo do COMMU no Telegram, resultou em uma discussão interessante, protagonizada principalmente por mim e pelo Tiago de Thuin.

Inicialmente, percebi que as partidas da Levare em São Paulo parecem utilizar um artifício eufemisticamente chamado de “sala VIP”, de forma a contornar o verdadeiro ponto de partida das rotas: Guarulhos, segunda maior cidade da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo), cuja rodoviária tem ares desérticos, a despeito de possuir um terminal urbano integrado e um calçadão conectado à Linha 13-Jade (Eng. Goulart-Aeroporto·Guarulhos) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).

Na prática, a tal sala, localizada a cerca de 1 km da rodoviária da Barra Funda, na região da Avenida Marquês de São Vicente, funciona como uma parada intermediária entre Guarulhos e o destino final (Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, por exemplo), embora provavelmente seja responsável pela maioria dos embarques e desembarques, ou seja, é um artifício que contorna as limitações do atual regime de permissões, ainda que precise produzir deseconomias de escala, ao prejudicar a conectividade trilho-ônibus rodoviário estabelecida com razoabilidade no final dos anos 1980.

Em todo caso, ofertas como a da Levare parecem oferecer uma forma de viajar sem sofrer com o aperto das poltronas dos ônibus convencionais e semi-leitos (este último, também chamado de executivo, basicamente um engodo, reclinando um pouco mais do que o convencional), mas a um custo mais convidativo do que serviços do tipo leito-cama, ou seja, parece ser uma oferta intermediária bastante interessante.


Vácuo mercadológico

Uma reflexão válida, porém, consiste em questionar se a oferta de um serviço “premium” basicamente depende do preço da passagem aérea, afinal, há cerca de uma década, serviços do tipo não eram comuns (para não dizer que inexistiam), ou seja, pode ser uma oferta frágil, que vai ser confrontada por ônibus esvaziados, caso as companhias aéreas voltem a praticar preços mais acessíveis no futuro.

Para além da possível concorrência envolvendo as companhias aéreas, outra reflexão possível diz respeito à histórica negligência do país com o transporte ferroviário, que agoniza em meio ao apagamento a que tem sido submetido desde o final dos anos 1990, quando as concessões ferroviárias selaram o destino de uma série de serviços de longa e média distância (vários deles lentos e pouco confiáveis, mas operacionais).

Em mais de uma oportunidade, discutimos as vantagens do transporte ferroviário para viagens de longa e média distância, como trajetos conectando capitais do sudeste, nomeadamente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Mais adiante, este artigo discutirá uma hipotética retomada dos trens de longa distância entre São Paulo e Rio de Janeiro.

Ao contrário dos serviços rodoviários, que podem ou não oferecer um semi-leito decente (como parece ser o caso da Levare) ou um leito-cama decente (como é praxe em rotas importantes do Grupo JCA, responsável por nomes bem estabelecidos, como Cometa, 1001 e Expresso do Sul), trens vão além, oferecendo muito mais amenidades.

Trens possuem plena capacidade de oferecer carros com cabines equipadas com 1 ou 2 camas, carro-restaurante, múltiplos chuveiros, múltiplos banheiros, múltiplas vending machines etc. O calcanhar de aquiles, infelizmente, é o tempo de viagem, além da dilapidação da infraestrutura que existia no passado. Mesmo eliminando paradas em postos temáticos, como os da rede Graal, o estado da infraestrutura ferroviária ainda assim resultará em viagens substancialmente mais demoradas.

Recordemo-nos do finado Trem de Prata, serviço em parceria com a iniciativa privada, e que tentou conectar Rio de Janeiro e São Paulo num dos piores momentos da infraestrutura ferroviária daquelas duas cidades, cruzando um furacão que envolvia não só trens de carga em processo de concessão, mas também as malhas caóticas e recém-assumidas pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e pela FLUMITRENS (Companhia Fluminense de Trens Urbanos), esta última, uma estatal que seria cindida em 1998, sendo suas obrigações assumidas pela CENTRAL (Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística) desde 2001.

Já em 1993, ficou decido, através do edital de licitação 033/SR-3/93, que a iniciativa privada ficaria responsável pela organização do serviço e venda de passagens, cabendo à Rede Ferroviária Federal a locação de 25 carros Budd e de locomotivas.

Em outubro de 1993, o Consórcio Trem de Prata – composto pelas empresas União Interestadual de Transportes de Luxo, Interférrea Logística e Portobello Hotéis – foi declarado vencedor para administrar o serviço.

(Felipe Lucena, História do saudoso Trem de Prata, Diário do Rio de Janeiro, 18/01/2019)

Para efeito de comparação, de acordo com reportagem da revista Veja publicada em 22/02/2019, “a uma velocidade de 60 quilômetros por hora, a viagem ferroviária durava nove horas e meia pelos 516 quilômetros de trilhos — partia às 20h30 e chegava ao Rio às 6 da manhã”, enquanto uma viagem rodoviária entre as duas capitais leva cerca de 6 horas (ou seja, um percurso aproximadamente 35% mais rápido).


Reconectando São Paulo e Rio de Janeiro por ferrovia

Como paulista, eu acredito que São Paulo poderia retomar o serviço. A empreitada envolveria a dinamização do plano de vias entre as duas capitais, no entanto, é preciso ser realista: mesmo que a malha concedida à SuperVia permita o tráfego de um trem de passageiros de longa distância, a malha da CPTM é bem menos tolerante a interferências, dado o estado mais avançado dos esforços de “metronização” que têm sido envidados ainda antes da extinção e inventariança da RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima).

Antes de prosseguir, também advirto que é preciso uma boa dose de sensatez em relação às limitações de uma infraestrutura ferroviária centenária, como a que conecta São Paulo e Rio de Janeiro. Em nenhum momento, podemos esperar um desempenho capaz de suplantar a ponte aérea. Se muito, um serviço ferroviário confiável poderia minar parte da oferta rodoviária atual, mas dificilmente seria mais veloz. Como já explicamos, para ligações de caráter regional, que precisam oferecer desempenho mais competitivo, como são aquelas entre as regiões metropolitanas da MMP (Macrometrópole Paulista), pode ser mais razoável optar por trens alto desempenho desde o princípio.

Prólogo Recentemente, uma discussão entre os membros Caio César e Tiago de Thuin acontecia no grupo fechado do COMMU no Telegram. O assunto era a verdadeira “sinuca de bico” da construção de ligações ferroviárias regionais verdadeiramente competitivas, principalmente entre as regiões metropolitanas de São Paulo e da Baixada Santista. Se você suspeita que o futuro trem intercidades entre São Paulo, Jundiaí e Campinas já é tacanho, confira o exercício de tentar repetir o modelo mirando em cidades como Santos, São Vicente ou Praia Grande.

Considerando as informações sobre o Ramal de São Paulo e a Linha do Centro da antiga EFCB (Estrada de Ferro Central do Brasil), os pontos críticos começam a partir de Eng. Manoel Feio, na ponta da CPTM, e de Japeri, na ponta da SuperVia. Consideramos que quaisquer gargalos existentes entre Eng. Manoel Feio e Japeri decorrem de uma necessidade óbvia de requalificação da infraestrutura existente, de forma a permitir a coexistência do trem de longa distância com as vias existentes para o escoamento de produtos de baixo valor agregado pela MRS Logística. Trata-se de uma empreitada que exigiria a construção de vias adicionais, envolvendo a anuência das partes envolvidas nessa concessão lesiva.

Na melhor das hipóteses, poderíamos pensar em um conjunto de intervenções com vistas a permitir a transferência entre os trens das duas regiões metropolitanas e o trem de longo percurso. Na malha paulista da CPTM, existem grandes oportunidades envolvendo a Linha 12-Safira (Brás-Calmon Viana).

São as intervenções indispensáveis em São Paulo, segundo o COMMU:

  • Dinamização do plano de vias, com implantação de vias adicionais e vias auxiliares, além de desvios (bypasses) em estações;
  • Aquisição de material rodante dual (conforme nossa proposta de trem macrometropolitano ou macrô), com 12 carros, sendo 8 no padrão do Trem Metropolitano atual e 4 no padrão do Trem Intercidades (TIC), a definir;
  • Reconstrução da Estação Eng. Manoel Feio, com vistas à adoção de um projeto mais sofisticado do que aquele desenhado pela JBMC;
  • Reabilitação de, pelo menos, uma plataforma na Estação Brás, reduzindo o espaço ocupado por automóveis;
  • Implantação de serviço expresso entre Brás e Eng. Manoel Feio, possivelmente contemplando paradas em estações estratégias da Zona Leste paulistana, como Itaim Paulista e São Miguel Paulista.

São as intervenções desejáveis em São Paulo, segundo o COMMU:

  • Implantação de variante da Linha 12 entre a região da antiga Estação Engenheiro Trindade (desativada em represália a atos de vandalismo) e Osasco, utilizando a Marginal Tietê, conforme já ventilamos no passado;
  • Expansão dos serviços em direção à Estação Suzano nova;
  • Criação de serviço entre Suzano ou Manoel Feio e a Estação Osasco;
  • Possível expansão dos serviços até a Estação Mogi das Cruzes, a depender de intervenções no trecho mogiano da Linha 11-Coral (Luz-Estudantes), viabilizando compartilhamento de trilhos e fechamento de passagens de nível, para uma oferta compartilhada de 15 trens/hora por sentido;
  • Expansão da Linha 4-Amarela (Luz-Vila Sônia) até a região do Pari;
  • Enterramento parcial da Linha 12-Safira, permitindo integração com a Linha 4-Amarela em Pari (não exclui atendimento à Estação Brás).

São as intervenções pendentes a partir de promessas anteriores em São Paulo, mas não necessárias para o serviço em discussão:

  • Reconstrução das estações Aracaré, Eng. Manoel Feio e Itaquaquecetuba, que não aderem ao paradigma do Trem Metropolitano;
  • Construção da Estação União de Vila Nova;
  • Construção de baias de integração Trem Metropolitano-ônibus na Estação São Miguel Paulista;
  • Construção de novo acesso na Estação São Miguel Paulista, visando reaproximar ferrovia e calçadão.

São as intervenções oportunas em São Paulo, mas não necessárias para o serviço em discussão, segundo o COMMU:

  • Construção de uma segunda estação em São Miguel Paulista, fisicamente integrada com o terminal de ônibus da SPTrans;
  • Reconstrução da Estação Calmon Viana, já com baia de integração para um shuttle rodoviário pelo Rodoanel, conforme ventilamos no passado;
  • Construção das estações Jardim Santa Helena·Tipóia, Emancipação de Itaquaquecetuba e Nove de Julho, conforme ventilamos no passado;
  • Implantação de shuttle ferroviário entre Eng. Manoel Feio e São José dos Campos.

É possível que instrumentos do tipo outorga onerosa e operação urbana consorciada (OUC) poderiam ser utilizados pelas prefeituras de São Paulo, Mogi das Cruzes e Itaquaquecetuba com o objetivo de custear algumas das intervenções, como aquelas relacionadas às estações.

Legenda: Conceito de trem macrometropolitano partindo de uma estação (Kassio Massa)

Já no caso do Rio de Janeiro, como nosso foco de atuação é a Região Metropolitana de São Paulo, acredito que podemos apostar em, pelo menos, algumas intervenções indispensáveis, pois não temos uma visão tão abrangente e/ou tão experiente:

  • Modernização dos subsistemas elétricos e de sinalização do Ramal Japeri;
  • Modernização dos subsistemas elétricos e de sinalização da calha troncal que compõe o Ramal Deodoro;
  • Reavaliação do plano de vias existente, mesmo na calha troncal, com vistas à ampliação da capacidade e versatilidade, resultando em implantações de vias auxiliares, vias adicionais e desvios;
  • Reconstrução de estações-chave do serviço, como Japeri, possível terminal com transferência obrigatória para a SuperVia;
  • Aquisição de material rodante dual, com 12 carros, sendo 8 no padrão do trem urbano atual e 4 no padrão equivalente ou similar ao do Trem Intercidades (TIC) da CPTM, a definir.

Considerando que a RFFSA operou trens urbanos entre Barra do Piraí e Japeri até 1996, é possível que, no bojo da reativação de um trem de longa distância entre a capital fluminense e a capital paulista, poderia ser oportuno complexificar os serviços sobre trilhos disponíveis entre as regiões Sul Fluminense e Metropolitana do Rio de Janeiro, o que poderia ou não alterar o ponto de contato entre o trem de longa distância e a SuperVia.

Legenda: Mapa esquemático da Linha 12-Safira, consolidando propostas e anseios do COMMU, além de promessas do poder público. Convenções adotadas: 12P = serviço parador da Linha 12; 12E = serviço expresso da Linha 12; 12V = serviço variante (via Marginal Tietê) da Linha 12; LD = trem de longa distância entre São Paulo e Rio de Janeiro; * proposta do COMMU; ** promessa do poder público; *** proposta do COMMU exige descartar promessa do poder público; estações com ponto acizentado não foram consideradas como passíveis de atendimento, sendo que parte delas pode não existir mais ou estar em ruínas; trechos com contorno pontilhado = atendimento por meio de partidas intercaladas

Conclusão

Como tentei explicar, duas das principais regiões metropolitanas do país, infelizmente, são acometidas por um severo défice de infraestrutura. Tentar reconectar as regiões metropolitanas de São Paulo e do Rio de Janeiro, infelizmente, passa por retomar os investimentos nas malhas operadas pela CPTM e pela SuperVia.

Embora a Linha 12-Safira tenha vivido dias de glória entre 2007 e 2010, a última década foi marcada por estagnação nos investimentos e estrangulamento da infraestrutura existente, além de graves problemas em obras cruciais de modernização, como aquelas associadas ao sistema de sinalização, responsável por garantir um controle preciso, podendo influenciar diretamente na quantidade de trens que podem circular.

Já o caso da SuperVia é gravíssimo. O regime de oferta atual é deprimente e a infraestrutura em operação pode ser considerada como degradada ou em degradação, a depender do trecho. É possível que, mesmo diante de vultuosos investimentos custeados pelos governos paulista e federal, a malha da SuperVia permanecesse como a parte mais delicada e problemática do trajeto.

Finalmente, a retomada de um serviço regional, conectando metrópoles em diferentes estados, abriria uma série de oportunidades para criação de sinergias e sofisticação do uso e ocupação do solo, de forma a criar corredores de desenvolvimento. Haveria, ainda, a possibilidade de oferecer serviços ferroviários de caráter local, utilizando veículos leves sobre trilhos, o que poderia não só contribuir para reforçar padrões positivos de desenvolvimento orientado ao transporte sobre trilhos, mas também para eliminar a hegemonia do transporte rodoviário.


Colaborações: Thiago de Thuin e Pedro Geaquinto



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